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Isaac de Salú – singles, angústias, lixos eletrônicos e o Filho do Diabo (2020)

Isaac de Salú singles, lixos eletrônicos e o Filho do Diabo (2020), o MC paulista vem num ritmo muito forte para o disco de estreia!

Não é preciso muito esforço para percebermos que o exercício artístico do Isaac de Salú carrega um certo viés que se aproxima de uma espécie de auto exorcismo, carregado de uma dramaticidade muito forte nas tintas. Ele pinta os seus afetos, suas questões, cenários políticos, a condição do artista independente, sempre com cores fortes. Na maioria de suas tracks solo ele performa tristeza, desilusão, dificuldades sociais, perdas no campo pessoal, mas ao invés de fazê-lo com choramingos, sussurros e soluços, ele grita, esperneia, desabafa. Fazendo da sua arte, uma contra efetuação de todas as tristezas que o mundo lhe impõe. Algo que em sua lírica expressa uma urgência que não é apenas algo apenas do artista, mas também um fruto do tempo que vivemos. 

Há uma urgência que pertence a forma como as pessoas hoje encaram a sua relação com o tempo, uma necessidade de rapidez fruto da conectividade total, das informações em tempo real, e de ligações mais fluidas/líquidas em termos pessoais. Há uma outra urgência que talvez hoje se potencialize muito por conta da primeira e que diz respeito às opressões e desigualdades históricas em nosso país. Esses dois pólos formam uma erupção poética no obra do Isaac de Salú, algo expresso e que atravessa toda a sua obra, dos seus singles até o seu último trabalho cheio.

A carreira artística em nosso país quando traçada para ser feita com verdade, sem se manufaturar como um produto clichê, é sempre um caminho tortuoso. A caminhada que Isaac de Salú vem traçando e que pudemos perceber no documentário em curta-metragem Efeito Violeta (2018), é interessantíssima e joga mais luz ainda naquilo que já captamos em suas obras. Tendo forjado dois projetos ao longo dos últimos 9 anos- Chaplin Crew e Inversamente – a atual persona de Isaac, incorpora o desenvolvimento dessa trajetória, mas também sua ancestralidade. 

A marca da “maldição” artística vem de Nova Soure (BA), e foi encarnada – geneticamente? – por Isaac como herança do seu avô paterno Pedro de Salú. O não reconhecimento de parte da família, dos colegas de trabalho, encontram na expressão de um sonho de sua mãe a confirmação de seu caminho é esse. Localizado no divisa de São Roque com Itapevi (SP), o artista tem lançado trabalhos cada vez mais consistentes e seguido firme na mesma luta que foi do seu avô: Ser um artista independente. Talento não é algo que falta ao seu trabalho, a criatividade, a ironia e um discurso que vem se afiando cada vez mais são outros tantos ingredientes da sua receita singular.

Esse artigo foi inicialmente motivado pela audição de seu último EP O Sexto Filho (2020), mas como sempre fazemos por aqui, ao não reproduzir release mas sobretudo querer ter algum entendimento melhor sobre um artistas, fomos ouvir sua obra. Sim, confesso que apesar de estar em nosso radar há algum tempo, eu só tinha visto apenas alguns singles. O tempo urge e como um bom velho, prefiro ganhar tempo com trabalhos cheios, ao invés de perdê-lo no oceano de singles lançados diariamente. Dito isso, é fundamental ouvir e conhecer o percurso trilhado pelo artista até esse seu último trabalho.

Em Violeta (Prod. Salú) lançado como clipe em 2018, Isaac de Salú lança na verdade uma carta de intenções que expressa todo o turbilhão de inquietações que lhe sacodem a alma e que serão desdobradas em outros trampos. Do não reconhecimento da Kesia até o peso de ter que lidar com problemas e querer expressá-los como arte, assim como a herança do seu Vô, e a necessidade de ter que ter um trabalho “normal”, castrando seu tempo, são algumas dessas questões.

Ainda no mesmo ano e com o saldo do seguro desemprego, a ironia e o questionamento da indústria é o tema de O Hypado mais Flopado do Ano (Prod. Crow), onde o MC performa uma crítica e ao mesmo tempo ironiza o cenário, citando sites, youtubers e outros artistas do cenário nacional do rap. Música bem forte, e que recebeu também um audiovisual da ABD PRODUÇÕES, que também ironiza o formato dos clipes do Trap mainstream. 

Esse movimento deságua em O Peixe se afoga com Ar (Prod. Bon Beats), onde o rapper tem uma espécie de síntese das problemáticas dos dois trabalhos anteriores. A direção de Alder Alcaraz e a atuação do artista, dichava a contradição de mergulhar profundamente, viver imerso nas questões humanas para transformar em arte, e a necessidade de sobreviver buscando trabalhos comuns. A sua herança que lhe impinge a colocar pra fora seus demônios internos de modo artístico e precisar carregar pesados pianos para se manter, tendo ainda que lidar com os problemas que derivam do aprisionamento interno dessas angústias. 

Esse peixe tirando moedas da boca, soltou Sal Cru Vol.1 (2019) um simulacro de disco feito e costurado de restos, de sobras, de materiais que poderiam estar na lixeira do seu pc, mas que de alguma moda é também o reflexo daquilo que ele vem construindo. Essa necessidade que Isaac de Salú esperneia, essa luta que empreende através de flow dramáticos, aqui já tem na primeira faixa uma boa resposta. A relação com o tempo é talvez o principal problema que o ser humano enfrenta diante da existência. Dito de outro modo, a certeza da morte e a no caso aqui evidenciado a necessidade de produzir algo próprio. 

Escarrar, defecar, esse disquinho de evacuação é um trabalho de transição de reunião de um eu fragmentado por todos os problemas acima mencionados. As produções são do próprio Salú, os beats são mais calmos, mais sombrios do que até então o mano apresentava. A luta contra a ansiedade – signo maior do nosso tempo – aqui curiosamente recebe um tratamento através de um flow mais cadenciado, porém ainda gritante. Ao longo dos trabalhos do Isaac e aqui em Sal Cru, o aprofundamento daquela necessidade que o artista no conta no documentário, é mais e mais intensa, ele fala muito de si mesmo, e descreve bastante bem como a arte é o exorcismo que lhe dá saúde. 

Há a participação da Myrella com uma narração em estilo livre na faixa Pombo de Osasco, o dedo podre no grande purê do absurdo – que imagem – do MC paulista é algo necessário para pensarmos o conjunto do socius como algo adoecedor. Assim como para pensarmos a arte como a grande saúde capaz de enfrentar e gerar horizontes, dar-nos aquelas asas que não engrandecem de modo socialmente aceito, mas nos fazem flutuar no azul. Tempo, se relacionar bem com o tempo, viver mais a duração do que a cronometragem dos sonhos acordados, desfrutar a vida, mais do que problematizar de modo doentio o tempo inteiro o sistema caótico em que vivemos. A última faixa do Sal Crú é uma palestra da mãe do artista que não precisou ler o filósofo sul coreano Byung-Chui Han para entender a Sociedade do Cansaço.

Nas relações entre as virtualidades e o mundo atual, a luta continua e a arte busca também através dos seus próprios meios interferir politicamente. Não é preciso aqui contextualizar o leitor sobre o caos histórico em que estamos imersos. É nesse contexto que surge a virtuosa fabulação que é o EP O Sexto Filho (2020) que apresenta 5 faixas. A intro corta um pouco do barato, pois quebra de saída a verossimilhança e as possibilidades de vivermos como real essa ficção. 

Assim como em Flow Waldomiro, a uma crítica muito bem feita às igrejas neopentecostais e sua teologia da prosperidade que embarcaram salivando na maior aventura fascista da história do país. O personagem conceitual chamado de O Sexto Filho, encarna muito bem um desejo que qualquer intolerante com a intolerância, que qualquer antifascista se identificará diante da escória que nos afunda numa hecatombe. Com produções de HitBoy Jxf e mix e master do Bon Beats, os traps presentes no disquinho são todos para fuder o estado, mas sobretudo são questionamentos muito bem feitos.

O cristianismo é a instituição mais genocida da história, sendo as igrejas neopentecostais apenas o último baluarte desta longa tradição. O deus louvados nessas igrejas e reclamado pelos cidadãos de bem, são como bem colocou em a Essência do Cristianismo, o filósofo alemão Ludwig Feuerbach apenas um reflexo desses homens e de seus desejos. Ou nas palavras do próprio: “Como forem os pensamentos e a disposições do homem, assim será o seu Deus; quanto valor tiver um homem, exatamente isto e não mais, será o valor de seu Deus. Consciência de Deus é autoconsciência, conhecimento de Deus é autoconhecimento”.

E é contra esse duplo que também é fruto do nosso passado escravocrata e de ditaduras que nunca foram passadas a limpo, que toda a fabulação presente em o Sexto Filho (2020) se coloca como diametralmente contra. É muito interessante, ver o percurso artístico que os singles, Sal Cru Vol.1(2019) e esse último EP constroem, é exorcizando a si próprio, que qualquer pessoa é capaz de se sentir melhor, alguns o fazem com drogas, outros, com trabalho, outros ainda com hobbies ou lazer. 

Isaac de Salú é um jovem que através do rap e da cultura hip-hop descobriu seu modo próprio de exorcizar-se através da arte e consequentemente enfrenta os mesmos problemas que muitos. Porém, ao enfrentá-los, passa de si mesmo ao coletivo, e nos ofertar música, arte, uma forma de pensamento elevada e capaz de elevar, expressa saúde às custas de suas doenças. Seus expurgos nos oferecem beleza e verdade, que ele continue e nos apresente a Assembléia de Eu’s (2020), seu disco que está no forno. 

Amém!  

-Isaac de Salú – singles, angústias, lixos eletrônicos e o Filho do Diabo (2020)

Por Danilo Cruz

 

 

 

 

 

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