O Napalm Death prova que é possível envelhecer bem e em registro cheio de experimentalismo, mostra-se ainda mais agressivo!!
Em 1987, o Napalm Death, ou melhor, 2 Napalm Deaths, que não se parecem fisicamente ou sonoramente em nada com a banda que vamos falar por aqui, levaram o hardcore e o punk às últimas consequências, escrevendo assim o manual do que hoje chamamos de grindcore: Scum. Acontece que no exato momento em que colocamos pra tocar From Enslavement To Obliteration, seu segundo lançamento, e sentimos nossos rostos derreterem pelos berros desesperados de Lee Dorrian em “Evolved As One”, percebemos, enquanto recolhemos do chão o que sobrara de nossas faces, que o Napalm, ao invés de se acomodar, passaria sua carreira inteira tentando provar que poderia superar aquele tão festejado evento do citado ano, e por diversas vezes, conseguiu.
De lá pra cá, o grupo passeou por todo tipo de música: noise, death metal, pós-punk, rock alternativo, groove metal, industrial, crust, passando até pelos saxofones do jazz, bem antes de Rivers of Nihill virar pauta de conversa de bar. Tudo isso sem deixar de lado as suas marcas registradas: paixão e intensidade. A banda não apenas toca música extrema, Napalm Death é a própria música extrema.
Não precisamos mais relatar no que 2020 se transformou, e se as coisas estivessem ainda mais complicadas (como se pudessem ficar) e eu precisasse escolher uma única banda para fazer um único lançamento no ano, seria o Napalm Death. Nenhum outro grupo é capaz de fazer uma música tão apocalíptica, porém, tão positiva que pudesse nos dar a noção de um perigo tão próximo, tão latente, mas que ainda nos fizesse querer lutar cegamente para dar a todos que amamos alguns instantes de paz.
Para entender melhor com o que estamos lidando aqui é muito importante voltar no tempo. A incrível história de Scum diz muito sobre o que aconteceria com a banda nos anos seguintes: a obra é resultado de duas sessões, com dois times diferentes, tendo apenas em comum o baterista Mick Harris. A proposta de som dos dois momentos também é bem distinta, enquanto temos um massacre punk/hardcore por parte do trio, no lado B, com o quarteto liderado por Bill Steer, temos um som muito mais diversificado, passando por sludge, no wave, noise, tudo no volume mais alto possível.
Esse trabalho já apontava que o Napalm era um conceito, uma energia, algo muito maior do que os integrantes que estavam gravando ou um gênero que poderia ser usado para encapsular seu som. Seria apenas no quarto álbum(!), Utopia Banished (1992), disco primoroso que encerra a fase em que a banda flertou forte com o Death Metal, que conheceríamos a formação que temos hoje (ou não).
Após Utopia, o grupo viajou por todas as tendências dos anos 90, e dividiu os fãs. Acontece que em 2000, com Enemy of The Music Business, último registro com o falecido Jesse Pintado na segunda guitarra, o Napalm Death inaugura sua fase mais prolífica e imponente, com álbuns pra ninguém botar defeito, chegando ao Apex Predator – Easy Meat, de 2015. Este revela mais uma reviravolta em sua trajetória, abrindo as portas para um projeto de pesquisas sonoras que se mostraria em sua forma mais arrojada agora neste novo trabalho.
Cincos anos após Apex, em 7 de fevereiro, quando 2020 ainda não tinha um céu em tons avermelhados sobre faces tensas cobertas por máscaras, o Napalm solta o EP Logic Ravaged by Brute Force, mostrando o grupo se afundando de vez no noise rock e pós-punk, com ecos de Killing Joke na faixa-título. A bolachinha ainda conta com um cover de “White Cross”(aqui “White Kross”), clássico do Sonic Youth, banda que sempre teve grande influência no trabalho do Napalm, trazendo um indicativo, sim, de um pouco de cada experimento sonoro que estaria por vir – temos na track um grupo mais ambicioso do que nunca.
Depois do maior gap entre discos de sua carreira, em julho deste ano, os rumores se tornam notícia oficial: o Napalm Death lançaria, em 18 de setembro, Throes of Joy in the Jaws of Defeatism, seu décimo sexto álbum, e já anunciava o peso do projeto com mais uma forte capa de Frode Sundbø Sylthe, o mesmo de Apex. Na imagem, a paz mundial, representada na figura de uma pomba violentada duramente pelas mãos esterilizadas de um ser humano. No meio de toda dor, conseguimos ver, forjado em sangue, o símbolo da igualdade. Apesar do tempo longe, o Napalm estava vivo, consciente, e ainda queria que enxergássemos uma luz no fim do túnel. A arte definitiva para um ano como este.
O conceito que daria origem à Throes of Joy veio do animus do inquieto vocalista e letrista, Barney Greenway, um dos artistas que mais me inspiram como ser humano, em fazer a diferença mais uma vez através da música. Barney passou esses últimos 5 anos muito impactado com as experiências que teve em tours pela Europa no que tange ao tratamento que as minorias AINDA tem recebido por lá (e no resto do mundo).
O vocalista relata que os governantes ainda tem se apoiado em discriminação e desumanização para se conectar com seus eleitores, transformando membros da comunidade LGBTQI+ e imigrantes, por exemplo, em alvos ainda mais fáceis, afim de fortalecer suas táticas e estratégias de propaganda política. A coerência e contundência do seu discurso sempre foi a principal preocupação do grupo, e o Napalm realmente traz um disco forte sobre olhar para o próximo, passando por todos os capítulos tristes da nossa recente história, mas sem nunca abandonar a sua mensagem de esperança, que segue como chama que norteia seu trabalho desde os primórdios.
No campo sonoro e estético, a banda apresenta o novo álbum quase que como uma parte 2 do Apex Predator. Mas se lá a música industrial e o experimentalismo apareciam como suporte para as tradicionais estruturas hardcore do tracklist, aqui a brincadeira ficaria bem mais séria.
Não é surpresa para ninguém que a condição do guitarrista Mitch Harris na banda está bem nebulosa. Desde 2014, que o integrante vem se afastando dos companheiros, sendo substituído nos shows por John Cooke, e optou por não participar do processo criativo do álbum. Apesar de seus vários projetos, tendo, inclusive um deles, o Brave The Cold, colocado na praça seu primeiro clipe no dia do lançamento de Throes, Harris topou gravar suas guitarras para o Napalm. Com isso, a bolacha acabou soando ainda mais diversificada, contando também com Cooke, e o baixista Shane Embury, como demais guitarristas, cada um deixando seu estilo próprio aqui e ali.
E por falar em Embury, que eu já tinha até passagens aéreas compradas para ver, ao lado do seu supergrupo Lock Up, no Abril Pro Rock esse ano (e que claro, acabou sendo cancelado), o homem que se firmou como o arquiteto definitivo da música extrema, e é o responsável por garantir uma assinatura à tantas mudanças sonoras bruscas do grupo nesses quase 30 anos, está presente em cada canto do disco. Seu baixo ronca altíssimo, e ele se aventura em tantas facetas no estúdio, que só nos faz confirmar que ninguém balanceia melhor luz e sombra quando o tema é peso. Completam o grupo, Danny Herrera, baterista, e o já citado Barney Greenway, que jamais soaram tão ricos e diversificados.
Throes of Joy In The Jaws of Defeatism abre com um ataque fulminante de Herrera nos blastbeats em “Fuck The Factoid”, apresentando o Napalm Death perfurando sua cabeça pelo meio dos olhos. A letra sobre o impacto da manipulação dos fatos em nosso mundo atual vem acompanhada de um som monstruoso, desgovernado, e já revela que a produção, mesmo sendo do velho conhecido Russ Russell, se mostra diferente, mais cristalina, e com uma precisão cirúrgica na hora de apontar cada nuance dos instrumentos. Nada mais do que o tradicional grindcore da banda, mas, agora, com tons intrincados e muita melodia. Uma das melhores aberturas de disco dos últimos tempos, e um dos mais incríveis esforços do trabalho. Atenção para os vocais, repare principalmente em coros quase operísticos que Greenway utiliza ao fundo. É de cair o queixo!
O que vemos nas próximas faixas é um desfile de death/grind brutal, mas com muito groove e timbres modernos, mostrando que o Napalm consegue soar tão fresco quanto tantos grupos que já beberam na sua fonte, como por exemplo, o Converge e o Pig Destroyer. “That Curse of Being in Thrall” traz riffs e mudanças de andamento alucinantes, e “Contagion”, revelando as dores que vem da impotência perante à nossa massacrante hierarquia social, tem uma construção que mistura os ecos industriais de Apex com riffs e refrão memoráveis, mostrando que a banda ainda reina em balancear muito bem a agressividade com um lado mais cativante. Esta tem total potencial para single, e deve ganhar ainda mais força nos shows.
Se essa sequência de músicas te colocou para girar pela sala “bangeando” como se não houvesse amanhã, está na hora de sentar e colocar seus melhores fones porque vai começar uma verdadeira aula de composição. “Joie de Ne Pas Vivre” é a responsável por abrir o verdadeiro momento em que o disco apresenta suas maiores aspirações, e traz uma ambiência e influência misteriosas vindas do blackened punk (principalmente nos vocais) que chega a arrepiar.
O tema francês mostra o Napalm guiado apenas por baixo e bateria, fazendo um som totalmente avant-garde, mas ainda assim deixando tudo com um frescor natural, como se estivessem super confortáveis com essa nova abordagem. Consigo até imaginar um álbum inteiro explorando tal faceta. Neste momento do disco, tem tanta coisa acontecendo em estúdio que temos a impressão de que quanto mais ouvirmos, mais descobriremos esses detalhes. E é isso mesmo.
Esse novo universo continua em “Invigorating Clutch“, com o Napalm cadenciado, atmosférico, explorando o post-metal de riffs dissonantes em um clima denso, tenso e soturno com alguns dos vocais mais impressionantes do projeto, enquanto “Zero Gravitas Chamber” fica encarregada de nos lembrar que aquele espírito grind/dbeat do início de carreira ainda está presente de uma forma bem orgânica. Essa passa o bastão do peso para “Fluxing The Muscle” mostrar um texto anti-violência e desumanização, envolto em uma estrutura fortemente influenciada pelo bruto hardcore nova-iorquino, mostrando que o grupo se preocupou em balancear muito bem os diferentes ares do tracklist, deixando tudo fluir com muita tranquilidade, nos dando calma para absorver cada pormenor.
A faixa-título, com sua intro impressionante cheia de gritos desesperados e primais, e “Acting in Gouged Faith” vem nos convidar para a reta final do álbum com um Napalm Death contundente e furioso. Nelas, um Barney colocando toda a sua revolta em vocais totalmente caóticos, misturando as estruturas clássicas com o groove forte herdado dos anos 90. Dessa forma, trazem de volta o tom arrebatador do início do disco, mostrando que a bomba está mesmo prestes a explodir. Ambas soariam absurdas ao vivo
O grupo, além do trabalho minucioso na organização da ordem das músicas, também se preocupou em escolher muito bem os títulos que representariam a bolacha, e com eles, conseguem realmente ilustrar os 3 pontos chave do projeto. Pouco tempo depois da confirmação de que uma nova era chegava, já tínhamos em todas as plataformas digitais, “Backlash Just Because”, primeiro single, e que já desconstruiria a ideia que já fora criada pelas texturas apresentadas no EP de fevereiro. A canção é uma pura bomba sonora que remonta o som clássico que muitos tem como referência quando seu nome vem à mente. Grata surpresa.
“Backlash” é uma verdadeira força da natureza, e traz ecos dos grooves do metal alternativo do Fear, Emptiness and Despair e do Diatribes, que acabaram se revelando um traço comum das músicas mais brutais do disco. Ela retrata toda essa tática política de criação de alvos de discriminação e instauração do clima de medo, desespero e paranoia que tem sido tão forte nesse momento de apogeu de governantes altamente influenciados por regimes totalitários.
Os reis do underground já tiveram seus momentos de popstars, como por exemplo, com o lendário vídeo do Jim Carrey (lembrando que a participação, que acabou sendo do Cannibal Corpse, em Ace Ventura seria deles, mas não toparam), na ocasião em que figuraram a trilha do filme Mortal Kombat com “Twist the Knife (Slowly)”, e até quando foram convidados para abrir uma perna da tour de despedida do todo poderoso Slayer. Aqui, no entanto, o pop toma uma proporção musical com o segundo single “Amoral”.
Adoro quando um artista tem o poder de escrever hits com verdadeiro potencial radiofônico e ainda manter sua integridade e um elemento de perigo, como fizeram tão bem grupos como o Joy Division e o Depeche Mode, e se eu não estivesse resenhando um disco do Napalm Death, diria que estávamos diante da canção pop perfeita do ano. É basicamente o que temos aqui, um tema dançante(!), de refrão poderoso, com riffs emprestados do pós-punk/industrial do Killing joke, traços fortes do noise rock do Sonic Youth(“White Kross” ainda entrou no disco como faixa bônus) e uma atmosfera dreampop do My Bloody Valentine.
Tudo isso com um ar bem oitentista ou de algo advindo do krautrock, mistura que também se apresenta forte em várias passagens do trabalho, presenteando o som seco do grupo com melodia no ponto certo. Conseguiria ouvir facilmente “Amoral” tocando na MTV ou nas rádios rock, se fosse lançada no fim dos anos 90/início dos 2000.
O último single foi justamente a faixa que encerra o trabalho, e o faz de forma magistral. Cheia de camadas, “A Bellyful of Salt and Spleen”, que traz a maior carga emocional já vista em um trabalho recente do Napalm, ganhando, inclusive, um clipe igualmente surreal, bebe no Swans, Godflesh e até em algo de Ian Curtis. Aqui, na única colaboração de Mitch Harris, Shane Embury se desdobra em mil para criar um verdadeiro épico cheio de vozes, tambores, latas, máquinas, equipamentos descartados de fábricas e tudo mais que encontrara pela frente, ativando uma verdadeira sinfonia do apocalipse, afim de trazer alguma dignidade para os tristes relatos dos refugiados para suas sagas ao redor do mundo.
Refugiados estes, que enquanto buscam o sonho de uma nova vida em novas terras, acabam perdendo mais partes de suas famílias, posses e essência no processo. O clipe é literal e ainda revela o grotesco descaso da sociedade e dos governantes com tamanha mancha no que tange a nossa capacidade de benevolência para com lastimável situação.
O cenário é pintado com maestria e o Napalm ultrapassa todos os limites do que estabelecemos pra eles, abusando do avant-garde, do industrial, e se conectando mais do que nunca com o experimentalismo que por diversas vezes fora apenas esboçado, abrindo aqui as portas para um novo capítulo de sua história, e entregando uma obra quase que cinematográfica. Colossal.
Do ponto de vista sonoro, em um ano em que os grandes lançamentos buscam reafirmar o som das bandas, como acontece em Lamb of God – autointitulado, Black Dahlia Murder – Verminous, e Suicide Silence – Become The Hunter, por exemplo (esses 3 fazendo isso com MUITO vigor – super indico), aqui temos a desconstrução total do gigante britânico do death/grind. O grupo fez de novo, conseguiu fazer jus ao seu legado iniciado brilhantemente em Scum, se mantém à frente do seu tempo, e Throes of Joy vence como um dos discos mais desafiadores aos ouvidos mais conservadores da música pesada nos últimos tempos (ao lado de propostas como as do Code Orange – Underneath e Sepultura – Quadra). E já é um dos meus preferidos do ano.
Um disco sobre empatia, sobre olhar para o lado, uma busca por um mundo mais igual. O grupo continua sendo a banda pacifista, apaixonada, que nos faz tão bem, que aquece nossos corações, e prova que conserva sua positividade intacta mesmo em um momento tão delicado como este. Se você precisa renovar suas energias, aqui temos uma carta coerente e calorosa a todos que buscam voltar a ter esperanças.
Ainda é sobre música intensa, extrema, abrasiva, mas eles, acima de tudo, só querem que possamos sentir que esse é apenas o velho Napalm Death te dando um abraço bem forte e dizendo: estamos aqui, e vamos passar por isso juntos. Sublime.
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Menor Threta