Bivolt é fio desencapado, a cantora e MC produz uma amperagem nova no cruzamento de correntes em seu primeiro disco com muita força e beleza
Diante do disco de estréia da Bivolt, o senso comum vai relacionar apenas o conteúdo do disco a um procedimento simplório de analogizar os climas presentes no disco ao que as duas faixas que se destacam pelos títulos, e o seu próprio nome artístico já evidencia. O fato de que o lado 110v do disco está ligado a músicas mais calmas e que a outra voltagem, em 220v seja a parte mais energética, é algo notório e entregue de mão beijada. Sendo assim nos perguntamos: É só isso mesmo? Só podemos entender esse disco dentro dessa dicotomia fácil?
E é óbvio que não né, pois já afirmamos acima que isso é o senso comum. O exercício da escuta precisa sempre almejar algo além, é possível ouvir, ler, assistir qualquer coisa e ao buscar produzir algo sobre aquilo, uma conversa, um podcast ou mesmo um texto, exprimirmos outras relações menos evidentes. Isso certamente só é possível se para além de uma posição de destaque, a nossa escrita realmente é sincera naquilo a que se propõem: ouvir de fato as mulheres do rap nacional.
Um disco como esse que a Bivolt lançou precisa ser ligado ao fora, é necessário fazer uma “ligação direta” com o contexto em que esse álbum surge, e sobretudo na conjuntura em que ele se insere, com qual história ele negocia. São 14 faixas a surgir na sexta anterior ao dia Internacional da Mulher, sempre expressando a clara e indubitável qualidade artística da MC paulista, não importando em que ela cante ou rime. O álbum Bivolt (2020) pode exprimir uma deusa da destruição como Kali e ao mesmo tempo passear por diversos aspectos mais amenos de um feminino que não se deixa encerrar pela definição de outrem.
A audiência desavisada com certeza encontrará nesse disco um exemplo distinto do quanto as mulheres são avançadas num nível em que a maioria dos homens não alcançam no rap nacional! De modo geral, Bivolt caminha por diversos caminhos com sua voz, seu flow, suas composições mostrando o quanto discos de rap vindo de mulheres são sempre surpreendentes, pois geralmente são muito bons nos modos tradicionais do rap, e ainda conseguem ir além e trazem além de boombaps e traps, ragga/dancehall, neo-soul e R&B de bônus, e por vezes explorando o pop com altivez. O timbre vocal da Bivolt acrescenta um charme todo especial pois guarda em si todas as tonalidades de um feminino livre de amarras.
Uma artista da envergadura da Bivolt, que acompanhamos desde que ela gravou com a Cintia Savoli, ao lançar um disco por uma grande gravadora vai muito além de uma mera conquista pessoal. Querendo ou não, dando-se ou não a perceber, esse primeiro disco impressiona e marca uma mulher mc com amplo reconhecimento no underground, numa grande empresa com um disco que chega muito bem no público, assim como na crítica. E isso é algo marcante, pois em geral vende-se no mercado oficial uma imagem da mulher no rap que geralmente é limitadora. Apesar de diversos discos e produções de mulheres romperem com essa imagem, é o disco da Bivolt, que começando o ano de 2020 chega pleno, dentro de uma major, sem prisões, ou caixinhas estanques.
Será talvez um caminho a mais para que os discos de outras mulheres, passem a ser valorizados pela sua devida qualidade. Pois em geral discos de mulheres no rap nacional não são tão bem valorizados, e aqui nos cabe notar esse problema, e o quanto Bivolt (2020) é mais um supremo esforço buscando furar a bolha rap feminino.
Tal operação ocorre não por ser um disco lançado por uma major, mas pela extrema competência artística presente ao longo do disco, e que conta com a direção musical do mestre Nave e mix e master do grande Luiz Café. O álbum apresenta diversas sonoridades e em todas elas a Bivolt deita e rola, produzindo com uma artesania fina, uma imagem complexa do seu feminino. Os choques operados pelas distintas faixas em suas propostas são sempre dos bons, a força da corrente elétrica atua em dois níveis básicos como alertamos acima, mas a amperagem diz-se da coerência estética, da força da arte da MC, assim como das participações.
O disco progride nos mostrando as diversas faces da artista, e caso curioso de notar, não levanta necessariamente nenhuma bandeira ao longo do disco, ficando mais restrita às tonalidades sonoras e poéticas, do que a um discurso único, ou a pautas do momento. A imagem que a lírica da Bivolt eleva é a de uma mulher consciente de sua potência, consciente do nosso contexto político e social, consciente da história do rap nacional (um salve a mestre Rúbia RPW). E tudo isso sem tocar diretamente nestes assuntos. Na faixa “Me Salva” Bivolt utiliza sua voz com uma qualidade muito grande, um baixão conduzindo das rimas ao canto do refrão, onde a MC se propõe a fugir rumo ao cosmo, numa conversa com um alienígena.
A malandragem, as vivências de rua são expressas em todas as faixas, mesmo naquelas que aparentemente flertam mais abertamente com o pop. Em “Murda Murda” com participação das manas Tasha & Tracie, temos a grande declaração gangsta mulherista… As três lobas que mostram muito peso nas linhas, formam aqui uma declaração digamos mais pungente e direta daquilo que vivem e apresentam em letra e música, com um estilo único…
Se sua escola são as batalhas freestyle, Bivolt muito ligada a Batalha da St. Cruz, e tendo ganhado diversas batalhas pelas ruas de SP, seu espectro rimático trabalha com desenvoltura, seja no Trap (“Tipo Giroflex prod. Filiph Neo”) junto ao Jé Santiago, seja com Dada Yute, Nave e Tropkillaz bagaçando no dancehall, “Freestyle”.
É certamente a variação de correntes musicais aquilo que mais salta aos ouvidos na primeira audição. Junto a isso a coesão que acima mencionamos, que nos faz passar pelas 14 faixas com tranquilidade, curtindo cada momento em si mesmo, e chegando ao final percebermos o quanto o disco nos fisgou. Em “Você Já Sabe (prod. Vibox)” a Bivolt emana muita auto-segurança nas linhas e ao mesmo tempo firma seu compromisso com a coletividade e com a história do movimento hip hop (Scratches e colagens do DJ Nato). “Cubana (prod. Nave e Douglas Moda)” valia um clipe num dance originariamente cubano, dançante e com toda a cara de hit, é uma daquelas faixas em que ela extrapola no flow. A vibe mais reflexiva de “Mary End” é uma das que calam fundo por tudo, os trompetes, as vozes, o violãozinho, e a melodia, uma das produções mais gostosas do disco, e a entonação da Bárbara, é uma aula… Mesmo sendo suave, Bivolt exala gangueiragem, “Peixinhos” é só ideia reta, numa chave 110v.
“Susuave prod. Bolin” vai na boombapzera jazzistica, com uma malemolência bacanuda. A dançante e sexy/romântica “Sigilo prod. Nave e Feijuca” (part. Xênia França), convence na perícia da execução e no refrão chiclete de alto potencial radiofônico. E se não bastasse ainda temos o Lucas Boombeat em “Hipnose” num trap pesado… O lance é que o disco é muito bem executado, inova e é um lançamento que certamente figurará nas listas de fim de ano, mas ainda existe um fato final que nos parece dar o sentido principal desse excelente disco de estréia.
Fugindo da dicotomia fácil, o cruzamento das duas correntes 110v/220v gerando uma outra experiência audiovisual é o produto final que nos parece dar um sentido maior e fugidio do entendimento comum. Bivolt produz uma experiência nova, mas também demonstra que está além de uma dicotomia que poderia encerrar o disco entre bobagens como carinhosa/agressiva.
Além de ser a primeira experiência estética desse estilo de que se tem notícias até então, essa última faixa que poderíamos chamar de a 15º do álbum se configura como um marco para a cena do rap nacional. É também mais do que uma experiência de meras voltagens diferentes, aqui se trata de uma amperagem nova. E essa amperagem nova contribui para um outro entendimento necessário para todas as mulheres que participam da cena nacional e buscam seus espaços.
O disco da Bivolt escreve o nome dela na cena, a base de choques e muita luz, de intensidades e correntes diferentes. É um disco necessário e uma abertura interessante para mulheres demonstrarem sua independência estética e a força de sua arte, mesmo em uma grande gravadora, escute!!
-Bivolt é fio desencapado, e traz uma amperagem nova!
Por Danilo Cruz
Leia mais sobre o disco no Noticiario Periférico
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