Guirraiz & Jessica Caitano Testando o tempo quando o vento vem improvisado, em apenas 4 faixas a dupla retrabalhando o hip hop pelo nordeste!
Sabe-se da importância do sample para a música rap de modo específico e para a cultura hip hop de modo geral. Retrabalhar elementos de estilos e culturas díspares e alcançar uma diferença sistemática a partir de pedaços, construindo com isso uma colcha de retalhos, uma rede formada por peças… Isso, deveria ser quase um ponto de corte entre o que é e o que não é original dentro do rap, e no nosso país que possui uma das músicas populares mais fortes do mundo, é uma obrigação.
Em 2017 publicamos um texto levantando a questão sobre a utilização de ritmos nossos como pontos de partida possíveis para a criação de um rap nacional mais original, e chamávamos atenção para os pioneiros, assim como para quem naquela altura promovia os cruzamentos mais interessantes. Eis que agora nos chega diretamente da Paraíba/Pernambuco um pequeno disco grandioso nos caminhos que aponta. É curioso como o apagamento de um cenário funciona em camadas e quanto mais descemos nelas mais nomes fabulosos e originais se destacam.
Agora no final de 2019, enquanto escrevia uma matéria sobre a rapper Bixarte, pensava como o produtor envolvido nos seus dois trabalhos por nós resenhados: Daniel Jesi (Big Jesi), tinha feito um trabalho bastante diversificado. Inclusive o Guirraiz participou aqui na mix das vozes. Lembrávamos do nosso conterâneo Dr. Drumah aka Jorge Dubman, tem trabalhos em parceria com vários mc’s na gringa, mas por aqui, tem digamos pouca visibilidade. Ora, se os e as Mcs nordestinos possuem pouca visibilidade, imagine o resto da cadeia produtiva.
Toda essa introdução se faz necessária para situar o leitor em duas questões, o Nordeste possui artistas que dentro do hip hop nacional são extremamente diferenciados e não estamos falando apenas de quem rima. A outra questão, mas não menos importante é a seguinte: Se isso é o Reboco (2019) se preparem quando chegarmos no acabamento.
Fruto da residência artística Pulso 2019 da RedBull, que tem por objetivo reunir artistas para processos de troca e criação por um mês, esse projeto nos deu um caminho que deve ser seguido. DJ Guirraiz e Jessica Caitano produziram Reboco (2019) com quatro músicas e esse rebento é daqueles que nos mostra a força da invenção que a cultura hip hop possui no Nordeste brasileiro.
Como ressaltávamos acima, o DJ Guirraiz já é um conhecido nosso desde o seus trabalhos com as meninas do Sinta a Liga Crew, e sempre nos chamou atenção o nível de suas produções. O produtor musical e DJ premiado, o paraibano de João Pessoa é hoje também o linha de frente no “Oré Música”. Em Reboco (2019) é dele a estrutura musical que retrabalha ritmos nordestino numa chave onde os beats do rap dialogam com nossa música popular numa harmonia sinestésica.
Não ouvimos trabalho mais original em termos de produção musical e rimática no rap nacional em 2019 do que nessas quatro faixas… Ragga, Rap, Samba Reggae, Baião, Coco, flautas de pífano, tudo junto e misturado num diálogo profundo entre a cultura eletrônica e urbana do hip hop e as raízes rítmicas do nosso nordeste profundo. Sem artificialismos, sem nenhum apelo exótico, a grandeza dessa produção está exatamente no fato do Guirraiz conseguir essa simbiose através da excelência na utilização dos samples, assim como das produções. Ao mesmo tempo em que a Jessica Caitano cospe barras com uma singularidade inaudita!
Diretamente do sertão do Pajeú, na fronteiriça Triunfo (PE), próxima a divisa com a Paraíba, Jéssica Caitano acunha numa diversidade de flows que é realmente impressionante. É dela o barro poético que fecha a estrutura dessa humilde e aconchegante casa de taipa sonora que é o EP Reboco (2019), uma artista que impressiona pelo domínio de uma linguagem muito singular e somente dela. Somente dela aqui, não por uma propriedade exclusivista, mas antes por ter recolhido através de anos de pesquisa, vivências e produções, o suprasumo da cultura nordestina. Seja como cantora, como compositora, poeta, percussionista, rapper, repentista, Jessica Caitano impressiona por ter conquistado algo muito novo e original. Essa conquista se expressa sobretudo através da naturalidade com que ela mesclou coco de roda, embolada e repente, numa pegada rap, num tipo de flow sampleado.
Algo que só se torna possível para quem tem uma longa trilha de atividades e pesquisas com a cultura e a música do seu lugar. Integrante do Radiola Serra Alta, educadora, ativista, coquista, integrante do excelente projeto, coordenadora de grupos de dança e batuque como a Cambindas de Triunfo, ao ouvir essa mana rimando, perdemos as referências de entendimento e só recuperamos quando nos deparamos com essa grande caminhada.
“Testando o tempo quando o vento vem improvisado”
Essa frase, uma das excelentes imagens poéticas produzidas pela Jessica Caitano, sob as bases nervosas do Guirraiz, nos parece, é um aforismo que explica o que chamamos de caminho novo mais acima. Em “Brisa na Cara” em cima de um beat pesadão, a letra versa um espécie de Braggadoccio emergindo do Ser-tão em sua grandiosidade natural e cultural, num enfrentamento das dificuldade que se ancora em fundamentos muito firmes, visando a felicidade.
Já com “Fogo na Taba” com a participação de Luisa e Os Alquimistas, somos apresentados ao rolê de bonde, o espairecer com o ragga como base musical, e a busca de clarear as ideias como algo implícito. A melodia ancestral das toadas, fruto das vozes curtirdas pelo sol ardente do Sertão abrem os trabalhos com PH Morais. Os batuques, os sinos das vacas, a programação eletrônica de Guirraiz ambientam musicalmente o terreno descrito com um flow mega swingado da Jéssica Caitano.
A mc convoca a herança ancestral de luta, religião e cultura, nas figuras de Lampião, Santa Luzia, Santa Tereza e de Seu Anísio sambante de coco, produzindo um amálgama de descrições com uma força capaz realmente de dobrar o tempo. de transformar a música em um acontecimento. Diferentemente do depoimento que remete a toada ao relato de um acontecimento.
O hackeamento de um nordeste de luta, de um paraíso natural, de uma terrirtorialidade forjada pela força da cultura de um povo simples, que ao longo dos séculos e com as mais diversas influências étnicas e raciais, índios, árabes, negros e portugueses, alcançaram um força expressiva inaudita em todos os campos da cultura. Com a cultura hip hop não seria diferente. Hackeando com muita propriedade, cada um em seu area Guirraiz e Jessica Caitano assumem a cultura hip hop e a arremessam para um futuro mais original, mais singular.
“Minha Vertente” conta com a força da percussão de Coco de Oyá e PH Morais Pífina: Felipe Tanaka e Jeffinho do Pife e fecha com muita força essa quadra infalível.
Reboco (2019) é aboio cósmico, rima de rap na chave da toada, com sabor de coco, xote universal de inspiração novaiorquina, percussão das máquinas como nos engenhos de cana, extraíndo o sumo do tempo e assoviando um pife de poesia skrrr!
Amplie seus horizontes e conheça esse trabalho:
-Guirraiz & Jessica Caitano “Testando o tempo quando o vento vem improvisado”
Por Danilo Cruz
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