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nILL de Jundiaí, O Obscuro – Quando o Hip Hop Ensina!

O rapper paulista nILL soltou recentemente seu segundo disco Lógos (2019), trabalho que chegou com excelentes criticas e boa recepção na cena

 

O que pode o Hip Hop? Essa talvez seja a questão que mais nos ocupa enquanto ouvimos lançamentos, clássicos, buscamos perceber os movimentos da indústria, enquanto caminhamos pela cidade, ou seja no nosso dia a dia. Para além da mera fruição e ou reafirmação dos nossos gostos, nos interessa pensar a arte em geral e a cultura hip hop em particular.

Como peça mais destacada da cultura, o Rap é o elemento da cultura hip hop que mais recebe atenção, e por isso mesmo, deveria ter um pouco mais de cuidado por estar nessa posição de linha de frente de uma cultura tão fundamental para as nossas periferias. Apesar de um monte de aparências que ficam em evidência para quem não ouve de fato o total da produção, o rap nacional vive o seu melhor momento.

Reafirmo sempre nos meus textos que se existe algo de que não podemos nos queixar é da imensa qualidade artística e política daquilo que é produzido em nosso país. Nesse sentido a questão é para qual parcela da cena nós olhamos, e se conseguimos realmente dar conta da variedade e do nível das produções, assim como da diversidade de atores e atrizes num país de tamanho continental. Dentro desse contexto estamos sempre a espreita de artistas de todo o país, buscando ouvir com atenção seus trabalhos e tentando recolher em nós aquilo que é proposto, re-flexionando sua arte e pensando a relação da arte oferecida com a cultura.

O rapper paulista nILL lançou recentemente seu segundo disco solo, Lógos (2019), confirmando pelo menos um aspecto entre vários possiveis, o fato de estarmos diante de um artista que é um dos mais singulares de que se tem notícia na história da rap nacional. Sua produção recente injetou no cenário nacional novas sonoridades e ao mesmo tempo, uma lírica realmente nova. Junto a sua banca, a Soundfood Gang, o mc e produtor tem nos colocado toda uma outra forma de produção que vem realmente movimentando a cena, na música e na forma como se organizam. E para quem está atento realmente ao novo, isso não é novidade.

Eu Levo As Coisas Um Pouco A Sério Demais

Esse artigo tem sua origem na utilização do termo Lógos, palavra grega fundamental para a compreensão da filosofia em seus inícios na Grécia. e que serviu de título do novo disco do nILL. Nos chamou bastante atenção essa utilização incomum de um termo tão específico da filosofia originária entre os gregos, assim como o cruzamento desta referência filosófica com o famoso anime Naruto, e a compatibilidade quanto a imagem do Fogo, presente neste último. Quem nos despertou a curiosidade para esse cruzamento de referências foi o vídeo do canal Meteoro Brasil, que produz excelente conteúdo de cunho politico e filosófico para o youtube.

Já tinhamos nos espantado inicialmente com essa relação entre hip hop e animes, ao escrevermos sobre a obra do Yung Buda e sua trilogia de EPs. onde chamavamos atenção para como esse artista cruzava de modo incomum elementos da cultura japonesa, o que vai muito além da mera criação de um nicho musical para adolescentes. A música negra em diáspora guarda potências inauditas e com a cultura hip hop não seria diferente. O rap como último e atualmente imenso baluarte da cultura negra americana, segue uma trilha de construção músical muito interessante.

O jazz nasce do cruzamento de múltiplas referências culturais ali na Congo Square em New Orleans, cidade multicultural no séc XIX. Historiadores contam como as cornetas utilizadas durante a guerra civil americana e abandonadas nos campos do sul dos EUA, se converteram em instrumentos que quebraram a dureza marcial quando um negro se apropriou delas. Esse simples movimento, gerou a música clássica negra, ponto máximo da cultura norte americana, que influenciou toda a música mundial.

Pouco mais de um século depois, por volta do fim da década de 70 do século XX, com o fim da educação musical nas escolas americanas, a juventude negra passou a utilizar toca discos e decks como instrumentos musicais, desterritorializando e dando outro sentido para aparelhos que foram inicialmente criados para tocar música, não para produzi-la. Está operação que por sua vez recebe heranças que vão da vanguarda eletrônica europeia até a cultura dos DJs jamaicanos, mostra a potência de transformação e criação do povo preto em diáspora.

A utilização de trechos de discos para a criação de outras músicas, os samples, são outra amostra que a cultura hip hop foi capaz de produzir no sentido de inventar sempre e toda vez novas formas de construir arte, de desenvolver pensamento. Ora, é proprio de todo esse movimento aqui descrito, o samplear territorios, instrumentos, ideias, elementos de outras culturas para criar o novo. Logo, não deveria nos espantar que no interior de SP, um artista negro, utilizasse computador, anime e filosofia grega para criar mais uma peça realmente inovadora dentro da música brasileira em geral e no universo do rap em particular.

“Faz parte de um grande plano eu sair daqui”

Em seu segundo disco, nILL apresenta uma obra de muitas camadas, que reúne, atualiza e projeta ampliando todo esse universo de referências descrito acima e contextualizado num Brasil genocida para o povo preto, e dentro de mercado cultural ainda nas mãos de brancos. E isso é uma das melhores amostras do que pode o Hip Hop, do que podem negros e negras, historicamente subalternizados, mas que com muito pouco produzem o mel do melhor da cultura, do pensamento e da arte.

A saga do nosso herói estampada na capa como um boneco fugindo da caixa e da loja de brinquedos – onde todos os outros bonecos são brancos – é já o signo inicial que leva-nos a entender a saga do herói que nILL encarna! O disco pode também ser lido como isso: uma fuga, mais um capítulo na saga de um jovem negro numa corrida, fugindo do sistema racista, da política de segurança pública que vítima jovens negros aos milhares, dos empregos subalternos a nós destinados, arquitetados estrategicamente por uma educação pública organizada para dar errado e hoje mais do que nunca sob ataques.

Ao longo das doze faixas do álbúm, através de um mosaico sonoro realmente caleidoscópico, o rapper consegue reportar para o ouvinte os fascículos diversos de sua épica saga. Jornada que aqui atravessa desde o cotidiano mais simples, alusões ao seu trabalho com a Soundfood Gang, crítica ao mercado cultural, à política atual e ao racismo até às questões mais universais que dão conta dos problemas da realidade assim como descrições e analogias sobre seus estados mentais.

Ora, como um jovem artista negro nILL conhece bem as dificuldades que a nossa sociedade impôe, através de um racismo que não atinge apenas nossos corpos mas toda a estrutura social que nos rodeia. Em uma das camadas de interpretação da obra, nós poderíamos entender aquilo que o rapper deixa-nos subentendido: qualquer jovem negro em contato com Naruto, se pensar bem automaticamente conseguirá se identificar com aquele pária de Konoha (a Vila da Folha é em qualquer lugar).

A raposa de nove caudas (Kyuube) aprisionada dentro do jovem japonês é um signo que pode ser facilmente analogizado com o nosso racismo cotidiano, onde cabelos, traços físicos e cor da pele determinam a forma como seremos vistos. Esse elemento presente entre o Boneco nILL fugindo da loja e o Naruto, é uma relação de identificação e diferenciação, da produção de um Devir outro, no caso do artista paulista: um tornar-se negro, afirmando uma diferença fundamental. O que é o contrário de usar uma bandana igual a do héroi japonês, ou fazer um simples cosplay. como dizíamos acima, o rap que os mc’s da Soundfood Gang fazem e a utilização desses referenciais presentes nos animes, não lhes leva a serem rappers cosplay.

Há aqui como nas outras obras citadas, sempre e toda vez, uma perspectiva política e um avanço ou desenvolvimento ontológico, que dialogam com a indústria cultural, mas também com todo o entorno social onde suas existências estão em jogo. Assim nessa dimensão épica, a persona artística do nILL encontra toda a força da veracidade existencial necessária para que não seja entendido como um mero personagem.

“Este mundo, que é o mesmo para todos, nenhum dos deuses ou dos homens o fez; mas foi sempre, é e será um fogo eternamente vivo, que se acende com medida e se apaga com medida” Heráclito de Éfeso 

Musicalmente o disco traz uma passagem de uma faixa para outra, que sempre acompanha o desenvolvimento da saga do nosso personagem, sem se prender a nenhuma em particular. A ideia de mudança permanente, como princípio ontológico da realidade do mundo, é a principal característica presente no pensamento do filosofo grego Heráclito de Éfeso. O fogo é a imagem que o Obscuro – como ficou conhecido pela tradição – cunhou para representar essa permanente mudança ontológica do mundo, algo também presente – porém de outro modo – no anime Naruto, como acima ressaltamos.

Ora, a experimentação com novas sonoridades é um dos traços fundamentais do trabalho do nILL. O já consagrado Regina (2017), por exemplo, utilizou a estética vaporwave com uma genialidade pouco vista. Aqui em Lógos (2019), nILL explora uma gama de sonoridades, utilizando de certos aspectos do pop eletrônico dos anos 80, swingueiras funkeadas e trap, entre outras referências utilizando os talentos dos produtores Nave, Crimenow, Yung Buda e Tan Beats para a plena composição de sua obra.  

Curioso notar que mesmo assim – nessa colcha de retalhos sonora – consegue-se uma coesão estética que se dá exatamente pelas mudanças heraclitianas afro-diásporicas que o artista consegue imprimir na narrativa sonora e poética da sua obra. Estamos diante de um artista que tem um Polémos (combate) trancado dentro de si mesmo, uma guerra ativa, um fogo constante contra a mediocridade é o traço fundamental que podemos destacar dentro da obra desse jovem rapper. Nessa batalha aqui, nILL convidou os aliados BK, Callister, Mano Will e Melk que surgem com suas linhas e seu canto, a acrescentar visões importantes para o disco.

Por fim, mas não menos importante, é bonito e revigorante entrar em contato com algo tão potente, como a vontade do fogo presente nesse disco. Sim, essa noção presente em Naruto, é aqui adaptada para a cultura hip hop, a ideia de que uma obra de tamanha envergadura, que dispõe de tamanha acolhida de referências mas que no entanto, não perde sua potência/capacidade de comunicação com o grande público – leia-se favelas – pois não mimetiza conhecimentos universitários para agradar o hype branco. Aliás, parece que essse mesmo público não enxergou grande coisa nesse disco, isso é bom…

Há nessa postura e nessa entrega aquela responsabilidade (vontade do fogo) necessária, uma real acolhida direcionada ao seu povo (bem comum), de produzir uma arte desafiadora e ao mesmo tempo acessível, que não necessita de conhecimento prévio, ou de pressupostos acadêmicos para se manter de pé. Produção de conhecimento e de afetos mais contemporânea e necessária é impossível.

Dito isso, é sábio afirmar não escutando a mim, mas ouvindo o Lógos, que essa é uma obra fundamental para o hip hop nacional, ouça e aprenda. 

 

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