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nILL e O Resgate do Maestro, a tradição negra é a complexidade!

nILL

Em seu novo disco, O Resgate do Maestro, nILL segue nos mostrando que a tradição da música negra é sempre a complexidade.

 

Em sua geração, o paulista da cidade de Jundiaí nILL/ O Adotado é o artista mais prolífico e interessante, sua discografia em si mesma, aponta caminhos distintos e diversos, constituindo um panorama contemporâneo das possibilidades que o rap e a cultura Hip-Hop, guarda em si. Enquanto MC e produtor, nILL não apenas sampleia sons e experimenta sonoridades, mas produz um deslocamento musical e lírico que passa por arte digital, games, mangás e por suas vivências. 

A discografia de nILL pode ser enquadrada de diversos modos, dada a diferença entre os projetos, discos, EP’s e mixtapes. São até o presente momento dois EPs, a estreia com Negraxa (2016) e BLU (2021), o projeto Goodsmell Vol. 1 e 2 (2018-2020), os discos coletivos com sua banca da Sound Food Gang, Foodstation Vol. 1 e 2 (2018-2021) e o que poderíamos chamar de discos de carreira Regina (2017), Lógos (2019) e o recém lançado O Resgate do Maestro (2023). Além de diversos singles e audiovisuais.

Cada um desses grupos de lançamentos guarda particularidades próprias, e como o próprio artista nos conta, enquanto “quadrinista musical”, ele cria personagens e desenha musicalmente universos bastante próprios para cada um dos seus lançamentos. Seja com a personagem Lilith de Goodsmell que guarda em si mesma, uma multiplicidade de influências dialogando com a história das mulheres negras na diáspora em um universo futurista. Seja no confessional em tons vaporwave da persona do próprio nILL, seu cotidiano e suas perdas, mas também seus amores familiares, com arte da então pequena Duda.

Seja na crítica à indústria cultural, se tornando um boneco que desenha uma linha de fuga das prateleiras que estancam a criatividade. Junto aos seus companheiros de empresa/banca pilotando coletivamente a nave de pizza de sons intergalácticos. Ou ainda como agora, assumindo um robô, em O resgate do Maestro. O fato é que como produtor e MC nILL sempre nos entrega algo inesperado, mais atual quanto mais se afasta do comum veiculado na cena!

Não encontramos outro artista do cenário que tenha feito algo parecido nos últimos tempos nesses termos, o que nos mostra a singularidade própria que nILL/O Adotado imprime em seu trabalho. Expandindo o cenário musical da cultura Hip-Hop para lugares até então desconhecidos, trabalhando com referências que ele transforma em algo de fácil apreciação mesmo que não se conheça de onde elas provêm. Tudo isso sem deixar o mais importante de lado quando se trata de cultura Hip-Hop, conhecimento das ruas, valores políticos e raciais de emancipação e afetos revigorantes para o povo negro. 

O Resgate do Maestro, seu último disco, embala toda a sua força criativa mais uma vez em seus próprios termos. Nos apresentando também sua busca musical, de um artista que estuda de fato, para estar sempre produzindo em alto nível. Em pouco mais de 33 minutos, nILL entrega o que promete, refletindo e colocando suas visões em prática, em um disco pós pandêmico, tal como um maestro – que ele encarna como um Robô –  o atual estado de coisas dele e do cenário, de tudo que passou, afetivamente e politicamente. A capa do trabalho que deu vida imagética para o ‘Maestro” é do artista visual Cosmar.

A faixa de abertura “33”, que conta com a produção do Duda Raupp e Mbeattz construído ricamente com um duo de piano e violino, nos fala da fragmentação deixada em todos após dois anos de genocidio. Docemente melancólica musicalmente, os versos de nILL e Amiri conversam partindo do tema pandêmico por parte de nILL e chegando no tema da autodeterminação, da busca pela liberdade da ação e da construção de um mundo onde indivíduo e povo são um só, em Amiri. 

Com as peças do robô reunidas e a máquina azeitada, com sua programação já plena de conceitos que não buscam se adequar ao que o capitalismo racista impõem, sem escolher o mundo como medida de si, o personagem parte para sua aventura pelo Planeta Terra. A faixa seguinte “PS1” com produção d’O Adotado é um trap que não se afunda na ladainha de vencedor, sem vestígios meritocráticos nILL versa sobre guardar a sua própria fauna no bolso e nunca mirar no topo, ou querer estar em podium algum, o que importa é poder ter condições de produção. Com uma fina e cortante compreensão da diferença entre ser detentor do Capital e ter dinheiro para viver dignamente e seguir fazendo arte!

A dupla de produtores Deekapz que assina três das faixas do disco.

A dupla de produtores Deekapz assina três músicas das 12 que compõem o álbum, e a primeira dela é “O Que Seria de Nós?”, aqui nILL faz uma declaração que está muito presente em sua visão de mundo: “passei um tempo procurando alguém que entendesse que não temos final”. É bonito ver como o artista aqui cifra o seu gosto por games, e como isso constitui sua própria visão de mundo, entendendo a vida como fases, com níveis de dificuldade e a importância de aliados durante o caminho. A faixa é sobre solidão e relacionamentos e nILL consegue nos passar uma sensação muito boa com um vocal rouco cantando e rimando em cima de um beat eletrônico bem quebrado.

Quase um sambinha digital com um apelo R&B a curtinha Manga&Maçã, da lavra do produtor Lossio nos traz uma visão sobre o cotidiano e os gostos do artista, “coisas sobre nós”, fumar um do bom e conversar, relaxar. Como uma continuação, “18 Horas de Luz” segue mais ou menos a mesma toada e expande o tema relacionamentos para os desejos do nILL, desenhando como já tinha sido feito – agora em outros cenários – em “O Que Seria de Nós?”, mas refletindo também sobre o tempo, seu trabalho, e utilizando imagens poéticas muito bem construídas. 

A preocupação com a Música – com m maiusculo mesmo – é algo notável no trabalho do nILL, e a faixa Maestro traz isso onde em cima de uma base da dupla de produtores Deekapz, o artista entoa com utilização de auto tune apenas uma frase por 2min13s, a frase: “lugares que eu te procuro e não está”. A faixa chama-se “Maestro”, o que faz bastante sentido se percebermos a busca/mudança de afinações, no canto ao longo da música. Em um mercado saturado pelo mesmo, onde todos possuem a necessidade de falar sobre tudo, esse “ritornelo” cria um território musical próprio, dentro do disco. 

nILL e Amiri

A correria e a urgência por viver que tem sido um signo pós pandêmico de retorno das atividades normais, não é um traço presente neste novo trabalho do nILL. Antes, há uma serenidade abrasadora, uma suavidade contundente na condução do maestro ao longo do disco. A faixa “Ominipotence” possui talvez os versos mais bonitos e impactantes do nILL neste novo trabalho. Tocando novamente na questão do dinheiro, ele mais uma vez chama atenção para a função de instrumento que esse possui – maestria econômica? – e obviamente não um fim em si mesmo. Ressaltando a importância do “amor para não quebrar a firma”, o apego ao seu território, os rolês, andar bem trajado são as funções do dinheiro. E neste sentido, o artista mostra que o poder ilimitado está presente na criação proporcionada pela música, pelo amor, àquele recebido pelos vizinhos, pela amada, pelos amigos. Aspectos que recebem na bela voz da 2:22 a complementação perfeita com o seu canto e versos. 

O peso chega com a MC Luanna – um dos destaques do cenário no ano passado – na faixa “Meia Milha”, porque nem só de suavidade e amor, relacionamentos saudaveis, e cash no bolso vivem um homem negro. O racismo é o tema central da faixa onde nILL chama-nos atenção para o fato de que não importa quanto dinheiro se tenha, o supremacismo branco é implacável, e o racismo se impõe. Trazendo-nos a necessidade luta, que MC Luanna complementa com a questão de gênero, enquanto mulher preta e periférica consciente do seu lugar. 

O instrumental house de “Zero Zero 7” da lavra d’O Adotado faz a ponte para a música “Sol” mais uma produção com elementos orgânicos, que traz Ed Wolski (guitarra, violão e baixo) e Mbeattz (violino) no beat do Bonbap. Uma música deliciosamente divertida, tocando em uma conjuntura trágica, um rap baião, onde nILL exercita a força de sua poética utilizando elementos satíricos para ilustra ao ouvinte atento o quanto o mundo – o nosso – esteve de cabeça para baixo nos últimos 6 anos pelo menos. As imagens do post que mija no cachorro e este que leva o dono para passear, mostram isso com muita irônia ao mesmo tempo em que faz comentários sobre a classe trabalhadora que apoiou e apoia o fascismo. 

Sobre “City Hunters (prod. O Adotado)” apenas dois comentários: O Rôbo Maestro encontra dois ciborgues pretos: Jamés Ventura e Jota Ghetto – dois dos maiores nomes do rap nacional – em um boombap sujaço e de tons épicos, daqueles que você faz bico e a cabeça balança por vontade própria. E o disco se encerra com “Simples” produção do Drôga, em ritmo alto astral e de pista, deixando um gosto de quero mais, ou melhor de voltar para o começo…

Nos seus discos, a forma como nILL trabalha linguagens e temas distintos amalgamando tudo isso em projetos com início meio e fim, sempre entregando obras acessíveis, sem serem meramente didáticas ou simplistas, nos mostra que a complexidade pode ser simples. Fazer o simples, tocar, criar, versar para a música é muito diferente de querer ser artista. Hoje muitos querem ser artistas, autores, não escrever, não fazer música e talvez esse seja o diferencial – um dos – de nILL e sua obra em construção. Uma espécie de Itamar Assumpção dentro do Rap e da cultura Hip-Hop nacional. 

Diz-se que certa vez perguntado se a sua música não era complexa demais, Itamar Assumpção – que estudou desde o dodecafonismo à tradição da música brasileira e a manifestações culturais rurais do interior de São Paulo – respondeu: 

“A complexidade é a tradição da música negra”

-nILL e O Resgate do Maestro, a tradição negra é a complexidade!

Por Danilo Cruz 

 

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