Wall soltou EHLO (2020) Um olhar profundo em si e no entorno, feito por um homem que assume sua negritude na amplidão da consciência hip-hop
Há mais ou menos quatro anos noticiavamos o clipe de WWL Rap: Ainda existe escravidão, de lá pra cá é um prazer soltar esse texto sobre o EP de Wall EHLO (2020). Pois, percebemos com facilidade a evolução musical pela qual passou o rapper soteropolitano, ao longo dessa caminhada que vai do seu antigo grupo até esse passo firme e muito bem alicerçado em sua carreira solo. Entre as constatações dos problemas existenciais que a vida da população negra em diáspora sofre por conta da estruturação histórica e social do racismo em seus fenômenos de superfície ali naquele primeiro trabalho a que tínhamos acesso e hoje, o salto é evidente.
Existem muitas formas de se fazer hip-hop, e uma delas é ser pedagógico em rimas e flows e educar nosso povo. Isso o WWL tinha de sobra, com muita qualidade, muita força nas rimas no seu EP Tinha que ser Preto (2016), formado naquele momento por Lucas Santiago, Wall Cardozo e Wesley Correia. O fato é que esses jovens faziam um rap que informava e contribuia muito para a juventude negra de Salvador, e ao chama-los de pedagógicos não pensem com isso, que estou atribuíndo qualquer amadorismo pros caras.
Não, a questão aqui é que artisticamente eles estavam verdes, buscando sua linguagem e ainda assim fazendo boas músicas. Existia lá uma formação em curso, algo evidente se pensarmos que há quatro anos atrás eram meninos de 19 anos mais ou menos. Porém, a arte expande subjetividades e o exercício artístico busca sempre a expansão de técnicas, conteúdos, métricas e flow. Mas então Danilo, o que o EP solo de Wall traz de tão novo assim?
É mais ou menos simples responder isso, há uma mudança de posição, de postura e consequentemente das formas de expressão que saem do acusatório e denunciante: Tinha Que Ser Preto (2016), e caminha para uma busca muito mais complexa e necessária. Em EHLO (2020), o rapper Wall se apropria de sua negritude, das problemáticas antes levantadas, para assumi-las todas num devir, num tornar-se negro que arrasta com isso sua arte para outros niveis de complexidade.
Não estamos viajando, não é que Wall não fosse negro antes, que não possuisse as vivências que qualquer outro jovem negro possui, não é que ele não sofresse racismo, como qualquer outro jovem. Mas é que em sua trajetoria como homem e como artista negro em uma Salvador (a cidade mais negra fora da África e das que mais mata preto no Brasil) desenvolveu um bisturi fino para operar essa mesma estrutura racista. Inclusive para cirurgicamente sair das acusações, das meras alusões, para um fazer preto no hip-hop, que busca o EHLO. E ao fazer esse ser negro, fruto de um desenvolvimento artístico e pessoal impressiona.
Para jovens negros no hip hop, a tarefa de sair de um formato onde a denúncia raivosa dos racismos é o mote principal, e começar a desenvolver algo mais elaborado e que vá no cerne dos problemas é uma conquista existencial. O que chamamos aqui de tornar-se negro é exatamente essa conquista estético-existencial e obviamente politica que propõem um atravessamento de pautas que muitas vezes, quando mera denuncia são inócuas ao sistema, pois possuem uma divergência facilmente localizável. O caminho de tornar-se é mais leve, mais complexo, e demanda ainda mais luta, uma luta com os meios expressivos, com o insconsciente, uma luta para fincar os pés e se elevar ao mais alto sendo preto, como Zudizilla!
E isso já é perceptível em “Atropelo”, a faixa que abre o trabalho, onde o seu orgulho de menino/homem preto faz o movimento coletivo correr, constatando o avanço em pautas históricas, o atropelamento de diversos obstáculos, discrepâncias e preconceitos impostos pela branquitude. O beat cadenciado do mestre Calibre é o terreno sobre o qual Wall corre despreocupadamente ouvindo Black Alien, para fazer parte dos avanços, e consegue.
Falando em avanços técnicos em “PamPamPam”, o mano desfila toda sua autoestima, em um flow fantástico e cheio de groove no beat trapagodão original do mestre Calibre, criador dessa sonoridade. Todo pan, Wall consegue falar sério e continuar gastando na onda dos parmalat, e orgulhosamente citando suas influências, seu lugar de origem, tudo costurado…
“Sankofa” (prod. Heetz) vem com força de uma ancestralidade reconquistada, pois ao acreditar supera todos os enfretamentos necessários para seguir. Uma poesia que se equilibra no fio da navalha, e corre nesse fio com a força e o poder do conhecimento adquirido e com a malemolência de uma qualidade artística conquistada. A força dessa faixa é algo absurdo e certamente é daqui ou desse movimento expressado com excelência que o artista baiano retira toda a potência para apresentar uma obra tão bonita. Um jovem homem negro consciente, um jovem ponto aço, atento a todas as opressões e ao mesmo tempo correndo pra voar, e voa.
E obviamente esse preto tinha que meter uma love song para a sua nega e o faz com uma qualidade naquele naipe… Afetividade negra, algo fundamental nessa construção subjetiva que EHLO afirma tão bem. Utilizando metafóras picantes, divertidas e muito bonitas, Wall mostra com esse EP que tá preparado pra jogar nas onze, ele que compôs, gravou, mixou e masterizou todo o trabalho. Aja amor e paixão para produzir tudo isso e com tamanha qualidade.
A obra é concluída com êxito em mais um bonito e cadente beat do Calibre, responsável por quase todas as produções, e aqui temos a chave daquele tornar-se negro que mencionamos acima. “Olhe no Espelho” é força poética que é o EHLO capaz de escurecer toda a movimentação de vida que sua música exprime, o EHLO só pode ser construído quando olhamos para nós mesmos. Wall olhou fundo dentro de si, encarou o si mesmo, seus conflitos, suas belezas, a imagem estilhaçada que todo jovem negro é levado a construir, e produziu um espelho em forma de rimas e batidas.
É isso que pode o Hip Hop, produzir uma obra dentro do próprio quarto capaz de negociar séculos de opressão e projetar um futuro de conquistas, retro-visando a branquitude e atualizando a ancestralidade. O EHLO = OLHE é muito mais que um mero trocadilho, um conquistar individual de todo o coletivo, singularizando toda a história. Wall acaba de lançar um trabalho grandioso, a começar pelo curta metragem dirigido e roteirizado por ele mesmo, mais um elo desse olhar diferenciado, com a atuação de Marcos Araújo e com poesia do próprio.
Outro olhar que configura parte desse elo são as belas fotos que compoem o ensaio desse projeto e que são de autoria do Rafael Rodrigues, o Rafão. Enfim, um trabalho que precisa ser apreciado sob diversas perspectivas, pois rico em olhares e vívido de percepções/emoções ímpares.
-Wall soltou EHLO (2020) Um olhar profundo em si e no entorno
Por Danilo Cruz
Veja, ouça, construa:
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