Lia Lordelo e sua Torquatália (2020) atualizando o Nosferatu Tropical, em um EP de intensas faixas com releituras da obra do Torquato Neto!
Para iniciantes na obra do poeta piauiense Torquato Neto, a experiência de ouvir Lia Lordelo no seu EP de estréia Torquatália (2020), é o convite/convencimento prudente, potente e belo para que entreguemos nosso pescocinho à mordida do nosso Nosferatu Tropical. O poeta nunca morreu, ele está ali na escuridão do virtual caixão à espera do convite, do encontro, na espreita da vida, pelos bares, pelas ruas e nas praças!
A ilusão da morte do poeta é apenas um artifício para nos propiciar esse ataque visceral operado por Lia e os meliantes auto nomeados com bastante seriedade de Laia Gaiata. E é na gaiatice e no rigor brincalhão que esse trabalho se coloca no risco de atualizar e oferecer uma expressiva homenagem: uma Torquatália. Composto como um bom e velho compacto duplo, as quatro faixas selecionadas pela trupe não poderiam chegar em melhor ocasião. Aliando a excelente e vital Lia Lordelo que canta canções consagradas com um novo sabor, verdadeiros clássicos da música brasileira, com arranjos arrojados que apresentam esses petardos totalmente renovados, novos de novo.
É curioso notar o quanto ouvimos essas faixas ao longo da nossa formação musical, em quantas noites elas voltaram para nós em nossos próprios rituais de auto imolação ao álcool, no favorecimento das amizades e dos bons encontros. Ouvir agora Torquatália, e perceber como essa galera se apropriou perfeitamente e ajeitaram as poesias de Torquato em outros climas, extraindo toda a vitalidade que ele derramou nessas músicas, o deixaria feliz. A Laia Gaita e a Lia Lordelo “transaram” muito bem o material!
A forma como as composições dialogam com o presente em que vivemos, também é outro aspecto assustador, e só reafirmam a força da poesia do piauiense. Lançado pelo Sê-lo! NetLabel, o disquinho demonstra como é possível recriar uma obra que poderia parecer datada ou mesmo irretocável. Bobagem, aqui está a prova de que músicos ousados o suficiente podem sempre adicionar groove e balanço, e mostrar o quanto a arte de um compositor, poeta, crítico, cineasta, tão pleno de vida, não poderia ficar marcado pelo suicídio, ou na pecha de poeta maldito. Bendito seja Torquato, bentocado, bencantado, benabusado, beniconoclasta!
A clássica faixa “Mamãe Coragem” abre o EP e recebe uma viola sertaneja e cândida roupagem inicial que segue a trilha da mensagem anti-edipiana até a entrada violenta e o aumento da força na execução, com a guitarra entrando mais firme no jogo. O nomadismo encarnado por Torquato que veio morar em Salvador com 16 anos e onde conheceu Caetano, Gil e outros dessa laia. A Gaiata de algum modo construíram um trilha sonora desse trajeto com as mudanças de andamento, as partes mais explosivas, Lia Lordelo já super entrosada com a banda.
Um começo onde a trupe já abre a caixa de ferramentas com gosto e vontade. Funkzeira gostosinha é a “Marginália II” ? É sim, de verdade e sem baixo, a Laia Gaiata é formada por Antenor Cardoso (bateria, percussões e synth), Heitor Dantas (guitarras, viola caipira, vocais e programações), Uru Pereira (fagote). O grande Edbrass Brasil (trumpete preparado, samples, vocais) tocou e foi o responsável pela direção artística do trabalho, e os caras autodenominam esse trampo como um pop de vanguarda, e se você se der o desfrute de ouvir vai ver que não é de boca não. Eu brasileiro confesso, essa música é aquele Brasil que deu certo, é aquela promessa de futuro que nossos esforços criativos sempre imprimem, apesar do contraste de uma história que não desmentiu o Torquato até hoje, pelo contrário e dado o momento atual, o fim do mundo é realmente aqui.
O trabalho vocal da Lia Lordelo preenche com uma voz cristalina os espaços e canta com muita desenvoltura em cima da groove, numa pegada que nessa quarentena e até o fim do mundo você não vai parar de dançar. Aliás, sempre serena ao longo de todas as quatro faixas, a cantora baiana de ampla e reconhecida carreira teatral faz um trabalho fantástico no decorrer de todo o EP. Em “Todo Dia é Dia D” Lia Lordelo canta de modo solar para a faixa mais rocker do Torquatália, e aqui em nossa humilde opinião a força vital da arte de Torquato encontra seu maior manifesto, para além de si mesma. Uma pedrada!
O disco Torquatália é fruto de pesquisa e de apresentações ao vivo e as elocubraçoes dessa turma em misturar instrumentos não muito vistos no pop. a exemplo do fagote do Uru Pereira na faixa que encerra os trabalho: “3 da Madrugada”. Há inserção de samples, a Lia conduz com maestria a poesia e esse caminhar pelas ruas vazias, uma volta pra casa talvez, se encerra como um momento forte, alegre, nada melancólico ou tristonho. É um encerramento adequado à força que esse projeto bebe na obra do poeta e nos devolve de modo potente e assertivo.
Ouça o disco e compartilhe!
-Lia Lordelo e sua Torquatália (2020) atualizando o Nosferatu Tropical
Por Danilo Cruz
Foto Imagem Destacada – Patricia Almeida
Fotos internas da matéria Germano Estacio
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