Dimensões da Música Preta Baiana foram essenciais para a consolidação da “Axé music” com uma profusão de expressões que surgiram na Bahia!
“Olhos negros cruéis, tentadores
Das multidões sem cantor
Olhos negros cruéis, tentadores
Das multidões sem cantor”
A música preta baiana é uma das mais ricas do mundo, estando no mesmo patamar da música cubana, da música afro-norte-americana e de outras partes da diáspora negra pelas Américas, sendo responsavél por moldar o que seria a música popular no século 20. Desta forma, este texto é o começo de uma série de artigos que visa analisar e relembrar a década mais importante fonograficamente para a música preta baiana.
Década mais importante, porém também o prelúdio de um período no qual o brilhantismo das inovações, o frescor das criações oriundas dos bairros periférios e negros da cidade de Salvador, em breve seriam extrativisados por uma indústria musical supremacista branca, que não possui visões de mercado a longo prazo. De modo que, o período que vai do final dos anos 70 até o começo dos anos 90 se constituem em um combate entre a potência criativa negra e o poder branco sobre a música preta baiana.
A década de oitenta é um período histórico fundamental para a compreensão da herança cultural e dos desenvolvimentos musicais, rítmicos que eclodiram na música baiana. A incorporação de estéticas sonoras da diáspora negra como o jazz, o reggae e a música caribenha no próprio seio de aperfeiçoamento musical baiano, estão marcadamente presentes durante toda essa década.
Durante os anos 60 e 70 do século XX dentro do cenário onde a música preta baiana precisava recorrer ao eixo rio-são paulo para alcançar sucesso comercial, surgiam em refluxo diversos artistas e expressões musicais baianas que se mantinham nas festas tradicionais da cidade de Salvador. Desde a fubica de Dodô & Osmar, passando pelo desenvolvimento da guitarra baiana, a criação do trio elétrico com o Trio Tapajós, paulatinamente ao longo do final da década de 1960 e durante toda a década de 1970, nomes como Moraes Moreira foram incorporando ritmos e voz à música feita no carnaval.
A música do carnaval baiano que se desenvolvia aqui desde os anos 1950 com a criação do Frevo elétrico, se beneficiou da Tropicália de Caetano Veloso e Gilberto Gil e de grupos como os Novos Baianos, que ao se juntarem às manifestações carnavalescas ajudaram a incorporar o canto nos trios, mudando inclusive a aparelhagem sonora dos trios elétricos. É um procedimento de propor modificações técnicas e ao mesmo tempo aproveitar e expandir o que já existia em termos de formatos musicais.
A revolução cultural promovida pelos blocos afro de meados dos anos 1970 até a década seguinte começava a ser incorporada à bandas e músicos negros, que misturavam o nascente samba reggae do Olodum com o pop rock, com música caribenha, com forró, com o soul e o funk americanos e com o reggae. Juntamente com o fenômeno dos Sambas Juninos, responsáveis por formar centenas de percussionistas que na década seguinte iriam formar a Timbalada por exemplo, como também tocar em outras bandas da “axé music”.
Ao mesmo tempo no começo dos anos 1980, Jota Morbeck junto a uma excelente banda no Trio Elétrico Novos Bárbaros vai se firmando como o melhor puxador de Trio Elétricos da história na opinião de muitos. Luiz Caldas um artista fundamental para a história da música preta baiana e brasileira, junto ao Acordes Verdes, talvez o primeiro supergrupo da música baiana, composto por grandes instrumentistas, entre eles Carlinhos Brown e Tony Mola, lança o disco Magia (1985) e é o primeiro a alcançar sucesso nacional.
Outros artistas como Marcionílio, já na metade da década de 1980, lança dois discos incorporando os ritmos locais à uma pegada afro pop muito bem construída. A banda Reflexu’s lança seus discos e começa, sob o comando de uma cantora negra de voz potente a seguir e ampliar o então rol de artistas locais que alcançam fama nacional e começam a vender milhões de discos. Estamos aqui na metade dos anos 1980, e outro nome fundamental é o de Gerônimo, que já nos seus primeiros discos, forja diversos sucessos e mescla a cultura afro-caribenha a signos e ritmos afro baianos, com uma pegada pop deliciosa.
Ao mesmo tempo, o Chiclete com Banana ainda na época de Missinho, então vocalista chave do grupo, traz a mescla do rock com galopes e frevos, fazendo grande sucesso local e, depois da saída de Missinho, nacional. Todo esse movimento capitaneado pelo surgimento do Estúdio WR, então o primeiro estúdio profissional da cidade de Salvador e que se tornaria a Meca do que se convencionou chamar de Axé Music, além de selo/gravadora por onde passou quase tudo feito na cidade durante os anos 1980 e metade dos 1990.
A riqueza cultural e musical oriunda dos terreiros de candomblé e dos sambas de roda do recôncavo, as bandas de percussão dos blocos afro, o desenvolvimento do samba reggae e do samba junino, foram ao longo da década de 1980 sendo incorporados às cozinhas das bandas de carnaval, que utilizavam majoritariamente o frevo e o galope como ritmos predominantes. Os Afoxés, os blocos de Samba, os Blocos de Índios, que ajudavam a compor a riqueza carnavalesca de Salvador, foram sendo ao passar dos anos suprimidos.
Sobre a noção de gênero músical dentro da indústria da Axé Music nos diz o maestro Letieres Leite:
“Não existe. Posso afirmar categoricamente. Qualquer ritmo que você cite, na axé music, tem origem numa linha ancestral. Se você fizer uma música cujo toque seja o ijexá, ela estará ligada ao candomblé, assim como o samba reggae tem sua história. Todos esse ritmos foram postos no mesmo cesto e passaram a ser denominados axé. Não é possível dizer “vou ali tocar um axé”. O galope e o frevo tem origem em Pernambuco e por aí vai. Se você pega a música de Luiz Caldas ou do Chiclete, os ritmos já existiam, são matrizes, DNA. A Rumpillezz trabalha as mesmas matrizes, é um patrimônio da diáspora negra que gerou a música das Américas, não só a da Bahia. Quando ouço alguém falar no novo ritmo do verão, sinto calafrios.”
Ao olharmos hoje com atenção e apuro para as produções fonográficas do começo dos anos 1980, e para o que foi feito ao longo de toda essa década na música baiana veremos uma riqueza muito ímpar. O que de mais puro e inovador das manifestações culturais do samba de “roda” e do samba “duro” (Samba Junino), das rítmicas dos blocos Afro e de sua poesia contestatória, dos afoxés a exemplo do trabalho de mestre Môa do Katendê, das influências afro caribenhas do merengue e da salsa, neste momento dialogam com o já firmado galope na música dos trios e com o soul e funk norte americano, com o reggae jamaicano e com toda a música pop mundial da época propiciando assim um caldo musical e culturalmente muito rico.
A rua, os bairros negros eram celeiros de compositores e músicos do quilate de um Guigio, de um Ythamar Tropicalia, de um Rey Zulu ou mesmo de um nome fundamental como Paulinho Camafeu, entre diversos outros. Majoritariamente negras, essas expressões junto ao carnaval já tinham estraçalhado de vez com as tradições do carnaval de bailes da classe média alta nos famosos clubes sociais da cidade. Pois, esvaziaram tais espaços de qualquer relevância cultural e ou social.
A diversidade sonora e musical, a amplitude da música preta baiana na década de 1980, via também um cenário onde a música instrumental crescia com discos atualmente considerados clássicos como o álbum do Sexteto do Beco, o do Raposa Velha, Perinho Santana, o pouco conhecido disco do percussionista, cantor e compositor Sérgio Otanazetra, da cantora Andréa Daltro e também o Grupo Garagem. Ora, vivia-se em uma cidade efervescente e múltipla em expressões musicais, porém na década seguinte jogaram sal no terreno musical que não fosse abençoado pela Axé music.
Por outro lado, nas periferias da cidade de Salvador, não eram apenas os ritmos afro locais e a música que se chamaria de “Axé music” o que rolava, também emergia através de jovens negros bandas de metal e punk rock hardcore. Ao contrário do que foi propagado por muito tempo, o cenário de metal e punk rock hardcore, possuía forte presença negra e grupos como Krânio Metalico, Não, Proliferação, 4 Elementos e Dever de Classe por exemplo, que eram compostas por integrantes negros.
Como se pode facilmente observar, a década de 1980 apontava múltiplas direções musicais e culturais em Salvador. Ora, vivia-se em uma cidade efervescente e múltipla em expressões musicais, porém na década seguinte, jogaram sal no terreno musical que não fosse abençoado pela “Axé music”.
Curiosamente ao se referir aos anos 1980, a música brasileira é geralmente reduzida ao rock nacional de grupos como Titãs, Legião Urbana, Paralamas do Sucesso etc… Quando por óbvio pela diversidade cultural brasileira e pelas nossas dimensões continentais, essa ideia é fruto de uma ignorância racista produzida pela mídia especializada em música daquele período. Sem sombra de dúvidas, o que se desenvolveu na Bahia durante toda a década de 80 é culturalmente muito mais rico e influente para tudo o que ocorre até hoje em nossa música nacional, do que as bandas que eram reverenciadas no eixo através das publicações do jornalismo musical.
Publicações como a Bizz por exemplo, não estavam atentos à força da cultura do funk carioca, do rap em São Paulo nos anos 1980, imagine-se com todo o xenofobismo racista que estes carregam, iriam se interessar por um mercado local negro, com ritmos e linguagens poéticas que se distanciam e muito do que eles consideravam cool. Estes preferiram optar pela lógica fácil de denunciar a indústria cultural como a Máfia do Dendê – por exemplo – o que certamente é risível. Longe de querer negar a existência de tal máfia, vale ressaltar que a mesma vai se formando aos poucos, através de práticas que começam com a criação das empresas dos blocos de carnaval, como tentamos mostrar aqui!
“Meu amor, quem ficou nessa dança
Meu amor, tem fé na dança
Nossa dor, meu amor, é que balança nossa dor
O chão da praça”
O Carnaval de rua então, passa pela transformação da criação dos Blocos de Carnaval antes formados de modo comunitário negro e ou através da associação de trabalhadores como o Afoxé Filhos de Gandy. O que começa como uma aventura “ingênua” da classe média branca baiana, progressivamente passa a “ressignificar” o supremacismo branco tão peculiar das “elites” baianas na formação de uma indústria cultural extrativista dentro da cultura baiana ao ponto de fazer a fonte da música preta baiana secar para eles.
Quando os mauricinhos e patricinhas baianos se sentem impossibilitados de conviver com o turbilhão do povo negro nas ruas, eles simplesmente constroem espaços nômades de colonização/privatização do espaço público. Os playboy and girls dos cursinhos pré-vestibulares tem a idéia de – “inconscientemente?” – levarem os bailes dos clubes para as ruas. Algo muito explícito em uma fala do diretor do Camaleão Joaquim Nery: “”Quem sai no Camaleão é amigo de um amigo seu – pelo menos”. Só esquecendo de avisar que esse amigo teria que ser branco assim como o amigo do seu amigo e morar em bairros nobres da cidade e possuir muito poder aquisitivo.
É essa a lógica que de certo modo vai governar o que poderia ter sido uma indústria cultural realmente importante para a música baiana, mas que ao invés disso, preferiu a exclusão e o loteamento dos espaços públicos da festa, de comunicação e encontro da sociedade baiana, promovendo daí por diante um progressivo apartheid. O problema da Axé Music então nascente, não foi ter criado uma indústria cultural na Bahia, mas antes o de ter escolhido não o modelo fordista de produção em massa de produtos, mais sim optado pelo velho molde extrativista, predatório e em certa medida escravocrata.
Esse percurso da Axé music que vai do final dos anos 1970 até o começo dos anos 1990, quando de fato se torna completamente hegemônico e imbatível para a música preta, foi uma tragédia para a música baiana. Afundando, através da falta de perspectiva, qualquer possibilidade de diálogo com a cultura negra que lhe deu “régua e compasso”, em favor de um embranquecimento seletivo das estrelas do Axé. Dito de modo simpático e se tornando inofensivo, a relação dos blocos de carnaval com seus potentes trios elétricos e os Blocos Afro, já demonstrava o combate vencido antecipadamente pelos brancos.
A fabulosa crítica bem humorada das tensões da música preta do grande Gerônimo na faixa “Eu Sou Negão” lançada no compacto em 1987, já denunciava o que era a disputa de espaço pelas ruas e pelas mentes de Salvador e do Brasil. Um pequeno trio de Bloco Afro encontra o poder supremacista branco no carnaval em um grande trio elétrico e o resultado óbvio pode ser visto até hoje. Estamos em 2023 e artistas negros que construíram as bases artísticas do que foi chamado orgulhosamente de Axé Music seguem sendo excluídos do protagonismo que lhes é proprio, antes e hoje.
Batizado de modo preconceituoso pelo jornalista Hagamenon Brito em 1985, então um crítico musical colonizado e “roqueiro”, a noção de que o termo Axé seria um xingamento é bastante relevante para o entendimento da história toda. Se por sua vez o padrinho como muitos jovens baianos viam em tudo que era feito pelos pretos da cidade como uma coisa de “brau” (Brown), o que significa coisa de gente baixa, inferior, inapta, a própria indústria do Axé, assumiu essa responsabilidade.
Não é por coincidência – talvez seja, mas serve aqui muito bem – que o cantor bolsonarista Netinho, então na Banda do bloco Beijo, tenha lançado o disco Axé Music: Aconteceu, em 1992, década que solidifica de vez a usina da Axé Music. A sucção constante transformando a nossa dor em entretenimento, através dos olhos negros cruéis e tentadores que geraram a Axé music às custas da vitalidade e das possibilidades para a música preta baiana morreu mas continua viva.
Pois a música preta baiana e a música preta mundial é sempre a complexidade que tenta ser diluída pela branquitude.
Continua. Se você quer ler a segunda parte desta série de artigos, clique aqui!
Revisão por Irênio Neto
-Um retrato da amplitude da Música Preta Baiana nos anos 80, antes da Axé Music – Artigo
Por Danilo Cruz
https://www.youtube.com/watch?v=2LS0lAosoxw