O freak como arma de combate e um esboço de musicologia zappiana.
A maioria dos textos e material que encontro a respeito de Frank Zappa versam sobre sua biografia, a trajetória de seus projetos e compilações de sua obra. Há muitos vídeos disponíveis de shows e também documentários. Encontramos muitas entrevistas e depoimentos do próprio artista e de pessoas envolvidas com seu trabalho e vida. Pesquisas em português são ainda escassas e a maior parte dos trabalhos disponíveis possuem conteúdo redundante. O que chama minha atenção é que nunca encontrei um artigo que abordasse a arte de Zappa através da perspectiva musicológica, ou seja, através de um olhar multidisciplinar, onde história, sociologia, antropologia, entre outras ciências sociais, pudessem contribuir para a compreensão da obra desse genial compositor.
A ideia central deste texto é traçar um esboço de musicologia sobre a produção e a obra artística de Frank Zappa. Não há pretensão aqui de se produzir um artigo científico, embora alguns instrumentos das ciências humanas sejam utilizados para iluminar o caminho percorrido. Mas, antes de tudo, o foco é observar como é possível a gênese e a consolidação de um artista-militante-empreendedor tal como foi Zappa; e de que maneira seu trabalho Freak dialogou – e ainda dialoga – com a sociedade tecnocientífica industrial da cultura de massa. A obra de Zappa é múltipla e complexa, um monumental edifício artístico. Ele transitou pelos campos da música erudita, do mainstream, da música de vanguarda, do jazz, da cultura pop, do cinema, etc. Sua obra consciente e carregada de significados, somada a uma personalidade marcante e incisiva – de opiniões contundentes – fez de Frank Zappa uma figura de grande ressonância mundial.
A arte para além dos limites do gosto e da estética
Quando se discute arte – e principalmente música – muitos tem a tendência de pensar que o assunto se resume a uma questão de gosto pessoal e pronto. Que não é possível debater música porque cada um tem a inclinação de se identificar com uma ou outra coisa. Neste caso, portanto, em última instância, se explica um fenômeno musical através da premissa do “gosto”. Sob esta lógica, o sucesso do sertanejo universitário no Brasil é justificado por ser o estilo musical que caiu no “gosto popular”. Não é uma fórmula que deva ser de todo desprezada para se analisar a realidade musical, mas é uma abordagem bem limitada. Outra forma de pensar a discussão é acreditar que o assunto pertence exclusivamente ao campo da estética e que portanto, só os artistas e os críticos-estetas teriam a máxima competência para compreender e explicar tal temática. Por este prisma, a questão do belo teria maior peso na consideração do assunto. Sob este tipo de abordagem, poderíamos dizer que o sucesso da bossa-nova e sua aceitação no meio jazzístico internacional se daria pela sua qualidade técnico-musical, suas inovações estilísticas e sua personalidade artística. Um excelente instrumento de análise, sem dúvida, mas não deixa de ser uma abordagem hermética e que muitas vezes se pretende supra-histórica, essencial e axiomática.
A primeira vez que tive contato com uma análise histórico-social da música foi através de um livro de José Ramos Tinhorão, a História Social da Música Popular Brasileira, em que o autor apresenta uma abordagem musicológica e polêmica da linha evolutiva da chamada MPB – justamente pelo fato de não se limitar a mera especulação do gosto e da estética. No entanto, os trabalhos de Hobsbawn (História Social do Jazz) e Norbert Elias (Mozart: Sociologia de um Gênio) sobre música e sociedade são fundamentais para um entendimento mais amplo dos instrumentos e métodos da musicologia. É necessário ressaltar que, em âmbito didático e acadêmico, a musicologia é uma ciência interdisciplinar que encontra-se formalmente vinculada aos cursos superiores de música e ciências sociais. Este tipo de abordagem não obteve ainda maior reconhecimento do grande público e as descrições biográficas e as análises estéticas monopolizam o assunto nos meios midiáticos.
Para iniciarmos uma análise histórico-sociológica da obra de Frank Zappa é preciso contextualizar o mundo em que nasceu e foi criado Frank Vincent Zappa. É importante compreender o ambiente político e social em que se desenvolveu a personalidade e a educação artística deste grande mestre. Sem compreendermos os Estados Unidos do pós-guerra, o ambiente artístico-musical do período, o desenvolvimento dos meios midiáticos de massa e a persona pública e privada que se tornou Frank Zappa não seremos capazes de apreender o sentido exato da espetacular aparição de sua música. Como já foi mencionado, a análise musicológica é uma metodologia interdisciplinar, e portanto, não só os aspectos técnicos musicais e estéticos estão em jogo, mas também as questões sociológicas, históricas, psicológicas, filosóficas e ontológicas que orbitam o tema. Ou seja, o mais importante para a compreensão da análise musicológica é a ideia de que apenas o talento artístico singular de Zappa não explica a grandiosidade de sua obra, e há outros fatores fundamentais que devem ser agregados a este entendimento. É disto que trata este texto – a obra de Frank Zappa é um fenômeno social (visto sua notoriedade) e como tal é passível de uma análise que considere, além de seus elementos constitutivos, as relações sociais envolvidas no seu processo de gênese e consolidação.
Os anos 40 assinalam a entrada definitiva do mundo na era atômica (com as explosões das bombas de urânio lançadas pelos EUA sobre Hiroshima e Nagasaki, em 1945) e na era tecnocientífica informacional (a partir da invenção do computador digital eletrônico, em 1946). Na mesma década, o início da Guerra-Fria polarizava o mundo em dois blocos antagônicos – capitalista e comunista. O fim da II Grande Guerra possibilitava a expansão econômica dos Estados Unidos por todo o planeta. Também, é a década do chamado Baby Boom, caracterizado pela elevação das taxas de natalidade no território norte-americano, catalizada pela ampliação do poder de consumo da classe média.
A geração que nasceu no início dos anos 40 foi a mesma que vinte e poucos anos depois pregava a revolução ética através do movimento Hippie, que tanto Frank Zappa criticou. As limitações que Zappa via na contracultura Hippie (que ele acreditava ser um movimento apático e preguiçoso) eram elencadas ao lado das contradições concretas que ele enxergava no liberalismo radical e, também, ao lado da constatação da violência física e moral promovida pela práxis das ideologias socialistas. Nada escapava ao olhar crítico do artista. Portanto, não é possível entender o conceito musical e o posicionamento político de Frank Zappa através de modelos padronizados e esquemáticos. A complexidade do pensamento deste grande criador artístico merece muita pesquisa e abordagens sob múltiplas perspectivas. Não é possível enquadrar Zappa em uma determinada categoria, como por exemplo, na de cidadão liberal e guitarrista roqueiro, simplesmente. Zappa é um grande artista justamente por sua complexa e dialética forma de pensar e se comportar na vida.
Frank Zappa foi uma criança educada nos padrões convencionais da classe média norte-americana. Porém, as constantes mudanças de cidade (devido ao percurso profissional de seu pai) lhe proporcionou uma vivência múltipla, ainda na tenra infância, possibilitando contato com diversas pessoas e lugares.
Mesmo assim sentia-se solitário na maior parte das vezes, e supria sua carência cultivando experiências interiores e intelectuais. Uma delas era ouvir durante horas todo tipo de música com muita curiosidade e atenção.
Certo é que sua adolescência ocorreu em Los Angeles, em uma localidade multicultural, que lhe permitiu uma imersão nas muitas sonoridades e manifestações artísticas e culturais das ruas. Em meio a mexicanos, negros e outras etnias de marcante identidade cultural, foi educando seu ouvido e mente. Ainda na pré-adolescência desenvolveu um gosto pelos movimentos de vanguarda da música erudita identificando-se com compositores como Stravisnky, Webern e principalmente Varèse. Interessante notar o fato de que, no aniversário de quinze anos, Zappa tenha recebido como presente de sua mãe uma ligação intercontinental para a casa de Varèse, o que demonstra a importância dada pela família ao desejo do garoto Frank de falar com seu ídolo.
Este fato nos indica basicamente duas coisas – Primeiro, que a marcante expansão da indústria fonográfica possibilitou ao grande público daquele período um maior acesso (mantido, até então, quase exclusivamente à seara dos grupos elitizados, cultivadores de alta cultura) aos mais diversos bens culturais musicais disponíveis, inclusive da cultura erudita. A popularização dos Long Plays, devido aos preços acessíveis, gera a oferta de uma gama fabulosa de opções discográficas no mercado, principalmente quando se pensa no bem sucedido Estados Unidos do Pós-Guerra. Adolescentes com pouco dinheiro podiam consumir Lps com certa frequência. E a curiosidade de Zappa o levou a aproveitar-se dessa fartura de possibilidades disponíveis a bons preços nas lojas de discos. Sem dúvidas, o jovem Zappa demonstrava um gosto sofisticadamente incomum para os garotos de sua idade, e certamente foram as condições materiais ao seu redor que facilitaram seu contato com esse tipo de música formal, o que foi crucial para o desenvolvimento de sua educação musical.
O segundo fato aponta para a ascensão da classe média norte-americana, naquele momento economicamente promissor, e a possibilidade dela sustentar os sonhos e espectativas de seus familiares mais jovens que não haviam vivido os tempos difíceis da depressão e da guerra. As novas gerações estavam livres para escolher seu futuro. E começar no mercado de trabalho ainda com pouca idade não correspondia a uma necessidade de subsistência familiar, mas a uma básica condição para o amadurecimento e independência dos jovens. Ou seja, os fartos anos 40 e 50 foram determinantes para a consagração do estilo de vida americano que conhecemos hoje.
O estabelecimento de políticas do bem-estar social nos Estados Unidos significava também garantir o acesso dessa população aos bens culturais disponíveis, o que implicava em investimentos governamentais na construção de bibliotecas públicas de alto padrão. Zappa sempre foi um defensor do autodidatismo, sendo notória sua desavença com o sistema educacional institucional que culminou no seu abandono da faculdade e depois a retirada dos filhos da escola tradicional. Quando adolescente foi um assíduo frequentador de bibliotecas onde fazia audições musicais de toda a tradição folclórica do blues norte-americano.
Zappa conhecia as raízes da música negra de seu país e se interessava em compreender aquele fenômeno – daí sua paixão por R&B e Doo-wop. Ainda muito novo pôde também se envolver com projetos musicais, desenvolvendo habilidades na bateria e baixo. A geração de Zappa estava disponível para seguir suas próprias tendências vocacionais, não à toa que faz parte desse grupo geracional jovens geniais que revolucionaram não só a cultura, como também a tecnologia e a sociedade daquele tempo. Basta lembrar da engajada juventude de 68 e os hippies e nerds que criaram os softwares livres e computadores pessoais.
A presença das bibliotecas públicas na vida de Zappa merece atenção. Embora tivesse tido uma introdução aos conhecimentos básicos de música na escola normal, ele, de fato, desenvolveu um sólido conhecimento em regência e escrita musical dentro do ambiente das bibliotecas. É fato que, ainda prematuramente, nas gravações de seu disco de estréia com os Mother Of Inventions – FREAK OUT (1966) – tenha demonstrado total domínio da técnica de condução, como declarou certa vez, o guitarrista Elliot Ingber, que, participando das gravações do célebre álbum, ao ver a quantidade de músicos principais, percussionistas, partituras nada simples, ficou ainda mais impressionado quando Frank Zappa, aos 26 anos de idade, com absoluta segurança, conduziu magistralmente aquela loucura toda demonstrando que sabia realmente o que estava fazendo. Então, depois de uma das sessões, em particular com Zappa, Ingber perguntou: “Onde aprendeu a fazer isso?”. Zappa apenas respondeu: “Ah, fui à biblioteca”.
Na adolescência, Zappa percebeu que a propaganda do sonho americano estabelecido pelo free way of life não passava de publicidade oficial. Atento aos grandes acontecimentos, observou o período do macartismo e o medo histérico do comunismo se transformar em perseguição a intelectuais e artistas. Enquanto as disputas pelos direitos civis se acirravam através do território norte-americano. Somado a isso tudo, havia a crescente oposição bélico-ideológica com a URSS. Ou seja, os EUA se mostrava um país com sérios problemas internos e externos. Enquanto isso, sofisticados sistemas de controle social eram desenvolvidos através de setores governamentais (educacionais), religiosos e da indústria do entretenimento. Obviamente atacados por Zappa.
Relevando estes fatores no entendimento da formação do pensamento de Frank Zappa é possível apreender com maior abrangência o seu posicionamento estético e político. Ele encampou uma longa briga – no plano da disputa política e jurídica e na esfera da música – com todos os setores reacionários da sociedade, inclusive com aqueles aparentemente progressistas (socialismos e hippismo). No campo da música propôs abordagens não usuais, tanto em suas peças eruditas quanto nas canções de seu rock. Foi ao Senado norte-americano defender o direito da livre expressão. Utilizou os meios de comunicação para falar do elevado poder de manipulação das massas pela grande mídia. Enfrentou a indústria fonográfica e conseguiu se tornar proprietário dos direitos autorais de basicamente tudo que escreveu e produziu. Utilizou-se do mercado do entretenimento para sobreviver daquilo que mais gostava de fazer: compor e tocar; e neste mesmo mercado da diversão deixou como produto uma das obras mais singulares da história da pop music.
Freak out frente ao stablishment
A expansão dos meios de comunicação de massa e da publicidade moderna a partir dos anos 50 somados ao fascínio que isso causou no jovem Zappa nos aponta um caminho para percorrermos as sendas deixadas por suas indagações. A cultura da televisão e da propaganda se desenvolveu sobremaneira nos EUA, a ponto de muito dos produtos televisivos norte-americanos, como talk-shows, programas musicais, de variedades e os famosos seriados serem exportados para todo o mundo, desde então. Zappa conhecia muito bem o poder da mídia de massa e a capacidade das mensagens (via televisão e rádio) de chegar até a alma das pessoas.
A música e as performances de Zappa são uma provocação ao espectador – aquele que se encontra na plateia, antes de tudo – mas também em frente a TV ou escutando o som na vitrola. Frank Zappa mergulha na estrutura do sistema capitalista judaico-critão para de maneira revolucionária, no sentido da transvalorização de todos os valores, subverter a ordem do moralismo hipócrita. Ele se utiliza do establishment para executar uma autocrítica avaliativa desse próprio sistema. Enquanto isso, o público deve ser chacoalhado e estimulado a sair de sua posição de repouso inercial. Se a burrice é o fator imperativo no mundo da cultura de massa, então a melhor tática de resistência é escrutinar a burrice e a idiotice em seus múltiplos aspectos, então hiperbolizá-la e daí transformá-la em alegoria. Exorcizá-la com humor agudo e inteligência. Tudo com muita sofisticação e irreverência, evidentemente.
A conhecida estética Freak de Zappa foi desenvolvida na segunda metade dos anos 60 com a consolidação da banda Mothers of Inventions. Para entendermos tal abordagem estética é necessário primeiro perscrutarmos a indústria do entretenimento daquele tempo; e se observarmos o processo de estabelecimento econômico dos grandes conglomerados industriais midiáticos dos anos 60, então, a partir disso, poderemos constatar dois fatores que se tornam relevantes: a existência de excedentes financeiros disponíveis e a consequente tendência, na época, da indústria cultural para a criação de novos produtos artísticos de mercado. Assim, é na segunda metade do século XX que a cultura de massa se estabelece de forma definitiva, com os contornos que podemos ainda observar hoje.
A chamada indústria cultural, ou seja, a indústria que produz bens culturais, como música, cinema, moda, espetáculos e tantos outros produtos de consumo em massa (acessíveis a todos aqueles capazes de pagar pecuniariamente pelo seu acesso), acumulou, ao longo do século passado, uma quantidade quase incalculável de capitais. Tanto que os famigerados irmãos Warner (grandes figuras da indústria do cinema americano) resolveram, ao final da Segunda Grande Guerra – mais ricos que nunca – investir em várias frentes, como na área de cinejornais, televisão e também produção e distribuição musical. Os negócios iam bem e os lucros só aumentavam.
É importante lembrar que a Warner Bros (junto a MGM) seria alvo das táticas de combate zappianas devido a interferência da empresa no lançamento de seu pretensioso projeto do álbum quádruplo, intitulado LÄTHER – que no cronograma do artista deveria ser disponibilizado ao público em 1977. Com as dificuldades para a execução da prensagem do disco devido a impedimentos jurídicos, é ilustrativa a famosa atitude tomada por Zappa de ir até uma rádio e expôr todo o álbum no ar, estimulando os ouvintes a gravarem e divulgarem o som entre amigos e fãs. Uma atitude inusitada, pois Zappa era contra qualquer tipo de pirataria de suas músicas porque, segundo ele, todo o cuidado dedicado à gravação, que buscava sempre a máxima perfeição – atualizado com o que havia de mais moderno em técnicas e equipamentos – para proporcionar ao ouvinte a melhor experiência musical possível, ficava comprometido quando as músicas pirateadas, divulgadas de maneira amadora, eram distribuídas. O que importa nesta passagem é a rebeldia de Zappa em relação ao sistema jurídico e comercial que o obrigava, enquanto criador de uma obra, a se submeter às decisões de executivos engravatados que nada sabiam de música.
Com a ascensão da cultura psicodélica nos meios midiáticos, os Hippies ganharam espaço na TV, na moda e principalmente no mundo da música pop. As grandes gravadoras contratavam diversos artistas de inúmeras tendências, investiam em sua criatividade e testavam os resultados no mercado. Algumas bandas se tornavam novos Beatles e explodiam, outras não passavam do primeiro disco. Era o momento de sondagem das novas tendências e de investimento na criação de produtos culturais inovadores que fossem o mais rentável possível. É por isso que entre os anos 60 e 70 a força e a personalidade das músicas que circulavam no meio da pop music ainda chamam a atenção, características que foram se perdendo ao longo dos anos. Com o passar do tempo, os capitais disponíveis para o experimentalismos musicais no mundo pop foram sendo destinados aos engenheiros da cultura, que com cada vez mais tecnologia, criavam planilhas indicando exatamente os elementos necessários que uma canção deveria conter para fazer o máximo de sucesso possível, respondendo aos investimentos de sua produção de maneira maximizada. Era estabelecido o fim da diversidade criativa no âmbito da pop music.
Frank Zappa havia amadurecido junto com a própria indústria cultural. Na metade dos anos 60 demonstrava grande domínio sobre aquele universo comercial-racional e filtrava dele seus elementos da maneira mais sagaz, anárquica e ácida possível. Percebendo, já naquele tempo, que o mundo da música pop caminhava para a exacerbação da imagem em detrimento da própria musicalidade, nosso herói apelou para o aspecto visual como elemento informativo e estético integrante de sua complexa música. A imagem, tanto das capas de discos, como o visual dos músicos da banda deveriam indicar que tipo de sonoridade executavam.
Se aquela música era “muito louca”, todas as imagens relacionadas à ela deveriam conter esse elemento de sandice. O Freak de Zappa é uma bem sucedida empreitada de resistência contra a massificação das ideias utilizando os próprios elementos da massificação. Explico: Zappa utilizava-se da estética do bizarro e da feiúra, do blague e do sarcasmo com técnicas refinadas de comunicação de massa. Primeiro, todo conteúdo imagético utilizado nos discos, shows, filmes e material publicitário era pensado de maneira a dialogar com o mundo ordinário, mas de uma forma extraordinária. Basta lembrar que em seu filme 200 MOTELS (1971), Zappa, além de utilizar figuras do universo pop daquele momento como Ringo Star e Keith Moon na película, utilizou-se da linguagem televisiva, publicitária e cinematográfica de forma a subvertê-las, buscando questioná-las, tirando-as de sua aparente “normalidade” e a colocando-as no espaço da reflexão metalinguística.
O Freak seria uma estética dos Beatles ao reverso, no sentido de que a imagem plástica explorada, a partir da música pop – assim como nos produtos lançados pela indústria Beatles – é minunciosamente pensada; mas, no universo freak o belo é transportado para um lugar estranho. Se os Beatles são publicitariamente arrumadinhos, o Mother of Invention são publicitariamente desarrumados. Apenas é possível entender essa posição de Zappa frente ao mainstream quando o percebemos enquanto um livre pensador, e enquanto um “American Composer” (no sentido em que ele definia o termo), também é necessário considerarmos o ambiente mercadológico favorável em que aquela música foi gestada. Só é possível um disco como FREAK OUT fazer tanto sucesso a partir da adesão da indústria fonográfica ao projeto. Inclusive, se lembrarmos que é o primeiro disco duplo da história, pode-se aumentar ainda mais o mérito da sagacidade de Zappa em jogar com o sistema.
A ideia de “American Composer” (compositor americano), termo que Zappa usava para se autodefinir, estava relacionada essencialmente a questão da liberdade. Se a América é a Terra da Liberdade, então um compositor americano de verdade deve representar esse ideal e levá-lo até as últimas consequências em sua atividade. Portanto, o conceito de American Composer para Zappa estava intimamente ligado ao fato dele dizer o que queria, quando queria e da forma como queria. Este é o cerne do trabalho de Zappa, um trabalho artístico que aponta para a emancipação das ideias e da expressão em uma sociedade capitalista onde a reificação da arte e do pensamento é cada vez maior e os instrumentos de controle da ordem são incoerentes.
Observando a comparação feita pelo guitarrista Warren Cuccurullo de que “Frank Zappa era o cientista louco da música. Era o Mozart do século XX. Um livre pensador”, me faz lembrar da análise de Norbert Elias sobre a arte de Mozart e a sociedade em que este viveu. Cito um trecho esclarecedor sobre o processo metodológico empregado na socologia da música/ arte proposta por Elias, a partir do estudo de caso da vida e obra do grande compositor Amadeus Mozart (que também assumia um certo aspecto freak perante o statuos quo).
“O destino individual de Mozart, sua sina como ser humano único e portanto como artista único, foi influenciado por sua situação social, pela dependência do músico de sua época com relação à aristocracia da corte.
Aqui podemos ver como, a não ser que se domine o ofício de sociólogo, é difícil elucidar os problemas que os indivíduos encontram em suas vidas, não importa quão incomparáveis sejam as personalidades ou realizações individuais – como os biógrafos, por exemplo, tentam fazer. É preciso ser capaz de traçar um quadro claro das pressões sociais que agem sobre o indivíduo. Tal estudo não é uma narrativa histórica, mas a elaboração de um modelo teórico verificável da configuração que uma pessoa – neste caso, um artista do século XVIII – formava em sua interdependência com outras figuras sociais da época.
(…)
Mas, o significado de tal experiência para o desenvolvimento pessoal de Mozart – e portanto para seu desenvolvimento como músico ou, colocando de maneira diferente, para o desenvolvimento de sua música – não pode ser percebido de maneira realista e convincente caso se descreva apenas o destino da pessoa individual, sem apresentar também um modelo das estruturas sociais da época, especialmente quando levam a diferenças de poder. Só dentro da estrutura de tal modelo é que se pode discernir o que uma pessoa como Mozart, envolvida por tal sociedade, era capaz de fazer enquanto indivíduo, e o que – não importa sua força, sua grandeza ou singularidade – não era capaz de fazer. Só então, em suma, é possível entender as coerções inevitáveis que agiam sobre Mozart e como ele se comportou em relação a elas – se cedeu à sua pressão e foi assim influenciado em sua produção musical, ou se tentou escapar ou mesmo se opor a elas.” ( A sociologia de um gênio).
Podemos emprestar alguns conceitos utilizado por Elias para pensarmos o gênio criativo de Frank Zappa. Se por um lado Mozart manteve relações com a alta sociedade aristocrática europeia do século XVIII, Frank Zappa foi um homem que dialogou com a sociedade burguesa dos grandes conglomerados industriais americanos do século XX. É nesta sociedade que se insere a formação da personalidade de Zappa, na interação e na relação de interdependência com seus contemporâneos e instituições existentes. Se na sociedade de Mozart, um gênio como ele necessitava de um mecenas para poder viabilizar sua obra, no contexto social de Zappa é a relação estabelecida com a indústria do entretenimento que garante a sobrevivência do artista e a possibilidade dele desenvolver sua arte. A forma como cada uma dessas figuras singulares estabeleceram suas relações com os mundos sociais a que pertenciam explica, em grande medida, os resultados que obtiveram em termos de produção e veiculação de suas obras artísticas, e o caráter que o conjunto de suas obras e personas públicas assumiram perante o grande público e a História.
As diferenças de poder, citadas por Elias no texto acima, é conceito fundamental para uma análise sociologizante do fenômeno musical. Sabemos que a tensão vivida por Mozart era gigantesca, visto que para que ele pudesse dar curso aos edifícios musicais construídos por sua imaginação deveria se submeter a determinados códigos de conduta, tanto estéticos como comportamentais, que muitas vezes, sua personalidade inteligente e obsessiva, via como incoerentes e até mesmo grotescos. Ainda mais pela situação de sua origem não aristocrata e a necessidade de viver e sobreviver entre aristocratas. Talvez devido a esse choque social, a biografia de Mozart é toda entrecortada por momentos de insubmissão e irreverência aos padrões pré-estipulados pela sociedade aristocrática do antigo regime. Esta postura excessivamente rebelde e personalista de Mozart pode explicar as dificuldades que ele passou no final de sua vida, quando abandonado por seus amigos fidalgos que não compreendiam sua genialidade, preferindo, a partir de então, bajular outros artista mais triviais. A sociedade de corte não tolerava a singularidade, a autenticidade e a inovação – o conflito entre a idiossincrasia da arte e persona de Mozart e as aspirações da sociedade cortesã por padrões aristocráticos inflexíveis inviabilizou a continuação da produção do artista, comprometendo até mesmo o prosseguimento de sua vida. Então, Mozart faleceu prematuramente aos 36 anos de depressão profunda.
Frank Zappa lidava com as diferenças de poder assim como Mozart, obviamente em uma outra conformação de estrutura sócio-econômica e histórica. Mas, não menos sofreu as pressões dessa disparidade de poder. No caso de Zappa, para que ele pudesse construir seu projeto de obra de arte necessitou render-se ao mercado da indústria do entretenimento, embora tenha encontrado, de certa forma, um caminho que permitisse sua independência e autogestão artística. Para que ele pudesse ter absoluto controle sobre sua produção e para que tivesse liberdade de exercer efetivamente seu ofício de verdadeiro American Composer precisou encarar uma guerra durante a vida toda contra a mediocridade e os meros interesses do sistema comercial. Inconformado com a hipocrisia da sociedade ocidental e os maquiavélicos processos de controle dos instrumentos midiáticos decidiu por uma via de resistência e enfrentamento. Sua maior arma foi a inteligência associada ao bom-humor. Uma briga dura que exauriu o mestre, e sua morte, devido ao câncer, aos 53 anos de idade, pode ser tomada como uma evidência disso.
Enfim, a obra de Frank Zappa deve ser analisada por diversos prismas, e sem dúvidas a perspectiva sugerida neste texto apresenta-se como mais um caminho possível. Entender os significados da arte zappiana e suas ressonâncias no mundo atual exigem estudos mais aprofundados e detalhados. A ideia deste artigo foi apresentar uma proposta de abordagem musicológica e sociológica que se complementasse às demais existentes. De fato, uma sensação eu levo de toda essa reflexão – quanto mais procuro conhecer a obra de Frank Zappa e seu diálogo com a realidade social mais sua música faz sentido e cada vez mais torna-se um grande prazer escutar sua obra.
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