Segundo disco da carreira de Nego Gallo, traz participações de Don L, Diomedes Chinaski, Emociomar e Rico Dalassam em 15 faixas de excelência.
“Bons jogadores nós conhecemos no arriar da mala” Sotero Monteiro
Existem duas opções de entendimento do contexto sob o qual o novo disco de Nego Gallo se assenta e se desenvolve. A primeira opção é para aqueles que não fecham com a xenofobia e não possuem ouvidos presos em uma bolha algorítmica de alguns poucos artistas do rap. Sendo assim, de antemão já estão preparados para o que será apresentado, pois sabe-se que se está diante de um dos MC’s mais importantes da história do Hip-Hop Nacional e uma das vozes mais potentes do Rap Nordestino.
Neste caso, já se chegará sabendo do grupo cearense “Costa a Costa” e da clássica mixtape “Dinheiro, Sexo, Drogas e Violência” de 2007, e com certeza já ouviu o EP “Carlin Voltou Tia (2016)” e “Veterano” lançado em 2019, seu primeiro disco solo. O ouvinte desta classe sabe a revolução musical da qual Nego Gallo fez parte, e poderá esperar deste “YOPO”, a continuação e o desenvolvimento estilístico presente em Veterano, que foi aclamado por público e crítica.
-Leia no nosso site uma resenha sobre a importância do grupo Costa a Costa
Desta forma, temos que assumir que o segundo grupo, que para a sua sorte caiu neste texto, estará próximo de conhecer um disco único no Rap Nacional. Entendendo que nunca ouviram o Nego Gallo e talvez por extensão não tenham muito conhecimento do rap que é feito fora do eixo Rio-SP. Mas com isso assumido, poremos confiança que ao ouvir a poesia “Abertura” que abre o disco e a faixa seguinte homônima ao disco “YOPO”, entenderão que estão diante de um grande trabalho.
“Nordestinos Vivem Lutas Épicas” Nego Gallo
De saída a faixa que inicia os trabalhos do disco, uma poesia intrincada e recitada sem acompanhamento especial, emulando um flow cativante, “Abertura” nos mostra que Nego Gallo está – como todos deveríamos saber – atento e preocupado com os caminhos de nosso país. Como um jardineiro zen, o MC cearense cultiva cada galho que emana de seu espírito com atenção, técnica e sob uma visão ideológica que deixa os versos escuros e límpidos o suficiente para o entendimento de qualquer um.
Leia no site matérias e resenhas sobre os discos de Nego Gallo!
Das suas vivências nas favelas de 4Town, o artista emana imagens poéticas que dão conta do último período fascista que vivemos recentemente no Brasil, mas também sem deixar de acenar como um aristocrata preto: “Tudo muda para que continue o mesmo!”. Me explico, ao aludir ao momento que vivemos recentemente em termos políticos nacionais ele não esquece o passado e nem promete grandes melhorias para o futuro.
Com a “serenidade” de um rei de si mesmo, com as pupilas dilatadas depois de dar uma cafungada no rapé, e nos falar sobre dignidade, sobre lazer, sexo e amor, pelazarea em sua cidade, Nego Gallo assume e sabe que seguiremos na luta. Uma das grandes lutas que ajudaram a constituir esse país e que inclusive nos livrou de mais um mandato do fascista, “nordestinos vivem lutas épicas”. Luta que o artista sabe que também é sua, reconhecendo os seus antecessores e os seus iguais.
Em um domingo de manhã recente, entrevistei o Nego Gallo às 8 da manhã sobre alguns aspectos do seu novo trabalho. Este nêgo veio que aos 50 anos estava saindo do plantão como arte educador, me confidenciou sobre o YOPO:
“Uma das várias medicinas indígenas, YOPO é um rapé que possui DMT de modo enteógeno. Entre outras experiências ele foi o início de algumas experiências que eu acessei no período de 2020-24, o álbum não trata dessas experiências mas, da forma como eu passei a encarar os desafios com esse aporte para observar bem. O álbum faz um caminho de uma forma de ser para uma outra. Talvez não melhor e nem de longe algo que me torne melhor do que ninguém mas, tá nesse lugar de ver para além do que está posto como vida de sucesso.”
Essa aproximação com uma medicina de origem índigena é o que tem conduzido as ideias, os afetos e percepções do artista cearense. Plasmando aqui, um disco que navega entre sonoridades contemporâneas como o Trap, Drill e a Swingueira, mas que finca mesmo as raízes no reggae, como já tinha feito no antecessor “Veterano’. Musicalmente o disco de Nego Gallo é um surra que nos lembra o quanto o que é feito no mainstream do eixo Rio-SP é uma diluição infantil do que se possa chamar de arte do Rap como parte da cultura Hip-Hop.
As produções presentes em “YOPO” são todas de Nego Gallo com as colaborações de excelentes nomes: Emiciomar nos beats, do Léo Grijó na tecladeira, do Bruno Dupré nas guitarras e a percussão de Eric Barbosa. Tudo isso temperado pela direção de produção de Wellington Gadelha e de arte da Kambô. Lançando um produto artístico único em termos de sonoridade e lírica, de flow e cadência, o disco de Nego Gallo não é fruto de uma reprodução em série.
Sua espiritualidade é confessional, não de conversão, logo não busca a formação de uma igreja no entorno, ela se define por uma expressão única e sem beatificação possível. Prova disso é que ele escolheu o termo “Catedrais” para nomear uma das melhores faixas do disco e que nos remete a essa luta política de quebrar o controle daquilo que nós fruimos/consumimos em termos de arte/música.
Antes de “Ninguém Morre”, temos uma faixa curtinha que é uma espécie de poema interlúdio, chamada “Tá Foda”, onde Nego Gallo explana a miseria da branquitude dos “whitepardos brasileiros” e sobre as atrocidades que sua base civilizacional são capazes. E numa espécie de clamor ele versa: “Escuta o meu lugar de fala”. E é deste mesmo lugar que a música “Ninguém Morre” parte mas para dizer outra coisa digamos, mais essencial para o nosso povo.
“Há muito tempo isso tem me elevado, por instinto e por onde esse caminho tem me levado te levo para ver do morro, te levo para ver o que eu vejo, elementos e substância”
É aqui talvez que o “YOPO” tenha mais efeito durante o disco de modo direto, como uma frequência na qual através da sincronização o ouvinte consiga entender e sentir o que está sendo dito pelo Nego Gallo e seus convidados. Em “Ninguém Morre” temos as participações elegantíssimas de Emiciomar e do Rico Dalasam, que vão discorrer sobre a importância da coletividade na cultura preta, dos vetin de hoje aos antepassados fundadores como Grande Otelo. Tudo isso, numa base de reggae pesada sob a condução segura da tecladeira de Léo Grijó.
Como dissemos, entre o Trap e Reggae, Nego Gallo meteu um drill no meio do disco com a faixa “Bela Luz”, uma love song. E na sequência vem um resgate da juventude e da ancestralidade do artista na faixa “Novembro”, sobre a qual ele nos contou:
“Aquilo foi parte de uma conversa na casa do Erick que Ogan e tem um espaço onde ele me gravou falando da memória de minha avó, que era filha de santo na casa de Ogum Megê, uma casa em que eu cresci no Rio de Janeiro ali no Bairro do Encantado.”
Em ritmo Trap com sample cubano, “Machado de Xangô” tem produção do trio Emiciomar, Nego Gallo e Léo Grijó, e conta com a participação do seu parceiro do Costa a Costa, Don L. A música tem como tema a justiça que a gente, povo nordestino luta e espera para ter, os versos de Nego Gallo e o flow que o MC desenrola, emana o mesmo que a letra. Serenidade sobre o seu papel como artista e ser humano, filho e marido, a consciência de que é um gigante dentro da cultura.
Os versos de Don L emulam um storytelling que parte da ideia de revide à xenofobia, citado nos versos anteriores do Nego Gallo, “são turistas onde eu sou nativo”. Com uma qualidade inequívoca e provada há muito, Don L utiliza uma brilhante metáfora relacionando os turistas roubados à forma como ele próprio e por extensão o Nego Gallo, através da criação artística seguem superiores no game do rap.
Esse encontro do Costa a Costa que já tinha acontecido no primeiro disco do Don L na música “Aquela Fé” e depois no próprio Nego Gallo em Veterano na pesadíssima: “No Meu Nome”, se renova. Aqui também algo muda o fim do filme, mas não é mais uma frase, mas sim uma IDEIA! Nos versos de Nego Gallo ele faz o seguinte comentário:
“Peu falou: vão te limar, só tem invejoso, eu disse tô nem aí deixa eles lá, eu quero algo novo”
Em “Yopo”, de modo cifrado, Nego Gallo expressa ideias muito fortes ao longo de todo o disco. Uma ideia de nordestinidade altiva, brilhante, lutadora e humilde, sem mistificações e consciente de seu papel nacional. Isso pode ser denotado da postura que é rimada pelo MC nesta faixa “Machado de Xangô”: “Não deixe que eles te impeçam de sorrir” […] “Eles são o que tem, eu os que trago comigo”. Uma aula magna de Hip-Hop, como pouco se vê por aí em um mainstream do rap que é uma corrida de ratos da branquitude sendo reproduzida e reafirmada em seus métodos mais asquerosos.
Após a “santeria” de “Machado de Xangô”, um bregafunk onde Nego Gallo mais canta do que rima, em “Vidas Singulares” o tema são as relações amorosas. O reggae volta bem “roots” com a música “Sem Remorso” que conta com a participação de Diomedes Chinaski. Nesta música, a guitarra de Bruno Dupré fala alto e os MC’s rimam refletindo cada qual ao seu modo sobre o título da faixa.
Penúltima faixa do disco, em “4TOWN” Nego Gallo mistura reggae e pagodão, rimando sobre autoestima, sobre o orgulho de ser nativo de Fortaleza. E segue na mesma pegada do reggae na faixa que encerra o disco, “Hienas”. Refletindo sobre a busca por boas energias, sem papo de “good vibe”, os versos do MC são conscientes das dores e dos amores, das dificuldades e dos bons momentos. Mas sua escolha é pela afirmação da vida, da arte, de seu território e da sua/nossa gente.
Em “YOPO”, Nego Gallo cria mais uma vez um disco onde se afirma como MC e como Toaster, entre o Rap e o Reggae, a busca por uma vida digna, pela alegria e pelo amor é o que está sendo atravessado ao longo de todo o trabalho. Rap de adulto e Reggae de negão. Um dos maiores da arte, cultura Hip-Hop, Nego Gallo alegra e educa, na contramão do mainstream sem terror nenhum, sem inveja alguma, nordestino e preto até a medula, um dos nossos pilares. Que ele continue se movimentando pois dessa forma nós também estaremos sendo em movimento.
-Nego Gallo na frequência do YOPO, segue na trilha: “Nordestinos vivem lutas épicas”
PorDanilo Cruz