Oganpazan
Destaque, Discos, Hip Hop Barril, Lançamentos, Música, Resenha

“novidadedasantiga”, Matéria Prima partindo das grandes miudezas do dia a dia!

Matéria Prima

Com produção do Jonas Pheer, “novidadedasantiga” do Matéria Prima parte da força de observação do cotidiano em 14 faixas

Matéria Prima

 

“A Melancolia é a saudade do Absoluto que se manifesta na existência até que a música traga-o de volta para a casa da Alma” Lourenço Leite 

Em sua carreira solo, Matéria Prima chega ao seu 6º disco, contando ainda com uma mixtape, 5 EP’s e dezenas de singles. O MC mineiro fez parte dos clássicos grupos Quinto Andar e Subsolo, e ainda da não menos importante Zimun, com quem lançou três discos. Certamente, um nome incontornável quando se trata de falar do Rap nacional.

-Leia mais em nosso site, resenhas e artigos sobre o Matéria Prima, clicando aqui  

Em uma realidade onde visões simplórias da realidade falseada por pseudo análises das complexas teias que formam o tecido social, a organização política e a interpretação dos processos históricos, o novo trabalho do MC Matéria Prima nos oferece um bálsamo. Em “novidadedasantiga”, o artista nos oferta do alto da sua generosidade, o dom de repartir dores e alegrias, problemas e risos. 

Divide conosco, suas impressões sobre a vida mais prosaica e cotidiana, nessa camada onde muitas vezes o microambiente onde estamos inseridos não nos deixa ter a percepção mais adequada dos obstáculos e armadilhas, montados para nós e para os nossos. E é através da sutileza, do humor, um pouco de ironia, da beleza, alguma contundência, que ele nos conduz a enxergar poeticamente problemas que são nossos.  

O disco abre em feitio de oração com um pedido para ser generoso e repartir conosco sua arte, “Peço Licença” é um bonito espelho que reflete toda a humildade que esse gigante do rap nacional cultiva em sua arte e no trato pessoal. Só depois nos chega a “Intro (Ele Voltou)”, onde no beat do Jonas, ironicamente Matéria Prima reafirma sua permanência dentro da cultura Hip-Hop, há mais de 20 anos. Sempre por fora das tendências, ou ajudando a criá-las, mas se movendo rápido demais para ser capturado pela máquina da Indústria musical. 

Os 30 minutos e 2 segundos que totalizam o tempo do disco ao longo das 14 faixas, navegam por mares diferentes e entregam um disco que se não é “conceitual”, reúne com extrema qualidade um mosaico de afetos e percepções que se aglutinam muito bem no título. A contundência quase humorística da faixa “Cuida da Sua Vida”, traz uma das “novidadedasantiga” que apesar de tão óbvia é aqui reafirmada em seu caráter não apenas ético mas também político. Uma vida empobrecida, muitas vezes encontra na maledicência a sua válvula de escape do vazio. 

Um beat muito fora da curva do que vem se produzindo na chave do drumless em nosso país, Jonas Pheer deitou em “Ama-me” que recebe o complemento poético e de flow adequado do Matéria Prima. Falando de amor sem ser simplório, a faixa apresenta uma rica construção lírica com uma sequência de rimas multi silábicas, word plays e imagens poéticas que somente mestres são capazes de produzir: 

“Sem essa de me mama, mami/ ama-me/me mima, menina/me nina com Nina Simone/ sinônimo de sono encantado ao seu lado/o tempo é rei e eu sou um príncipe num cavalo alado…/esquece! até parece, eu sou uma montanha de alegria mas também de estresse/complexo do plexo solar à sola dos pés/na minha cabeça toca de uma vez blues rap e jazz/ama-me à maneira mineira e me minera/você é maneira e manera minhas manota/mas nota: sou uma pessoa sincera que se encera demais derrete e escorre/eles correm quando isso rola?/eu tô errado?/então me dá um tapa e me manda ficar calado…

Ama-me na cama quando a gente queima

Ama-me na lama quando a gente teima

Ama-me até quando só tem conta

Ama-me até quando ce der conta

Conjugando autocrítica em tom confessional, mas também indo além e analisando aspectos éticos e políticos nas relações amorosas, a faixa é um dos pontos altos do disco. A caixa de ferramentas da dupla Jonas Pheer e Matéria Prima, trabalha em um nível de excelência muito alto ao longo de todo o disco, quebrando expectativas e ampliando as perspectivas das “novidadedasantiga”.

Em um mercado estagnado pela produção extrema de “Novidades” pueris, trabalhos como esse da dupla, são um respiro para quem já está cansado de discos que se vendem como conceituais sem conseguir plasma-los musical e poeticamente com a mesma qualidade do marketing. A capacidade de investigar-se e apresentar o resultado com uma força poética e musical tocante é uma das grandes características da obra mais recente do Matéria Prima. 

Na faixa “Àgua & Sangue”, onde o Jonas Pheer bebe na fonte do House e traz uma das mais tocantes do disco, o Matéria Prima nos apresenta uma visão sobre como a nossa humanidade é composta de possibilidade, do melhor ao pior. Como diria um outro poeta da Roma antiga: “Nada do que é humano me é estranho”. Em época de P.Diddy aka Sean Combs eivando nossas timelines sendo acusado de crimes escandalosos, saber que faz parte do humano a possibilidade de ser monstruoso nos impede de cuidar da vida dos outros. 

João Paiva

A participação do João Paiva no boombap nervoso de “No Seu Quarteirão” é destacada aqui e compõem o lado político comunitário de ‘novidadedasantiga”. O MC convidado abre a faixa e apresenta uma saraivada ritmada de ideias agravantes, que é complementada em alto nível pelo Matéria. O disco segue suave na compilação das músicas que vão mudando de temas e compõem a diversidade poético musical que apresenta a sua coesão estética no conjunto da obra. O ouvinte mais atento é carregado através de perspectivas amplas do viver humano, através de rimas e melodias, beats diversos, visões político raciais, éticas e críticas sociais singulares. 

Um exemplo da amplitude de temas e do apuro técnico utilizado é a faixa “Tantas Linhas”, onde Matéria Prima reúne o que o distingue de todo o resto da história do rap nacional: a capacidade de rimar e cantar melodicamente no mais alto nível. Em um cenário onde a mera emissão de palavras de ordem em construções simplórias no que tange a substância poética, ouvir o mestre Matéria Prima é sempre salutar. 

O traço humorístico encontra em “Mão de Alface” uma espécie de diss impessoal, divertido e inteligente, que nos serve para pensar rindo sobre pessoas que não possuem firmeza no que fazem. A etérea e melodicamente linda “So Satisfying” vem na sequência, e pela sua duração, construção rítmica, lírica e melódica nos dá um tom interessante sobre a noção de satisfação e sua rapidez no jogo dos desejos. Ao mesmo tempo em que assenta toda a questão da humanidade da negritude e da auto aceitação de si mesmo em seus traços mais díspares do comum.  

A questão tão pertinente a respeito das noções de saúde mental, estão abordadas em “Saber a Hora de Parar”, inclusive com um sample de blues (Jonas Pheer certeiro) que nos remete automaticamente a esse problema dentro de uma chave racializada. Segue-se mais uma de amor com “Pinball”, onde Matéria caminha para uma abordagem mais suave do tema. Em seguida, “Dopamina” traz a construção cadenciada e os samples e recortes presentes no beat do Jonas Pheer nos remetendo a sensação da busca desenfreada pela substância do título, para enfrentar o tédio nas telas dos nossos celulares. 

Perspectiva que se enriquece na música “Paraísos 2”, penúltima faixa do disco que segue a conversa sobre a fuga da realidade que pode como no caso anterior se dar pela busca da dopamina nas timelines das redes sociais e ou na busca pelos “paraísos artificiais”. Duas formas de drogadição em nossa contemporaneidade que recebem um tratamento poético à altura desses novos velhos problemas. 

O disco se encerra com Matéria Prima, “falando de tristeza sem ser pobre” com a música “Me Sinto Triste”. Curiosamente, essa música possui o maior número de “plays” do disco no spotify, talvez porque a potência da melancolia seja hoje uma das coisas menos bem trabalhadas em nossas vidas. E nesta música em específico, mas no disco como um todo, essa seja uma das maiores tônicas da obra. 

Jonas Pheer, O Produtor

Seja nos elementos que nos fortalecem diante desse estado de ser (a melancolia), seja nas críticas aos elementos que nos desviam do enfrentamento dessa questão, Matéria Prima e Jonas Pheer, construíram em ‘novidadedasantiga” uma obra que transversa sobre essa nossa época tão propiciadora e ao mesmo tempo de fuga desesperada da melancolia. Uma era onde o capitalismo alcançou um estágio de autodestruição que não poupa nenhum aspecto de nossas vidas, incrustado que está na deterioração não apenas do nosso cotidiano, como da própria condição de existência do mesmo. 

Por outro lado, e lembrando aqui do meu professor Lourenço Leite, a Melancolia pode ser entendida também como uma saudade do absoluto e neste caso, o “novidadedasantiga” também se insere na tradição de pensar essa condição existencial. Na faixa que fecha o disco, Matéria Prima traz uma das grandes imagens poéticas do disco:

“A brasa do cigarro vira cinza e perde o brilho, a solitude é o trem que me mantém no trilho” 

Na era do instantâneo lutamos contra a morte das formas mais simplórias e ineficazes possíveis, a saber:  a tentativa de estar sempre presente, porém no virtual. Um gigantismo das imagens que passam tão rápido quanto stories, opiniões tão importantes e profundas quanto uma fala de coach, vivendo vidas exploradas em um tempo onde nada do que parece é de fato nosso. Em sua forma e no seu conteúdo, “novidadedasantiga” coloca tudo isso em jogo, na rapidez das faixas, na profundidade dos temas, na diversidade dos beats. 

O “Novo” não é rápido, ele dura, perdura ao longo da duração do tempo não pulsado, que é o completo contrário dos nossos amores rápidos, das ilusórias imagens e falsas ideias em velocidade on line, que não se mantém de pé por mais de 50 segundos apesar dos bilhões em alcance. Em seu âmago, “novidadedasantiga” traz uma crítica e uma reflexão sobre essas questões, partindo das amizades, dos amores, das dores, das alegrias, das pequenas e grandiosas satisfações que podemos observar em nosso cotidiano. Partindo dele, como um fotógrafo e poeta, Matéria Prima nos oferta com a colaboração de Jonas Pheer, um instantâneo duradouro de nossas misérias e de nossa imponência que são tão antigas quanto nossas, hoje!

-“novidadedasantiga”, Matéria Prima partindo das grandes miudezas do dia a dia!

Por Danilo Cruz 

Matérias Relacionadas

Telefunksoul anima festas de Réveillon em Salvador e Itacimirim

admin
2 anos ago

O violão alegórico de Jards Macalé

Guilherme Espir
2 anos ago

Aori Anaga segue no fortalecimento da cultura Hip Hop

Danilo
5 anos ago
Sair da versão mobile