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28 nov 2024




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Cortázar, Honkers e o acaso em clipe da Malta Cinema &Som
Destaque

Cortázar, Honkers e o acaso em clipe da Malta Cinema &Som 

Os diretores Diego Haase e Rodrigo Araújo mostram a atuação do acaso sobre nossas vidas em clipe de música dos famigerados The Honkers .

O clipe da música Nothing Will Ever Change The Way da banda The Honkers tem seu argumento inspirado pelo conto História Verídica do escritor argentino Julio Cortázar. O cerne, tanto do conto, quando da história contada no clipe, está na dicotomia entre determinismo e acaso.

Aprendemos desde muito cedo a nos definirmos enquanto espécie a partir da racionalidade. É a razão aquilo que faz de nós seres humanos. Contudo, nosso cotidiano é orientado pelas experiências que temos dia após dia. Pelo costume de observar e interagir com o mundo ao nosso redor, somos levados a atribuir vínculos necessários entre os eventos ocorridos no mundo. Assim, acreditamos que eventos experienciados constantemente da mesma forma, continuarão ocorrendo da mesma maneira sempre. Bom, assim ocorre até que algo contrário àquilo que por força do hábito esperamos ocorrer aconteça de outra forma.

Estamos a todo instante sendo espreitados pelo acaso, por mais que a experiência nos transmita a sensação de que tudo ocorre dentro de uma regularidade. Bom, ocorre mesmo, mas não há garantias de que essa regularidade não possa sofrer alterações.

Essa dicotomia entre acaso e determinismo, responsável por moldar nossa percepção da realidade, aparece pelas situações que envolvem os óculos do trompetista vivido por Sputter no videoclipe. Quando estes caem ao chão com suas lentes desprotegidas, despertam no músico a reação de quem espera apanhar os óculos e encontrar ao menos uma de suas lentes rachada. Porém, tal expectativa não se satisfaz, o músico é levado a experimentar outra sensação, a de surpresa pois seus óculos estão intactos.

Diante desta vivência, o trompetista aprende a ser mais cuidoso, vislumbra as consequências de seu descuido e se dirige a uma ótica. Lá adquire uma caixa de proteção para os óculos e revestida com material acolchoado na parte interna. Agora sim, não há com o que se preocupar, os óculos estão protegidos. 

O trompetista experimenta a sensação de segurança transmitida pela experiência, que sempre mostrou que nessas condições nenhum óculos teve sua lente rachada. Eis que durante uma corrida o desajeitado trompetista deixa a caixa cair. Ao abri-la o músico, incrédulo, atônito,  olha as lentes rachadas e por um instante se sente mergulhado num mundo caótico, moldado pelo acaso. O funcionamento regular do mundo é pulverizado por aquele acontecimento, dando lugar a aleatoriedade dos fenômenos físicos, onde tudo é possível e nada é passível de determinação. 

Essa é a espinha dorsal do conto de Cortázar, portanto, do roteiro de Nothing Will Ever Change The Way. Outro elemento importante no roteiro do clipe é a figura do músico, mas não de um músico qualquer, do músico de jazz. Mas não de um músico de jazz qualquer, mas daquele músico de jazz amador, que toca por amor à música ou por necessidade de sobrevivência ou pelos dois motivos. 

Cortázar era um amante do jazz, considerava o gênero a verdadeira música universal criada no século XX. Juízo compartilhado com grandes estudiosos do gênero como o crítico musical e estudioso da história do jazz, o alemão Joachim Berendt e o crítico de jazz estadunidense Stanley Crounch.   

O escritor argentino era músico amador, arriscava umas notas no trompete, um dos instrumentos centrais do jazz. Dessa paixão de Cortázar pelo jazz veio outro elemento para  a composição do clipe.

O protagonista, o trompetista vivido por Sputter, está em casa deitado em sua cama quando o telefone toca. Ele conversa com alguém ao telefone, ao que tudo indica, trata-se de uma mulher com quem tem algum vínculo afetivo. Por algum motivo que desconhecemos, apostaria que envolve a mulher com quem fala ao telefone, está abalado. Um adendo, quem conhece Sputter pode achar que essa cena do clipe é baseada na vida amorosa do roqueiro, mas é mera coincidência nesse caso específico.

Nesse momento ouvimos ao fundo a melodia de ‘Round Midnight‘, clássico de Thelonius Monk,  sendo executada toscamente por um trompete. Esses dois elementos, o trompete e sua execução mambembe, remetem à figura de Cortázar, talvez uma forma dos diretores homenagearem o autor responsável por inspirar o roteiro do clipe.

Quando a música dos Honkers começa, descobrimos que o personagem principal é este trompetista amador que toca seu trompete pelas esquinas da cidade em troca da contribuição dos transeuntes que porventura gostem do seu som. Talvez possamos entender esse personagem como um Cortázar de uma realidade alternativa, uma realidade em que Cortázar abriu mão de ser escritor para viver seu sonho de ser músico.

Em tal realidade ficou provado que Cortázar não tinha talento pra música, o que estava indicado no início do clipe, quando o personagem tenta sair da cama e a melodia de Round Midnight é executada de forma vacilante. A certeza vem quando um transeunte, interpretado pelo galante baixista dos Honkers, T612, recolhe irritado o dinheiro que havia depositado no chapéu desse Cortázar alternativo, talvez  a motivação tenha vindo após ouvi-lo tocar seu trompete. Tal situação só nos faz comemorar por vivermos na realidade em que Cortázar se tornou escritor. 

O videoclipe do single Nothing Will Ever Change The Way dos The Honkers foi produzido pela Malta Cinema & Som e dirigido por Diego Haase e Rodrigo Araújo. Protagonizado pelo cantor Rodrigo Sputter, o clipe conta no elenco com a participação da artista/ativista Ivana Chastinet e o baixista T612 também da The Honkers.

Abaixo o conto que inspirou o clipe. 

 

História verídica

                                     Julio Cortázar

Um senhor deixa cair ao chão os óculos, que fazem um barulho terrível ao bater nos ladrilhos. O senhor se abaixa aflitíssimo porque as lentes dos óculos custam muito caro, mas descobre assombrado que por milagre elas não se quebraram.

Agora esse senhor sente-se profundamente grato, e compreende que o acontecimento vale por uma advertência amistosa, de maneira que se dirige a uma ótica e compra logo um estojo de couro acolchoado, com proteção dupla, como precaução. Uma hora depois deixa cair o estojo e ao abaixar-se sem maior preocupação verifica que os óculos viraram farelo. Esse senhor leva tempo para compreender que os desígnios da Providência são insondáveis e que na realidade o milagre aconteceu agora.

 

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1 Comment

  1. Rodrigo Sputter

    pRA MIM O MELHOR TEXTO MUSICAL/CULTURAL DO BRASIL É O DE CARLIM!
    TRAZ NÃO SÓ REFERÊNCIAS DA MÚSICA “POP” (E ALÉM), MAS DE FILOSOFIA, LITERATURA, CINEMA E ETC…TUDO ISSO MUITO BEM ESCRITO…SEMPRE QUE LEIO AS MATÉRIAS DELE, EU LEIO COM PRAZER.

    nÃO SABIA QUE CORTÁZÁR ERA TROMPETISTA DE JAZZ, QUER DIZER, TENTOU SER…MUITO BACANA…NÃO LEMBRAVA DO CONTO…MUITO LEGAL…CURTO…DIRETO…

    FALANDO SOBRE os acasos da vida, a tragicidade da vida vida e os acasos ocorreram e muito nesse clipe…primeiro era pra ter sido um curta…foi rodado em 2013…mas com problemas de áudio e as surpresas e tragédias que a vida traz, o material saiu como clipe somente em 2018, comemorando os 20 anos da banda…lançado no festival big bands, no show em que a banda comemorou suas duas décadas…infelizmente, muito infelizmente, a grande atriz e amiga ivana, faleceu em 2017 e não pode ver o corte final…tem muita imagem boa que ficou de fora do clipe…que apesar de ser um outro corte, com um final mais “trágico”, eu gostei bastante…mas gostaria de algum dia ver esse material todo montado e reunido…a malta é mágica nas capturas de suas imagens…esse é meu trabalho com eles que mais gosto do resultado, quer dizer, meu resultado enquanto “ator”, assim como cortázar, eu fracassei nesse quesito…aliás como cantor também…mas o rock, esse danado, faz com que @s losers consigam tropeçar elegantemente.

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