Gabriela Santos bateu um papo com o raper Matheus Coringa. Uma conversa sobre influências, parcerias, novos trabalhos e o que mais a vida vem trazendo para o jovem MC.
“Eu não quero fazer minha música moldada ao que as pessoas querem ouvir para ela perder o que ela tem de melhor”.
Logo que ouvi essa frase do Matheus Coringa, entendi os burburinhos sobre ser ácido demais, sincero demais, que rondam o rapper soteropolitano. Com a destreza de um cirurgião, o rapper tem plena consciência de que sabe o que está fazendo. E sabe mesmo. Com 25 anos, Coringa sempre chamou atenção pela forma que desembola analogias e metáforas nada óbvias no meio de seus sons. Aquela famosa sensação: como ele chegou nessa ideia?
Além disso, é nítido que a forma como o mesmo brinca com temas subversivos e pouco explorados no rap tornam o MC uma das nossas âncoras no underground nacional. Em conversa com o Oganpazan, ele conta que é uma pessoa totalmente fora do que as pessoas imaginam, mas que se diverte com isso, já que uma pessoa prestes a se entregar para a loucura não precisa estar num estereótipo de louco. Uma pessoa aparentemente normal pode chegar a picos extremos de criatividade ou adrenalina.
“E é justamente por isso que a gente tem que ter bastante cuidado com os monstros que alimentamos” disse o MC.
Nada sutil, entendi o recado e me fiz a mesma pergunta que muitos: onde termina o Matheus e onde começa o Coringa ?
“Não consigo separar o Matheus do Coringa, justamente pra pessoa entender que é a personificação da minha arte. É isso, sou um cara normal. Curto futebol, fumar um, não gosto de sair muito, adoro animais… Mas o Coringa já é outra fita. É a forma que eu faço arte” explica.
E de arte, Matheus mostra sem muito esforço que entende. Com uma extensa (muito extensa, aliás) caminhada e com trabalhos que fogem em absoluto da curva do que você pode encontrar em outros rappers, ele também faz parte dos muitos artistas independentes do underground, que na verdade, dependem sim de 1001 fatores, como o próprio diz.
“Eu acredito que é batalha, planejamento, frustrações. Não pode ficar analisando a carreira do amigo, carreira do colega de trabalho, do fulano, do ciclano. Você tem que entender que seu trampo vai ser maior que qualquer coisa e que seu trampo tem potencial para ser maior do que qualquer coisa. Pra um artista independente viver no Brasil ele tem que ter muita inteligência emocional, sacar que ele vai passar por picos e mais picos… Isso se ele conseguir ter uma visibilidade, porque aqueles artistas independentes que vivem em circunstâncias quase invisíveis, é mais complicado ainda. É uma luta cara” afirma.
Além disso, Matheus afirma que é condição essencial aprender a ser organizado, a lidar com pessoas, saber se comunicar de forma transparente.
“Um artista tem o dom de ser sincero e a gente acaba não sendo isso pra jogar um jogo que alguns criaram e monetizam só pra eles. Não pode ficar parado e achar que alguém vai te notar, não dá para achar que você deve ser alcançado mesmo parado . Você merece ser alcançado mas você que lute” diz o MC.
É comum também que artistas do underground sejam constantemente comparados a artistas famosos, numa tentativa preguiçosa de ajudar a compreender algo novo que não foi muito bem digerido ainda pelas pessoas. Não é diferente com ele. Em diversos comentários na internet, a comparação com o Tyler, The Creator está presente. Matheus afirma que entende mas não concorda muito e acredita que isso se dá mais pelo apelo visual do que pela estética dos sons em si.
“Entre o Tyler e o Earl Sweatshirt, eu prefiro o Sweatshirt até pela introspecção dele. Hoje em dia ele tá mais adulto… ele não tá buscando aquele impacto visual que a gente via e ficava chocado. Eu não gosto muito de ser comparado a outras pessoas, mas tem pessoas que a gente respeita e admira e a gente leva como elogio, né? Então eu acho daora quando comparam à Odd Future , que eu chapava. Tyler buscou um limite que a gente não imaginava e ultrapassou o limite que ele mesmo
pôs pra arte dele. Mas… o Sweatshirt é mais brabo kkkkk” explica Coringa.
Um ano atrás, Matheus Coringa anunciava em suas redes sociais que ia dar uma pausa nesse rolê todo e se dedicar a buscar estabilidade financeira e ajudar quem realmente corria com ele. “Eu curto estudar, eu gosto de buscar conhecimento e essa pausa que eu falei que ia dar para minha carreira, eu realmente pensei em dar. Eu tenho um disco pronto, o El Torto (que só vai sair em 2021 por causa da pandemia) e ele é basicamente eu me despedindo do rap. Tem toda uma história. Eu não tava aguentando mais… eu tive uma melhora em 2020, comecei melhor. Comecei com projetos finalizados, conversei com amigos e eu entendi que to nessa cultura e vivo essa cultura mais de uma década e eu não pensava muito na parte financeira. É meio inocente dizer isso, né? Hoje em dia é inevitável, você tem que pensar na parte financeira porque é ela que gira tudo. E aí eu pensei, “porra, eu também posso trabalhar com coisas que eu gosto, que eu tenho curiosidade e criatividade pra trampar e continuar tendo liberdade pra fazer minha música”. Eu não quero fazer minha música moldada ao que as pessoas querem ouvir para ela perder o que ela tem de melhor. Eu não quero ter limite e isso mexeu muito com a minha cabeça” desabafa Matheus.
Essa guerra interna certamente abriu trincheiras na mente do MC, que percebeu que a música, que antes trazia alívio, agora traz preocupações e cansaço emocional para lidar com contas pra pagar.
“Isso começou a me corroer por dentro e eu fiquei realmente angustiado. Você vê que tem um pouco do seu ego, de achar que é sua arte é maior que qualquer coisa. Mas mano, o mundo é esse. O mundo é injusto e é para quem sabe jogar com ele. Eu melhorei minha cabeça. Eu não sou o cara da autoajuda, eu não vou ficar dando conselho porque eu não sei lidar perfeitamente com isso. Mas temos que buscar coisas que nos ajudem a existir. Não pode ficar esperando alguma coisa, tem que correr atrás do capital e ao mesmo tempo, não é porque você corre atrás da grana que você vai virar um fantoche do mainstream. Eu não vou depender do rap e da indústria da música pra ter uma vida boa. Eu quero viver bem, eu mereço viver bem. Todos nós merecemos. Eu acho que quanto mais estabilidade eu tiver, eu vou continuar fazendo mais trampo. Vou ter inspiração como eu tô tendo, tô com 3 projetos ao mesmo tempo. É isso. Tenho que continuar vivo. To conseguindo respirar, estudar e ainda fazer planos” conta.
Apesar do MC estar há anos provando que tem mais talento e coerência na caneta que muitos que estão no hype, é claro que rola uma invisibilização do seu nome e que afeta diretamente a ideia de desistir do rap. Coringa tem feats com nomes de peso na cena (como Yung Buda e Matéria Prima ), participações em quadros famosos na Pineapple e RapBox e mesmo assim ainda faz parte dos muitos que acabam precisando de outra fonte de renda além da música. Ele conta que todo mundo que se joga na música independente, tem que entrar de cabeça.
“Por eu estar 100% de cabeça no rap durante dez anos, eu larguei faculdade, eu parei de trabalhar com outras coisas. Eu trabalhava com música, eu tentei pegar uma casa maior quando estava com mais visibilidade com uns amigos e não deu certo… Esses bagulhos faz a gente pensar mais no futuro. Eu via que o tempo tava passando, e porra, eu sei que eu tenho talento. Não vou falar de falsa modéstia. Eu sei que eu tenho um diferencial mas esperar que as pessoas deem valor a isso é muito frustrante” explica.
Matheus nunca escondeu que essa situação o afeta. Ele conta que já sacou que muitos o invisibilizam na cena por medo, já que esses não se garantem linha por linha. Obviamente, a forma dele falar abertamente que rola um egocentrismo, é pelo fato dele se garantir.
“Se e eu me garanto, os cara vão falar “mano, esse moleque se garante demais, vamos dificultar para ele”.
Eu tenho várias pessoas famosas mesmo que tão entendendo meu trabalho. Hoje em dia eu tô me alimentando dessa invisibilidade, saca? Até uma linha na DevilMan eu falo sobre isso “como é bom se lembrar que é invisível, o caminho perfeito é tão previsível”, porque é bom se sentir assim. Eu não
me mantenho na mesa dos populares, sacou? É basicamente por isso. Todo feat que eu entrego, geralmente eu entrego à altura do convidado. Eu não peco em linha. E geralmente, depois que eu faço trabalhos assim, aparecem várias pessoas populares em termos de hype… logo depois de eu fazer trabalho com o pessoal da mesinha, saca? Geralmente é assim. Me mandam uma guia, eu mando de volta e eu nunca mais escuto falar sobre a guia. Ou eu mando uma guia e a pessoa demora
meses e meses pra responder e ficar a altura. E assim, eu tenho certeza que muita gente do rap mainstream conhece meu trabalho. Eu já conversei com muita gente. Tem várias pessoas que participaram dos quadros da Pineapple e do RapBox e também foram invisibilizadas, mas é muito uma questão de indústria. Eles percebem sua ascensão e tem 2 possibilidades: ou eles vão fechar as portas para você por ver a sua possibilidade de ultrapassar eles, o que é bizarro, ou eles vão falar “esse moleque tem um tchan, vou fechar com ele”, foi o que aconteceu comigo em 2017 logo após a Pineapple. Foi um movimento primeiro de queda, na época da Listerine, mas a galera da contracultura vinha falar comigo como se eu realmente tivesse movimentado alguma coisa, saca?!” relembra Matheus.
Diante do cenário atual do Brasil, mais precisamente o combo de pandemia + governo fascista + explosão de ataques racistas, Coringa reforça a importância de vigiar uns aos outros assim como a comunidade negra tem feito, buscando se proteger e se confortando uns com os outros. Em Pane , single integrante do álbum El Torto (previsto para ser lançado em 2021), o MC fala sobre isso de forma suja, “agressiva” e pungente, assumindo uma postura descrente com a política e os rumos do país.
“Eu to dentro de uma cultura que eu sei que eu não pertenço mas ao mesmo tempo ela me ensinou a ir contra todas as coisas que eu abomino. Meu posicionamento político é bem direto. É foda. Eu queria que as pessoas não se espantassem com isso ou pedissem retratações sempre porque tem que ser algo normal. É o que a gente vê, o que a gente sente… São pessoas que a gente perde que nos faz falar sobre coisas que ninguém quer falar” desabafa.
Confesso que o refrão de PANE é um dos meus preferidos e desde a primeira vez que ouvi me pergunto até que ponto vale tentar se adaptar a padrões predatórios e preconceituosos. Certamente, a reflexão vale não só sobre um estilo de vida capitalista que nos é empurrado desde que nascemos mas também sobre os lugares que estamos incluídos como cidadãos e até mesmo artistas e consumidores de arte. Até onde estamos confortáveis a ponto de fecharmos os olhos e ouvidos para o que acontece fora de nossos grupo sociais? Matheus sabe o que tem pra dizer. E sabe dizer sem rodeios.
“Daqui um tempo o pessoal vai me entender. Eu já tô com mais de 100 músicas lançadas, eu tenho muito trabalho pra ser pesquisado… nem eu consigo parar pra analisar todos os trabalhos que eu já fiz. Eu tenho muito material pra pessoa olhar e falar assim: “mano, esse moleque tinha alguma coisa para falar!”. Eu vou ser entendido daqui a 10 anos, 20 anos ou nunca serei entendido, mas eu vou continuar fazendo o que eu faço de melhor, que é arte. E é mesmo.
Por Gabriela Santos
Ouça o último trabalho de Matheus aqui:
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