Com a produção de Pupillo e participação do MC Matéria Prima, Nego Freeza apresenta um primeiro album solo: ICYEREKEZO!
Em uma era em que a música transcende barreiras e se mistura com as ruas, Nego Freeza, a voz marcante da banda baiana OQuadro, lança seu novo trabalho solo ICYEREKEZO, e o impacto é visceral. Se você acha que vai encontrar o básico aqui, pode mudar de ideia, pois está no lugar errado. Com Pupillo (ex-Nação Zumbi) no comando da produção, a expectativa já era alta, mas o resultado é um tsunami que devasta e ao mesmo tempo harmoniza a maresia entre beats eletrônicos, sintetizadores hipnóticos e letras afiadas como navalha.
Freeza, conhecido por sua inquietude criativa, não perde tempo. Ele mesmo já declarou em entrevista aqui no Oganpazan: “Se eu fico dois, três dias sem escrever, eu já entro em crise”. E essa urgência pela criação fica evidente em ICYEREKEZO. O álbum é uma obra que captura o pulso da rua, a angústia do cotidiano, mas também a beleza do caos urbano. Pupillo, por sua vez, traz todo o seu know-how acumulado desde os tempos de Nação Zumbi, somado a colaborações com Gal Costa, Criolo e Emicida. Aqui, ele constrói um universo sonoro que vai muito além do Hip Hop tradicional, criando uma ponte entre o passado, presente e futuro da música brasileira.
-Leia a entrevista que fizemos com o Nego Freeza aqui no site, clicando aqui
Sem perder tempo, Freeza abre o álbum com um convite para um novo território em “Bem-Vindo”, faixa que se destaca pelo peso do beat, a percussão marcante e o baixo synth maestramente orquestrados por Pupillo. A dupla cria uma atmosfera densa e climática para atravessar a soleira de uma porta onde o futuro e o passado se entrelaçam. Nego Freeza e sua voz poderosa nos guiam para dentro desse universo: “Vâmo!”.
Entramos, depois das boas-vindas chegamos ao “Nosso Ilê”. Nas misturas únicas que continente Brasil proporciona alguns termos são incorporados a fala desse território sofrido e resistente. Uma delas é a palavra “Ilê”, tão comum que parece ser de casa, todavia o termo – assim como o título do álbum – é de origem africana. No idioma iorubá “ilê” significa, de fato, casa, também podendo ser compreendida como altar ou casa do candomblé, em outras palavras: terreiro. A força da rima de Freeza derrama ancestralidade que, aliás, é um tema recorrente nesse projeto. Em busca de ICYEREKEZO, o artista faz ode a espiritualidade e seu regresso à África: “hoje é sexta e eu visto branco!”. Pupillo tece uma base que funciona como um mantra eletrônico, reforçando as raízes ancestrais que convertem sem se perder (como já cantou Marcelo Yuka) e ecoam na sonoridade.
Uma vez em casa, a ancestralidade carrega enaltece o “Brilho Forte”. O retorno e a espiritualidade fazem com pretas e pretos elevem a autoestima que fora roubada por eras. Esse pé na porta dita o ritmo da primeira parte da música com a atmosfera tensa e sombria orquestrada por Pupillo. De repente a virada do beat para algo mais envolvente à lá Miami Bass e tom como em uma canção de guerra para lavar a alma e de fato “denegrir” o álbum (não que não estivesse explicito desde a primeira faixa!): “sou pretinho, sou raiz. Autoestima que me diz, brilho forte, resistência! Minha pele, minha essência! Cabelin’, crespo sim! Pele preta, cafezin’! Orgulho de ser assim!”
A autoestima é alta, ainda mais depois de adentrar o Ilê. E é nessa pegada que Negro Freeza convida o rapper Matéria Prima para um rolê em “Meu Lar”. A fusão não se dá apenas pelas vozes e mentes criativas dos dois MC’s, mas também com os poderosos arranjos de Antônio Neves. O piano Rhodes, trompete e trombone encontra harmonia com percussão orgânica, o synth e sintetizadores do mestre Pupillo, o casamento entre o orgânico e o eletrônico completa bodas e atinge seu ápice. A melodia da levada de Freeza marca a construção rítmica da canção que fotografa a quebrada da forma visceral e crua, seja ela boa, seja ela ruim. Matéria Prima se sentem casa, pois saca que – parafraseando o poeta GOG – periferia é periferia em qualquer lugar, sua vivência no underground brasileiro é traduzida na lírica única que nos entrega nessa dobradinha.
Apresentar a quebrada é uma forma de identificação e de enaltecer o sentimento de pertencimento dos nossos. A identidade é elemento crucial, pois cada área tem seus tipos e modas, mas os códigos periféricos são os mesmos independentes do CEP. Eu explico melhor voltando ao tempo em 1986 e o disco Selvagem?, do Paralamas do Sucesso, a faixa “Alagados” carrega a seguinte frase: “Alagados, Trenchtown, Favela da Maré / A esperança não vem do mar / Nem das antenas de TV”. Nesse trecho do hit de João Barone, Bi Ribeiro e Herbert Viana são citadas três quebradas: o aglomerado de comunidade da Zona Norte do Rio de Janeiro, no conjunto da Maré; Trenchtown, nos subúrbios de Kingston, a capital da Jamaica, que teve como ilustre representante a lenda Bob Marley; e por fim uma quebrada de Salvador, o bairro localizado na Península de Itapagipe – e instalado numa região de manguezal – com suas palafitas fincando a arquitetura ousada e subversiva da madeira sobre as estacas fincadas nos córregos.
Os Paralamas traçam esse paralelo entre três favelas geograficamente distantes de si, mas que bebem de fontes em comum para que “todo dia, o sol da manhã vem e lhes desafia” e que “traz do sonho pro mundo quem já não o queria”. A distância física não separa os povos e suas lutas, tanto que ainda neste ano de 2024 outra referência musicada reforçou esse ponto de vista. O Maestro do Canão, o eterno Sabotage, completaria suas 50 primaveras neste plano se vivo e comemorou-se o cinquentão do rapper com o álbum Sabotage 50 com releituras de músicas de Sabota. Em “Dama Tereza” o cearense Don L se junta à baiana Luedji Luna (em cima de uma produção do NAVE Beatz) e se recorda que “Salvador me lembra Trenchtown”, além de frisar os nomes de quebradas: Brooklyn-Sul, Canão, Espraiada, Fortal.
E de Fortal para a Trenchtown brasileira, Nego Freeza aciona Pupillo, representante da Manguetown, como Chico Science e amigo batizaram a capital pernambucana no início dos anos 90. Pupillo adentra na Nação Zumbi no segundo disco, assumindo a percussão e substituindo o baterista Canhoto. Recife, assim como a favela de Alagados, foi construída sobre um enorme manguezal e daí o nome que não só rebatizou Hellcife como Manguetown, mas também nomeou a movimentação artístico-jornalística que pavimentou a cena e gerou o vulcão Dr Charles Zambohead, que todos conhecemos mais como Chico Science.
Depois desses enormes parênteses, voltamos ao universo costurado por Freeza e Pupillo e a faixa “A Gente Pulsa”. Essa canção é como uma chamada de uma área para outra (de Trenchtown à Manguetown) para acionar o camarada para um “ouve aí, véio!” e a música que contagia, inspira e a gente pulsa! O baixo groovado e o beat certeiro servem de cozinha para o sintetizador de Carlos Trilha, cumprindo a missão de transmitir a dançante e vibrante música de guerra.
A jornada espiritual atinge o ápice em meio a desordem e o pedido, em forma de oração, é feito no ilê. Freeza faz sua prece: “Força criativa eu te peço, livre nosso povo desse inferno”. Estamos na “Sinfonia do Caos” que, sem dúvida, é uma das faixas mais potentes do álbum. Pupillo e seus sintetizadores criam um ambiente distópico, quase cinematográfico. É uma trilha sonora para tempos de incerteza. Já o MC declama linhas que ecoam as angústias da modernidade. Há um diálogo entre os tempos atuais, onde a tecnologia reina soberana como um deus de viés atroz, e o Manguebit enquanto escola e ilê de Pupillo. Me refiro a frase: “computadores fazem artistas, sob a demanda inteligência artificial imperialista”, Freeza resgata a canção de Fred Zeroquatro (Mundo Livre S/A) sobre o uso da tecnologia para dissimular artistas sem talento. O mangueboy previa o domínio dos computadores na sociedade contemporânea. A música fora gravada em 1994 no primeiro disco de Chico Science & Nação Zumbi, o Da Lama Ao Caos.
Importante não deixar de comentar que “Sinfonia do Caos”, ao contrário do que a letra da música descreve quanto ao meio de produção pasteurizado das criações modernas, a construção de Pupillo e Freeza passa longe desse modus operandi e de fórmulas batidas. O beat com elementos de trap se fundindo com o vocal ragga do refrão dá ainda mais sentido a proposta do encontro entre o antigo e moderno.
Na penúltima faixa do álbum ICYEREKEZO, “Resistência do Passado”, Nego Freeza mergulha em uma reflexão profunda sobre a escravidão moderna imposta pela tecnologia. A produção rica de Pupillo, com seus beats eletrônicos, sintetizadores e backings, cria um ambiente sonoro denso (e põe denso nisso!), refletindo a pressão e a dependência que a era digital exerce sobre nós, onde o ponderado e absurdo estão distantes em um abismo, mas se confundem graças as fakes. Carlos Trilha, com seu sintetizador, adiciona camadas que intensificam a sensação de um mundo envolto em ilusões.
Freeza aborda a tecnologia como uma droga que vicia, subtraindo a capacidade crítica dos indivíduos e incentivando a preguiça de pensar e criar. Em meio a essa crítica, a fictícia Wakanda é invocada, um poderoso país socialista na mitologia Marvel, conhecido por sua riqueza em vibranium e sua sociedade avançada. Contudo, essa representação é apenas uma ilusão hollywoodiana que não reflete a realidade vivida pela população negra em todo o mundo, que continua a lutar contra desigualdades e opressões.
Ao dizer que “só quem sabe onde é Luanda consegue me dar valor”, Freeza estabelece um elo com suas raízes africanas e se comunica diretamente com aqueles que buscam reconectar-se com sua ancestralidade. Essa referência ao kinyarwanda, a língua do título do álbum, é um convite à reflexão sobre a história e a espiritualidade que moldam a identidade negra.
Nego Freeza utiliza a expressão “ghost machine” como uma forma de criticar a forma como a tecnologia aparece como uma solução instantânea para problemas complexos. Freeza sugere que, assim como esse conceito, a tecnologia oferece respostas rápidas, mas desconsidera as raízes e as verdades mais profundas da existência humana. Ao fazer essa alusão, o MC enfatiza a superficialidade das soluções tecnológicas e convida à reflexão sobre a verdadeira resistência e autonomia que vêm de nossas experiências e histórias, especialmente no contexto da luta negra e da busca por identidade.
Ao fechar o álbum ICYEREKEZO, a faixa “Espaço Versos Universo” se revela como uma obra-prima que transcende as barreiras da música, transformando Nego Freeza em uma divindade criadora, à lá Dr. Manhattan. Assim como o personagem de Watchmen, que detém o poder de moldar a realidade com um estalar de dedos, Freeza usa sua arte para dar vida a um novo universo, onde cada verso é uma estrela e cada batida, um pulsar de vida.
Resgatando o Primeiro trabalho d’OQuadro, o homônimo de 2012, a criação se encaixa na manchete “Extra! Extra! Deu no Planeta Diário: querido diário, eu não sou desse planeta!”
A letra é uma ode à criação, um ritual musical que evoca a espiritualidade africana e a força dos orixás, figuras centrais no candomblé. Aqui, a música se torna uma ponte entre mundos, um elo que conecta as tradições ancestrais às urgências do mundo moderno. Freeza, como um orixá contemporâneo, invoca os elementos da natureza, transformando o som em uma força vital que ecoa os ritmos da terra e do cosmos.
Musicalmente, a faixa se destaca pela produção de Pupillo, que remasteriza influências do jazz. O saxofone de Oswaldo Lessa se entrelaça com os beats eletrônicos, sintetizadores e percussão, criando uma textura sonora rica e orgânica que contrasta com a superficialidade do mundo pasteurizado. As referências são enaltecidas como como o lendário John Coltrane e sua obra “A Love Supreme”. Essa referência não é apenas um tributo, mas uma necessidade de resgatar a profundidade emocional e a espiritualidade que a música pode oferecer.
Nesse universo, Freeza revela a urgência de um mundo que muitas vezes se apresenta como plástico e descartável. “Espaço Versos Universo” nos convida a refletir sobre a realidade em que vivemos, repleta de ruídos artificiais e pensamentos vazios. A mensagem é escura: em meio à correria e à superficialidade, a música e a espiritualidade oferecem um caminho de volta ao que é verdadeiro e autêntico.
Produzido com maestria e uma direção musical escura, ICYEREKEZO não é apenas um álbum; é um manifesto. Freeza e Pupillo unem forças para entregar um trabalho que dialoga com as ruas, mas também olha para o futuro. O álbum não tem medo de explorar novas fronteiras sem nunca se esquecer das raízes.
ICYEREKEZO é, portanto, bem mais do que uma crítica à tecnologia e o contemporâneo em prol de um romantismo barato a nem sempre saudável nostalgia. Se engana quem fez essa leitura. Esse é um chamado à consciência, um lembrete de que, mesmo diante das ilusões e das correntes modernas, é possível encontrar força na conexão com o passado e na busca por uma verdade mais profunda. A música se torna um manifesto que exalta essa resistência que também evoca a espiritualidade que transcende a superficialidade do presente.
A “visão” que Nego Freeza propõe em ICYEREKEZO é vislumbrada no mergulho nas profundezas da espiritualidade africana e da resistência cultural. Cada faixa é um grito para a reflexão sobre os desafios do mundo moderno, onde a urgência e a superficialidade muitas vezes ofuscam a verdadeira essência da vida. Desse modo, é explosão sonora que dá a identidade que celebra a ancestralidade e uma afirmação de que, mesmo em tempos de caos, a esperança sempre encontrará um caminho para brilhar. Um brilho forte!
Termino esse texto com um relato pessoal. Primeiro, se encararmos a música como uma fonte capaz de operar milagres, sou testemunha de um deles. A vida de quem escreve sobre cenas musicais que se forjam no underground, sem apelo de grandes mídias (grande, no sentido de propagação, mas que são tão pequenas como são baixas!) não almeja milhões de views, mas o “ninguém viu” frusta e a frustração é pela falta afago no ego e tapinhas nas costas para um “mano, que texto foda!”, mas pela busca de um papo de boteco, regado a tubaína e cerveja para falar com os nossos sobre música. A migo que é amigo presenteia o chegado com boas indicações. E é assim que o poderio milagreiro do universo musical agiu sobre o velho Jeffão aqui. Outrora chamado de caneta sem freio, quase deixei minha caneta secar e largar mão da paixão que me move. Fui resgatado por Don Danilo Cruz, me provocando a escrever. Provocação vinda de um “escuta aí e depois me fala o que achou”, é jogar a isca e dar a ocasião pro ladrão. O resultado você leu acima. Seguimos, pois pra nós não existe plano B!
-Nego Freeza lançou ICYEREKEZO: Um universo semântico, atemporal e a arte de viver da fé
Por Jeff Ferreira