Nelson Angelo, um dos grandes nomes da música brasileira, nos concedeu uma entrevista na qual ele fala da sua carreira e compartilha a sua visão de mundo.
Nelson Angelo é desses personagens de nossa música de disposição nômade para a vida. Boa parte de sua carreira esteve permeada da vivência coletiva da música, da música não como trabalho, no sentido formal do termo, mas como elemento de socialização, de convivência com seus pares.
E o que foi o Clube da Esquina, senão uma maneira de nomear aquela experiência coletiva de adolescentes da capital mineira dos anos 60 em torno da música e do cinema? Conforme tão bem nos conta Márcio Borges em seu essencial Os Sonhos Não Envelhecem: Histórias do Clube da Esquina.
Nelson era um desses adolescentes, que passavam suas tardes conversando sobre música, sobre cinema, literatura, filosofia, que pouco depois começaram a fazer seus próprios versos, criar acordes e melodias, mostrar uns para os outros e aos poucos tecerem a trama que os levaria a construir pilares importantes de nossa música.
Quando, após um show do Nelson Angelo em Ponte Nova, na Zona da Mata Mineira, em dezembro de 2022, perguntei a Arthur Vinih, amigo do Nelson e produtor do show, se ele arrumaria uma entrevista com o Nelson para mim e tive a resposta positiva, fiquei extremamente animado.
Não acreditei que conversaria com o cara que tinha gravado discos tão importantes pra nossa música e que ouço desde a minha adolescência; que desenvolveu suas habilidades como instrumentista, compositor e arranjador na vivência com artistas como Milton Nascimento, Naná Vasconcelos, Geraldo Azevedo, Joyce, Noveli, Luiz Eça e tantos outros nomes.
Convivências que resultaram em discos fenomenais como o Clube da Esquina (1972) do Milton Nascimento e do Lô Borges e que reuniu toda mineirada do C.E, o Luiz Eça e a Sagrada Família (1970), o Nelson Angelo & Joyce (1972) e o Naná Vasconcelos, Nelson Angelo & Noveli (1973), pra ficarmos em alguns deles, pois a lista é enorme.
Nesta entrevista, que podemos considerar ter sido uma conversa, dada a dinâmica leve e despreocupada em que transcorreu, muito por conta da maneira simples e acolhedora do Nelson, senti-me como se estivéssemos batendo papo na mesa do bar.
Ele nos fala sobre a maneira orgânica em que a música aos poucos entrou em sua vida, transformando-se não em um compromisso formal, mas uma maneira natural de interagir com os amigos e amigas da juventude.
É muito prazeroso saber das vivências da juventude ao lado de nomes como Milton Nascimento, Wagner Tiso, Nivaldo Ornelas, Márcio Borges, Fernando Brant, numa época em que ainda não havia projetos de vida, pretensões de sucesso ou de carreira artística, quando as conversas giravam em torno dos filmes que haviam saído, dos álbuns que estavam ouvindo, dos artistas que haviam sido descobertos e a vida se resumia a esse transcorrer despretensioso da vida.
Acredito que você leitor, leitora, terá a mesma sensação ao ler essa entrevista. Se sentirá sentado diante de um amigo querido, conversando sobre as coisas da vida.
Carlim (Oganpazan): Antes de mais nada quero agradecer em nome de toda equipe do Oganpazan pela entrevista, nós somos admiradores do seu trabalho e estamos imensamente honrados em poder conversar com vc sobre sua obra. Nelson, eu confesso pra você que eu tive dificuldade em saber por onde começar essa entrevista devido ao volume e qualidade da sua produção, das parcerias feitas ao longo da sua carreira e os frutos destas. Então, decidi não inventar e começar pelo básico, saber qual a lembrança mais antiga sobre seu primeiro contato com a música e do que despertou seu interesse pela música.
Nelson Angelo: O interesse pela música surgiu durante a infância em Minas Gerais, ouvindo congadas, discos 78 rotações, ópera, samba, diversas vertentes da MPB, bolero, rock ́ n roll.. Minha família sempre gostou de música, em especial meu irmão. Eu sempre ouvia essa música toda com muito prazer desde criança e acredito que foi mais a música que “agarrou” em mim.
Teve também um grande período em Ponte Nova, terra de quase toda minha família, onde passava minhas férias, que a meninada ouvia tudo. Isto entre os anos 60 e 70. Fui tanto lá que pensam que nasci lá. Nasci em Belo Horizonte. Foi orgânico e quando vi já estava estudando violão um pouquinho daqui e dali, depois larguei o professor, comecei a tocar de ouvido, essas histórias comuns da música popular.
Carlim (Oganpazan): Você fez parte de um dos principais movimentos musicais da história do nosso país que é o Clube da Esquina. Eu gostaria que você falasse sobre seu encontro com o Milton Nascimento ali pelo final dos anos sessenta quando vocês ainda tocavam em bares, auditórios e clubes noturnos de Belo Horizonte.
Nelson Angelo: Me encontrei com ele em 1964. Encontrar o Bituca pra qualquer pessoa é uma coisa maravilhosa. Ter tido a sorte de encontrar com ele aos quatorze anos foi muito bom. Foi coisa escrita. Éramos, naquele momento, dois amigos que tocavam lá na cidade, saíamos para ir aos botequins, bater papo, filosofar sobre a vida … pegar o violão era nossa maior curtição. Por essa época eu conheci o Marcinho (Márcio Borges) lá no colégio estadual, na época em que os shows que aconteciam em BH eram do pessoal que vinha do Rio. Lô Borges e Beto Guedes, ainda eram muito jovens e não andavam ainda com a gente.
Carlim (Oganpazan): Nesse período você já tinha se mudado pro Rio né?
Nelson Angelo: Em 1966 me mudei para o Rio, quando voltei a Belo Horizonte, numa das primeiras idas após me mudar para o Rio, eu fiz arranjos pro Lô e pro Beto. Uma das músicas que fiz arranjo, nesse contexto aí, foi uma música chamada Equatorial. Começamos a conviver a partir deste momento, um tempo e depois veio a gravação do Clube da Esquina … e lá em Belo Horizonte, bem antes disso, antes dessa vinda para o Rio a gente se encontrava ali no Maleta, o edifício Maleta, na Augusto de Lima. No Maleta haviam muitos barzinhos onde as pessoas iam pra lá de tarde tocar violão. Na avenida Augusto de Lima também tinha uma boate, onde o Bituca tocava.
Ele sempre me convidava e a gente marcava de se encontrar no centro da cidade.O Bituca morava no Centro, eu no Santo Antonio. Daí eu descia de ônibus e nos encontrávamos no final da linha do ônibus Santo Antônio. Era bem aquela coisa de amigo. “Ah, vamos nos encontrar lá no bar tal”, “Vamos para um baile lá num sei aonde”.
Carlim (Oganpazan): Imagino que sendo tão jovens ir pros bailes era algo bem comum.
Nelson Angelo: Sim, sim. A gente ia sempre pros bailes. Assistir o Nivaldo Ornelas, o Celinho Piston, o Márcio José (cantor), ouvir eles tocarem com os conjuntos, Valtinho da Bateria o Laércio e muita gente mais. A gente se reunia nessas condições e saímos juntos pra esses lugares pelo prazer da música, que ia nos jogando para um negócio que não tinha muito como sair. Depois teve uma boate lá no Maleta, acho que era do Wagner Tiso, talvez do Nivaldo Ornelas, quem sabe até dos dois (risos), e eu nem podia entrar porque eu era menor.
Carlim (Oganpazan): Então havia situações que você meio que ficava pra trás por conta da idade. (risos)
Nelson Angelo: Bom, mais ou menos. No primeiro andar tinha um bar chamado Oxalá que tinha um dono chamado Humberto e ele chamava o Bituca pra tocar, e eu passava lá e tocava também. Tocávamos ali na mesa do bar mesmo, aí a gente tomava umas batidas (risos). Aí rolava aquela coisa de um falar pro outro “Você é meu melhor amigo” (risos). Começou esse papo mais ou menos nessa época. E você sabe que até hoje eu considero o Bituca assim o meu melhor amigo, embora a vida tenha levado a gente para outras coisas, para outros caminhos.
Carlim (Oganpazan): Tem algo que você possa apontar como sendo um fator que deu esse direcionamento distinto para a vida de um e de outro?
Nelson Angelo: Pois então … foi assim, como eu estava dizendo, logo em seguida veio o Fernando Brant, que o Bituca um dia chegou pra mim e disse assim “Cê tem que conhecer um cara que eu conheci hoje, super legal, trabalha ali no juizado de menores, vamos passar lá e marcar um encontro com ele”. Assim eu conheci o Fernando, que ele já conhecia e foi um pouco antes dele escrever a letra de Travessia pro Bituca, que foi quando a coisa começou mesmo a tomar uma outra proporção, embora houvesse ali a consciência, que ainda não era total, até onde aquilo poderia chegar.
Carlim (Oganpazan): E aí começaram a vir os planejamentos para o futuro e tal?
Nelson Angelo: Então, planos, assim, estavam a quilômetros de distância, não havia plano de nada … assim, desde quando conheci o Bituca, ele ia muito lá em casa, pegava o violão e começava a tocar e eu ainda não sabia formar um juízo das coisas, mas eu já pensava comigo mesmo “Poxa, mas esse cara tem um trem diferente, ele é diferente”!, e assim foi a vida toda. Sempre que o Bituca cantava as pessoas se deslumbravam. Então você vê que é um negócio que já estava escrito, não tem surpresa por tudo que é o Bituca e sua obra, tem sim a felicidade de poder celebrar isso.
Carlim (Oganpazan): Imagino o que possa ter passado pela cabeça de vocês em relação às expectativas com relação a carreira musical uns dos outros e tal.
Nelson Angelo: Como eu disse, a gente era mesmo amigos e cultivava essa amizade. A gente gostava mesmo é de nos reunirmos para falar da vida e aquelas filosofias de botequim, de bater papo. Acho que a gente gostava muito mais de falar sobre os outros músicos, como Miles Davis, John Coltrane, Tom Jobim, Dorival Caymmi. E por termos compartilhado essa experiência juntos é que posso dizer que o Bituca é até hoje meu melhor amigo.
Carlim (Oganpazan): Vocês, hoje em dia, conseguem se encontrar com frequência?
Nelson Angelo: A gente não se vê (rsrs), e nem sei se a gente vai se ver mais. A vez mais recente que nos vimos foi lá no show A Última Sessão de Música. Na verdade, a última apresentação do A Última Sessão de Música, a definitiva, que aconteceu lá no Mineirão.
Pra mim foi um momento de grande emoção, uma alegria, principalmente porque ele me convidou, pediu ao empresário para me ligar e eu te digo que fiquei muito feliz porque ali meio que carimbou um grande período, que nasceu de uma amizade ingênua para uma verdade conquistada a duras penas para todos.
Carlim (Oganpazan): Parece que foi o fim dos shows, mas ele vai continuar compondo e gravando né?
Nelson Angelo: Mais ou menos isso, o fim das maratonas. Um momento, de grande emoção pra ele e amigos. Tudo tem sua hora e seu tempo. Bituca não para, nem eu. Saí de casa numa boa aos dezesseis anos, no final de 1966, primeira vez que andei de avião. Entrei em contato com a bossa nova ainda morando em BH.
Foi lá que ouvi o Chega de Saudade e o João Gilberto pela primeira vez. Aí eu pergunto, qual o músico, amante da música, que naquele período, não foi influenciado por esse capítulo? Assim foi o Clube da Esquina, a bossa nova, o Chega de Saudade, o João Gilberto e tudo mais. Portanto, todo mundo se influenciou por isso e por todos os outros gêneros musicais que tocaram nossa alma, Villa, Jobim, Noel, Hermeto, Edu, Caetano. Gil e tantos mais.
Carlim (Oganpazan): Então, a bossa nova já te conquistou em Minas Gerais, que pelo jeito te acompanhou na mudança para o Rio de Janeiro. (risos)
Nelson Angelo: Eu tenho um negócio forte dentro do meu peito e dentro do meu coração, que é uma máxima, que sempre digo, repito e repetirei, peço a Deus que não mude nunca, que é a seguinte frase: Minas em meu coração. Tenho Minas em meu coração até hoje e pretendo jamais tirar Minas do meu coração, nem que eu vá morar em Tóquio, Nova York ou em outro planeta. Eu sinto Minas em meu coração onde quer que eu vá. Mesmo que eu tenha me mudado para o Rio de Janeiro em 1966, eu sou Minas em meu coração. Carrego Minas aqui e pretendo continuar assim até o fim.
Carlim (Oganpazan): E o que motivou sua ida para o Rio de Janeiro?
Nelson Angelo: Bom, minha vinda para o Rio não tem nada a ver com nada. (risos) Acredite você. A minha vinda para o Rio de Janeiro foi porque meu pai que era médico, formado na Praia da Urca em 1930 e todo ano tinha uma festa da turma do meu pai e eu tinha seis anos de idade quando eu frequentei a primeira e era no Rio.
Aliás, não foi a primeira, foi a segunda, a primeira foi em Minas Gerais quando eu tinha cinco anos. Aí com seis eu vim aqui pro Rio de Janeiro pra essa festa da turma de medicina do meu pai. E a cidade me conquistou, o ar me conquistou, a praia me conquistou, não tem nada a ver com música, quer dizer, eu não vim fazer carreira de música no Rio sabe?
Carlim (Oganpazan): Podemos considerar então que sua carreira começou lá em Minas?
Nelson Ângelo: Eu pra te dizer a verdade Carlim, nunca pensei em carreira de músico, eu fico surpreso de hoje haver pessoas dizendo essas coisas, como essas que você está falando pra mim. E eu aceito, com muita humildade, porque são muitas pessoas que acham isso.
Carlim (Oganpazan): Sua ida pro Rio então foi pela paixão pelo clima, pela praia, que como você disse acabaram te conquistando?
Nelson Angelo: Pois é, eu vim pro Rio por pura paixão. A minha vida é movida por paixão em todos os sentidos. Até pra tomar um sorvete tem que ter paixão. (risos) Não tem jeito, se eu não gostar, se o santo não bater, a coisa não anda. E eu desprezo até a matéria, na verdade eu desprezo principalmente a matéria. (risos) Estou declarando isso em 2023, que faz toda a diferença. Tenho fé e confiança na misericórdia de Deus, que que ninguém nunca vai passar necessidade de ter onde morar, o que vestir e comer.
Carlim (Oganpazan): Também não demorou muito tempo pros amigos de Minas aparecerem aí pelo Rio né? (risos)
Nelson Angelo: E a paixão aumentou quando encontrei em final de 1966, Minas aqui no Jardim Botânico (risos). Foi a década dos festivais (participei do IV Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, juntocom o Bituca, a Cynara e a Cybele, em 1967. e depois nós fizemos aquele disco lá que tem a música Beco do Mota (referência ao álbum Milton Nascimento lançado em 1969 pela EMI-Odeon, terceiro álbum dele.
Depois, se não me engano foi o Clube da Esquina em 1972 e tanta coisa que eu posso até ter me confundido (risos). Mas enfim, as coisas foram acontecendo sem eu ter uma intenção, ou fazer planos pra uma carreira na música.
Carlim (Oganpazan): Foram muitos os projetos que você participou ao lado do Milton né?
Nelson Angelo: Pois é, houve uma fase em que eu toquei na banda do Milton, ele já tinha se destacado como líder, com muita sabedoria. Eu me sentia perfeitamente encaixado, porque eu tinha meu espaço, podia fazer meus arranjos e vocais coletivos, tocava o que eu queria, eu aprendia as músicas, mas tinha liberdade pra criar também.
E o Bituca é uma pessoa que tem uma abertura musical enorme. Me lembro dele olhando, e sorrindo, cantando e sorrindo se você fizesse uma frase bonita, um acorde que não estava ali atrapalhando a harmonia, que na verdade estava contribuindo.
Carlim (Oganpazan): E depois dessa fase aí ao lado do Milton?
Nelson Angelo: Daí se foram dez, quinze anos, mais ou menos isso, e eu falei, bom, eu preciso cuidar de mim. E comecei, até por conta de coisas, fatos ocorridos que não envolveram nunca o Milton, mas sempre terceiros, eu comecei a mexer, forçosamente, vou te ser bem sincero quanto a isso, com a minha carreira. A chamada “minha carreira”, que as pessoas chamam de carreira solo, rss
Porque por mim, eu tava lá tocando na mesma banda até hoje. (risos) Aquela banda podia ter virado uma sinfônica e eu lá no meu canto tocando ia estar muito feliz. Mas fui obrigado, pra sobreviver, a virar artista, entendeu? E aí temos um conceito, não meu, mas a concepção que as pessoas têm, afinal todo músico é artista, né?
Mas a concepção mercadológica não é essa. O cara fala, fulano é artista, beltrano é músico, e aí a gente consegue ver uma separação de classes, até mesmo como se dá socialmente né? Tem o banqueiro, o dono do banco, e o bancário. Isso é uma coisa que não foi a gente que inventou. Aí eu tive que lutar, virei produtor, e até uma coisa que sempre gostei na minha vida, mas nunca dei maiores atenções, que é cantar. Eu adoro cantar. Quem me encorajou foi o Luís Gonzaga, numa gravação que fiz com ele.
Carlim (Oganpazan): E é bom cantor também né?
Nelson Angelo: É a melhor coisa que existe. A música começa em cada um, pela voz e cada um tem a sua, como uma impressão digital.
Carlim (Oganpazan): E você tá a uma vida aí no Rio, né? A gente vê logo que você mantém Minas com você no coração porque até hoje você ainda fala “trem” e joga o sufixo “im” no lugar do “inho” quando fala o diminutivo. (risos)
Nelson Angelo: Foi isso, foi assim a minha vida, vim pro Rio, fui ficando aqui no Rio de Janeiro e só não falo é “xixxx” (risos). Mas eu torço pro Flamengo (risos), gosto de praia, mas quando acontece de jogar o Galo contra o Flamengo, claro, eu torço pelo Galo (risos). Eu sou Galo!,todo mundo sabe disso. Então é “Minas em meu coração nas paradas”.
Carlim (Oganpazan): Com o Milton e a Cynara e a Cybele, do Quarteto em Cy, você interpretou a música Sentinela, composição do Milton com o Márcio Borges, no IV Festival de Música A história da música brasileira, na época um festival de música de projeção nacional, aos 19 anos de idade. Como isso se refletiu na sua vida naquele momento inicial da sua carreira?
Nelson Angelo: Um menino de 19 anos não tem muita ideia do que está acontecendo, no sentido do que você hoje está perguntando para mim. Hoje tem uma importância, que pra gente naquela altura da vida, no calor dos acontecimentos não tinha. Hoje eu vejo aquilo como o desdobramento de um processo. Porque a gente não ficava pensando nisso … tanto que pra você ver , Sentinela é uma música tão importante, com letra do Márcio Borges , que o Milton tem um amor profundo por essa história.
Carlim (Oganpazan): As compreensões mudam de acordo com o tempo, né? Uma coisa é a percepção que se tem enquanto a coisa tá ali acontecendo, outra é quando se olha com o distanciamento temporal daquele momento específico.
Nelson Angelo: Sim, vamos combinar aqui. Tudo depende do tempo. Através do tempo o mesmo fato passa a ter diferentes interpretações. Muitas vezes um fato corriqueiro se torna muito importante, ou pode se tornar estranho também. O importante é se a coisa permanece. A variação pode ser grande. Então, assim, a filosofia do músico não tem o mesmo viés da filosofia estática. A filosofia do músico vem por intermédio da estética do seu tempo.
Carlim (Oganpazan): Então o músico autêntico é meio que aquele que vive a música e é fiel a ela, é por aí?
Nelson Angelo: A princípio a música é amadora. Dê certo ou não dê certo, entre aspas aí, o músico, no sentido de ter uma carreira, de ser conhecido, etc. Isso aconteça ou não aconteça, o músico é o músico, por isso é forte, por isso chega a ser polêmico e as pessoas do lado de fora pensam a música de um modo diferente de quem tá dentro dela.
A pessoa de dentro da música procura conseguir provar que sua música pode ser algo interessante e ralam, ralam muito. E tem que continuar ralando porque existe uma malícia com o passar do tempo que vai no sentido de se dizer coisas do tipo: “Nossa, mas o fulano fazia aquilo e agora não faz mais”. O trem da vida anda, graças a Deus.
Carlim (Oganpazan): É meio inevitável né? A constante mudança das coisas, uma vez que faz parte da dinâmica da própria vida.
Nelson Angelo: A vida passa, a vida leva, então, esse, pra mim, é o melhor link que tem entre a filosofia e a música, que se confundem e que mudam em uma determinada época. Por exemplo, músicas que não eram aceitas em uma determinada época passam a ser consideradas músicas maravilhosas porque o tempo deu a compreensão. Músicos que eram condenados, entre aspas, pelo fato de citarem certas coisas, eram rechaçados, taxados de bregas, etc.
Esse preconceito existe e chega a se confundir em uma verdadeira Babel. O planeta virou agora, as coisas que existem continuam e continuarão existindo. Porém, você tem novas razões, novas motivações, novas maneiras de se dizer coisas que hoje podem ser agressões, podem ser coisas que as pessoas não aceitam mais. Então essa discussão musical filosófica é uma discussão que mudou, não existe mais uma coisa pregada.
Só existem os escritos sobre isso, e até eles mudam, só mantém seus princípios, a dignidade, o talento, o carinho e a dedicação. Mas o resto vai mudando a ponto da própria terminologia … música tem muita gíria, ainda mais na música popular … gírias da época que até depois ganham uma conotação de preconceito e perdem o sentido que tinham em uma outra época. É dinâmico.
Carlim (Oganpazan): Quero aproveitar o gancho da sua fala sobre os sentidos que as palavras, as expressões têm de acordo com a época para falar sobre a retomada nos últimos anos do apelo de parte da população por intervenção militar, o elogio ao militarismo e ao período em que os militares junto com o apoio de parte da sociedade civil instaurou um governo de exceção em nosso país. Você que viveu esse período e viu amigos e colegas da música serem perseguidos e torturados pelos militares, o que você pensa sobre esse apelo, inclusive de jovens, por intervenção militar hoje?
Nelson Angelo: Uma das coisas que eu quero frisar é o espanto diante de pessoas que são a favor desses horrores que você citou aí! Ninguém deveria ser a favor desse tipo de coisa. Porém, o capeta também é filho de Deus. O músico, frisando, o músico, a função política do músico é manifestar essa opinião com clareza e atitudes. É bíblico, existem os perseguidores e os perseguidos. Batem exatamente onde as pessoas sabem o que representam.
Quem eles são, que venham surtir efeito a não ser os mesmos prejudiciais de sempre. Como diz o ditado, “a corda arrebenta sempre do lado mais fraco” e se ela arrebenta pro seu lado, aí é que você deve fazer alguma coisa. Então, é por isso que eu luto agora e nunca irei parar de lutar porque não estou aqui a passeio. Eu já estou participando dessa luta faz muito tempo, o tipo de repertório, que até pode ser considerado romântico, mas ele está ligado ao tempo, ele está dizendo qual tempo que se passou isso, está dando sonho e coragem.
Carlim (Oganpazan): As músicas românticas também podem ter esse apelo combativo né?
Nelson Angelo: Eu uso a música, porque senão eu vou começar a fazer discurso e parar de estudar violão, vou parar de compor e vou reclamar no final da história porque não vou obter o mesmo resultado. E é muito mais difícil obter o resultado pela sutileza, pelo belo, pelo bem.
Carlim (Oganpazan): Você fala sobre esse traço gregário do ser humano, da necessidade de manter relações com outros seres humanos me leva a ressaltar algo que é característico do seu modo de fazer música. O que é interessante no que toca à sua vivência musical, na sua vida musical, é a coisa de você sempre construir, na relação com outros músicos, tendo a música como motor, construir uma comunidade que tem a música como catalisador. Por exemplo, quando você tem contato com Naná Vasconcelos … ele vai ser uma pessoa importante na sua vida, a parceria que rendeu vários projetos importantes. E com outros músicos ao redor. Pesquisando sobre você para realizar essa entrevista vi que você formou um Grupo com o Naná e o Geraldo Azevedo chamado Quarteto Livre, é um dos grandes grupos dos quais você fez parte. Graças a este senso de comunidade muito presente em vocês do Clube da Esquina, essa vontade de sempre realizar projetos agregando outras pessoas. Gostaria que você falasse um pouco sobre isso. Sobre essa coisa de vocês serem músicos que desejam agregar e se identificarem com outros músicos através da música. Acredito que isso rendeu muitos frutos e um legado sem precedentes para a música brasileira.
Nelson Angelo: Todos nós, que temos alguma coisa a seguir pela vida fazendo isso ou aquilo, temos que aprender com os antepassados. Todos nós fomos criados por comunidades. Até os gênios, como Beethoven, vêm de uma comunidade, eles também são parte de um elo e vão dar um elo seguinte para quem tá vindo, isso é inevitável. Então essa coisa do Naná, do Geraldinho, do Novelli, do Wilson das Neves, que também participou da nossa comunidade com muita alegria, e muitos outros, que tivemos o privilégio de andar juntos, de aprender, e de certa forma também ensinar.
Nomes como Tom Jobim, Chico Buarque, Vinicius de Moraes, essas pessoas tão importantes, o Johnny Alves, a Alaíde Costa, a Elis Regina, é uma história muito rica …. Elizeth Cardoso, maestro Radamés Gnattali, Jacob do Bandolim. Podemos ficar quatro cinco dias citando nomes. Por isso que o destaque não passa de vaidade. É tanta gente boa que são comunidades de destaques.
Os trabalhos são muito importantes para que se mantenham … olha, não conseguimos consertar o mundo e duvido que algum dia o mundo conserte porque ele é assim. Porém, nós ajudamos a mudar tantas coisas né? Isso que pode ser considerado pouco, na verdade é muito. Para seres humanos que lutaram e lutam sempre por essa ideia.
Carlim (Oganpazan): Nelson, de antemão quero agradecê-lo pelo excelente bate papo, pela sua disponibilidade para conceder essa entrevista, foi muito bom ouvir de você o que você pensa sobre sua obra, sobre a vida, sobre a música, ouvi-lo falar com tanta paixão de nossa querida terra natal Minas Gerais. Vai ser uma honra para o Oganpazan ter uma entrevista com você publicada. A pergunta que quero fazer diz respeito à sua biografia. Arthur Vinih comentou comigo quando estive em Ponte Nova que um jornalista está escrevendo sua biografia. Inclusive ele esteve em Ponte Nova para, devido sua relação com a cidade, para conhecer os lugares e pessoas com os quais você tem relação lá na região. Gostaria que você falasse um pouco da biografia, de sua relação com Ponte Nova e se ́já existe uma previsão para publicação?
Nelson Angelo: Foi um prazer! Um assunto de bem querer. Quanto à biografia, também foi uma surpresa. Quando eu vi já estava rolando uma história dessas. Até sem eu entender muito como fui parar aí… Geralmente a biografia de alguém sai quando a pessoa morre. Até isso eu consegui contornar pelo fato de que eu não quero que as pessoas fiquem escolhendo minhas coisas. Eu outro dia falei com o biógrafo que foi a Ponte Nova e outros jornalistas que foram até lá, que emitissem opiniões e não cortassem nenhum fato, que doesse a quem doesse, inclusive e principalmente a mim.
Fosse o contrário eu ficaria com a sensação como se eu estivesse censurando uma crítica uma opinião, soaria como se eu estivesse fazendo um tipo de censura. Estou muito feliz com isso, estou deixando rolar, resolvi assumir o projeto e quando eu fui analisar melhor eu vi que fiz muita coisa que poderia dar uma história bacana. Eu não ganhei o Grammy Latino, o Oscar (risos), mas ganhei muita coisa que mostra o reconhecimento do meu trabalho.
As coisas que o Bituca falou pra mim, as coisas que o João Gilberto falou de mim, o Dorival Caymmi, o Chico Buarque, o Tom Jobim, o Caetano são coisas que considero prêmios! Eu fico muito feliz com os prêmios recebidos, quem sabe eu venha a receber mais alguns, inclusive post mortem, né? Ou melhor, principalmente post mortem porque é sinal que algum dia as pessoas te compreenderam e é mais confortável porque você não está aqui pra dar declaração. (risos) Mas te confesso que não é algo com que me preocupe.
Às vezes eu tinha medo de não ser lembrado pelas coisas que fiz. Agora não! Eu prefiro que se cumpra a lei! Muitos risos… Belo Horizonte e Ponte Nova são meu coração e meu sangue. O Rio é paixão.