Bob Dylan lança I Contain Multitudes, single portador de uma poética existencial comovente.
São duas da manhã de um desses dias angustiantes da quarentena. São os detalhes que tornam esses dias diferentes. Geralmente acontecimentos inusitados que marcam a ferro em brasa esses dias. Este passou a se distinguir dos demais graças a uma mensagem recebida por mim via whatsapp. Marcante devido a pessoa que a enviou, mas também pelo conteúdo que ela trazia.
A mensagem informava sobre a nova música lançada por Bob Dylan. Ainda mais importante, a pessoa dividia comigo a mudança que a audição da música provocara em seu espírito, agora em êxtase. Imediatamente cliquei no link enviado e segundos depois ouvia I Contain Multitudes … ouvi em silêncio, sentindo aquela melodia suavemente se movendo sobre uma harmonia terna, que não me deixou em êxtase, mas trouxe serenidade, estado de espírito apropriado para a condição em que me encontrava.
Antes de lançar mão do teclado e escrever este texto, ouvi algumas vezes a música, antes de fazê-lo de posse da letra. Foi então que pude vislumbrar as imagens construídas pelos versos de Bob Dylan, os segredos que elas contém sobre a vida de quem teve as vivências de multidões. O eu lírico não é o de uma persona singular, mas um eu cuja consciência transcende este eu, manifestando-se em uma multidão de outras subjetividades.
A frase “I contain multitudes” (Contenho multidões) está em uma estrofe do poema “Song of Myself” (Canção de Mim Mesmo) do poeta estadunidense Walt Whitman. Eis a estrofe:
“Do I contradict myself?
Very well then … I contradict myself;
Iam large … I contain multitudes.”
Segue abaixo a tradução de Rodrigo Garcia Lopes, tradutor do famoso livro de poemas do poeta estadunidense intitulado Leaves of Grass (Folhas de Relva), que saiu em belíssima edição pela Iluminuras. A edição que usamos é de 2005.
“Me contradigo?
Tudo bem, então … me contradigo;
Sou vasto … contenho multidões”.
Dylan segue os passos do velho Whitman para abordar as múltiplas faces presente em sua subjetividade, o que faz dela vasta, contraditória e por isso mesmo diversa e complexa. Isso me faz lembrar de I’m Not There (2007) (Eu Não Estou Lá) do diretor Toddy Haynes, que conta a história de Dylan a partir de diferentes personas, que marcam diferentes fases da vida do músico. A compreensão de Bob Dylan como a manifestação de várias personas o acompanha de longa data. O próprio Dylan se compreende assim. Ao longo da carreira sempre se apresentava como uma incógnita, alguém que ao se definir iniciava a se modificar, sempre em transformação, sempre se re-definindo.
A maneira de compor os versos de I Contain Multitudes tem similaridades com o estilo de Whitman. O tom solene, as descrições dos estados de espírito a partir dos acontecimentos, versos longos que vão se desdobrando ao longo da música, apresentando uma face e a desfazendo para que outra se forme. Multidões vão se movendo. Cada estrofe é fechada pelo verso “I Contain Multitudes”, um lembrete de que as façanhas contadas naquele conjunto de versos, as referências feitas apontam para diferentes personas, para uma o múltiplo contido no uno.
Dylan nos mostra que envelhecer pode significar se elevar sobre a planície temporal e admirar a própria existência a partir dos acontecimentos, dos encontros, ocorridos, que ocorrem e apontam para os que ocorrerão. Se há elevação espiritual, Bob Dylan a encontrou e olha para si mesmo e vê uma infinidade de versões de si mesmo, porque olha a si mesmo e ao mundo com olhos de poeta.
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