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Um retrato da amplitude da Música Preta Baiana nos anos 80 (Segunda Parte)

A história contada pelos vencedores, tem apagado progressivamente vários registros históricos fundamentais para a Música Preta Baiana

Em 1988, o Brasil vivia sob o signo das comemorações dos 100 anos da abolição da escravatura, mesmo que saibamos muito bem que a escravidão continuou através de outros meios de opressão do povo negro em nosso pais. A música preta baiana registra, neste mesmo ano, uma efusão imensa de produções fonográficas marcantes mas que aos poucos foram sendo apagadas da nossa memória coletiva. Pois as estruturas construídas sob a base do colonialismo escravocrata permanecem como determinantes sociais, legais, econômicas, políticas e culturais em nossa sociedade.

A apropriação cultural promovida pela indústria da Axé Music é particularmente perversa quando nos damos conta de que ela operou dentro da cidade mais negra fora do continente Africano. Relegando ao ostracismo e a invisibilidade os próprios mestres e mestras criadores da arte sob a qual eles – a branquitude baiana – ergueram seus impérios. E por consequência, apagando progressivamente da memória coletiva grandes obras e discos importantes da história da música preta baiana. 

O ano de 1988 é especialmente forte quando se trata de grandes lançamentos que representam o que era a amplitude e a diversidade sonora, assim como a força poética e musical produzida por artistas negros então na Bahia. Nesta segunda parte da série de artigos sobre a amplitude da música preta baiana nos anos 80, vamos trazer discos fundamentais para nossa história que agora em 2023 completam 35 anos de lançados. São estreias, são registros únicos em alguns casos, mas sobretudo documentos históricos, de essencial importância para nossa história cultural.

O final da década de 80 do século XX segue a mesma efervescência de transformações estéticas e de absorção de tendências vindas de fora, como resaltamos no primeiro artigo desta série. Porém, aqui, a partir de 87 para sermos mais exatos começa-se a delinear formas mais bem resolvidas esteticamente e que passam a ser absorvidas por muitos em seus discos. 

Depois de 3 décadas e meia destes lançamentos é curioso notar como pouco mudou em termos culturais e políticos em Salvador, com a indústria cultural e com a elite política ainda nas mãos da branquitude local. De lá pra cá, nunca elegemos um prefeito negro em Salvador, aprendemos que vitórias nacionais em qualquer area que seja não garantem em si mesmas soluções de continuidade e mesmo com 4 mandatos consecutivos de um projeto de “esquerda” em nosso estado alcançamos a posição de termos a polícia que mais mata negros no Brasil. 

O pseudo legado da profissionalização da Axé Music na música baiana não é passível de ser visto na capital ou mesmo sentido na música baiana. Óbvio, se entendermos música baiana em seu sentido amplo e não apenas nas estrelas da Axé Music que ainda respiram por aparelhos. Pelo contrário, o que a Axé music legou à cidade de Salvador, foi uma política cultural mercantilista ligada às instituições de Turismo e às grandes gravadoras. O sentido de competição intrínseco ao capitalismo, e logo à indústria cultural, esse sim permanece firme e forte. 

Durante a ascenção da indústria da Axé music a institucionalização do Jabá, as práticas predatórias de por exemplo, pagar para uma artista não tocar porque esta saiu da banda após 13 anos de carreira na mesma, deram boa parte da tônica de suas práticas. Como o histórico caso de Márcia Freire com o Cheiro de Amor, como relatado no documentário Axé: Canto do Povo de um Lugar (2016), pelo jornalista Hagamenon Brito. Esse é um exemplo público e assumido, porém daria um excelente estudo de caso, perceber e analisar quantos grandes vocalistas após grandes sucessos em bandas, foram jogados ou caíram no ostracismo após a tentativa de carreira solo. Essa crueldade mercadológica é um traço bastante distintivo da música baiana pós hegemonia da Axé Music.

Se o boicote ocorria com artistas brancos, imagine-se o que não era e continua sendo feito contra artistas e grupos negros. Basta um rápido passar de olhos no panteão da Axé Music, para vermos o processo de embranquecimento o qual a indústria da Axé Music promoveu com branquinhas mais neguinhas da música baiana, com negras louras e todo tipo de aberração racista. Em um “claro” processo de apropriação cultural, dos mais nítidos que tivemos no nosso país nas últimas décadas. Algo ainda em embrião durante os anos 80, onde bandas hegemonicamente negras, cantoras e cantores estreavam e determinavam as direções musicais e culturais da música preta baiana. 

Daí, a importância de resgatarmos o que foi a produção musical na década de 80 para que possamos entender todo esse processo. Separamos aqui 5 discos que consideramos emblemáticos da música preta feita na Bahia no ano de comemoração dos 100 anos de abolição da escravatura, ao mesmo tempo em que o empresariado cultural e turístico de Salvador, começava a criar o laço que seria apertado nas décadas seguintes. 

Samba Fama – O Swingue (1988) 

A tradição dos sambas juninos é uma tradição cultural e comunitária que ocorre exclusivamente em Salvador no período que vai do sábado de aleluia com queima do Judas e o domingo de páscoa até o São João. Oriundo dos terreiros de Candomblé e do samba de roda do Recôncavo, nos anos 70 e 80 muitas agremiações surgiram em diversos bairros de Salvador. 

Como escrevemos em outro artigo (leia aqui), o Samba Junino é fundamental para que possamos compreender a música preta baiana feita nos anos 80 e posteriormente influenciando o fenômeno da Timbalada. Infelizmente, apenas o Samba Fama registrou um disco solo, tendo acontecido um outro importante registro no ano seguinte em 1989, reunindo diversos grupos em uma coletânea no formato de LP. 

Poucas informações sobre a feitura do disco e do próprio Samba Fama podem ser encontradas na internet. O grupo é oriundo do Terreiro do Gantois, e pelo o que é cantado nas músicas parece ter sido fundado em 1978, sendo assim, o disco O Swingue (1988) comemora dez anos de agremiação. Tendo reunido uma série de grandes percussionistas em suas fileiras, como Cabo Del, Coelho e o maestro Augusto Conceição entre vários outros, sabemos que foi o maestro quem fez a direção musical do disco, porém não creditado pela sua pouca idade, como relatado pelo próprio em podcast

O repertório apresenta composições dos autores: Augusto Conceição, Marquinhos Fama, Tinho Fama, Robson de Jesus, Robson Fama, Willys, Rael, Buddy Fama, Duda, Gamo, Nadia e Lola, a essas composições autorais se mesclam as de domínio popular, formando um repertório coeso e muito forte. Um registro fidedigno do que eram os Sambas Juninos em termos musicais em seu auge no meio da década de 80, onde reunia milhares de pessoas em diversos bairros e possuía festival durante o São João.

Banda Terceiro Mundo – Marley Vive (1988) 

Dentro da história do reggae nacional a Banda Terceiro Mundo ocupa um lugar especial como um dos pioneiros do gênero no Brasil. E infelizmente gravaram apenas um disco, esse excelente Marley Vive (1988). Com uma banda dominando a linguagem musical do reggae, o grupo ainda contava com o luxo de ter nada menos que três excelentes vocalistas.

O trio de vocalistas aqui é composto por Ythamar Tropicalia, Dado Brazzawille e Rabutta que também é o guitarrista. Completam a banda Hosttinho (teclados), Pike (baixo), Cícero (bateria), Waki e Índio (Percussão).

O Lado A do LP traz 5 músicas onde o tema é o orgulho da negritude e mensagens de positividade como na música dá nome ao disco “Marley Vive” composição de Rabutta e “Raça Negra”, da dupla Walmir Brito e Gibi, as duas cantadas por Rabutta. Músicas de convocação a luta, como em “Lutar é Preciso” (Caj Carlão) que foi um grande sucesso e “Resgate da Raça” composição e canto do Ythamar Tropicalia. E se encerra com a romântica e desde então um clássico “Cume da Memória” de Tonho Matéria em uma interpretação magistral de Dado Brazzawille.

Abrindo em alto nível o Lado B com a composição “Brilho de Beleza” de Nego Tenga, na voz de Ythamar e uma linha de baixo pesada de Raimundo Pike, música que está presente também no primeiro disco do Muzenza. As temáticas de orgulho negro seguem presentes como na faixa “Terceiro Mundo” composição de Walmir Brito que fala da força presente na Diáspora africana. Em “Canto Nagô”, Dado Brazzawille canta uma composição sua que vai muito ao encontro do que temos ressaltado aqui nessa série: o racismo presente em toda a diaspora que primeiro se assusta com a potência das expressões musicais negras, para depois se apropriar e ou lucrar muito em cima destas. A música tem as participações luxuosas dos saudosos, bluesman baiano Álvaro Assmar e do percussionista Tony Mola. 

A Banda Terceiro Mundo e o seu único disco Marley Vive, são fundamentais para se entender o reggae feito na Bahia e a amplitude da música preta baiana que temos chamado atenção.

https://www.youtube.com/watch?v=TBt2ghZUcRY

Fogo Baiano – Nada de Cor nas Peles (1988)

Banda formada por Josi Franzini (Voz), Ruy de Brito (Guitarras/Voz), Albertinho (Baixo), David Santiago (Teclados), Zé Carlos (Bateria), Geraldo Geiger (Percussão) e Tita e Angêla (Back Vocals), a Fogo Baiano é daquelas bandas sobre as quais não encontramos maiores informações além das presentes no disco. Neste trabalho de estreia os caras mesclavam diversas sonoridades, com arranjos muito bons, letras bem construídas, e um vocalista principal o Josi Franzini com um canto marcante.

A banda é muito afiada em tudo que se propõem executar aqui, passeando pelos ritmos presente no disco com desenvoltura e muita qualidade técnica. A mescla de ritmos e temáticas em suas letras produziu um disco de estreia que deveria ter sido muito mais conhecido, se compararmos com os trabalhos produzidos por outras bandas do mesmo período.

Mesclando galope, reggae, samba, lambada, merrengue, salsa, forró, com uma pegada pop e com composições muito bem escritas, a maior parte delas assinadas por Ruy de Brito com diversos parceiros, a Fogo Baiano gravou apenas uma música que não é autoral e uma versão, o sucesso “Nossa Vida” de Luiz Antônio Calmon (Lula do Cavaco) e uma versão da canção “Le Petit Chaperon Noir” que recebeu o título “Vem ver Zizi”.

O grupo Fogo Baiano ainda gravaria um segundo LP homônimo em 1990, dois anos após a sua estreia com esse Nada de Cor nas Peles. Localizamos dois singles e um disco ao vivo gravado no Clube Fantoches em 2018, a banda possui um perfil no instagram, mas não obtivemos respostas na tentativa de contato. Ouçam esse disco, pois em nossa opinião ele envelheceu muito bem. 

https://www.youtube.com/watch?v=K6PgzmbBjqA

Avatar – Lambadas Vol. 1 (1988) 

Nos anos 80, em Salvador pelo menos, era comum ouvirmos lambadas como trilhas sonoras nas festas familiares e comunitárias, algo que permanece até os dias atuais pelo menos nas comunidades periféricas. Criação paraense, fruto da mistura da guitarrada com o carimbó e sob a influência de ritmos latinos como a cúmbia e o merrengue, foi o ritmo eleito pelos baianos para os bate coxas fora do período junino.

Esse é um registro bastante raro e de certo modo já esquecido, a banda Avatar apesar de ter feito bastante sucesso na época em que esteve em atividade do final dos anos 80 até o início dos 90, gravou apenas dois discos, este Lambadas de 1988 e um Lambadas em 1990. Apesar de hoje em dia poucas pessoas lembrarem muito por conta desses discos não terem sido reeditados em cd, o álbum possui alguns grandes sucessos que aqueles que estão por volta ou já passaram dos 40 anos devem lembrar.

O disco abre os trabalhos com a versão do clássico imortal “Cuisse la” do grupo de Guadalupe, Les Aiglons, grupo esse que toca até os dias atuais em Salvador. Tanto esta versão quanto a maior parte das músicas desse disco trazem um dos nomes mais importantes da música preta baiana: Ademar Andrade que nesse mesmo período era o band leader de Ademar e Furta Cor. Infelizmente não sabemos a autoria da segunda e terceira faixa do disco, as que ficaram também conhecidas na época: “Truzulu da Marieta” e “Lambadeiro do Amor”, respectivamente. 

Divindo os vocais com Ademar, temos a voz chamegosa da cantora Meg Evans, que canta de modo irresistível a deliciosa “Mulé Fubanga”. O disco também registra uma versão do grupo franco-brasileiro Kaoma com a música “Dançando Lambada”, versão da original “Lambada” do grupo surgido depois que a dupla Jean Karakos e seu amigo Olivier Lorsac viram a febre da Lambada em Trancoso, Porto Seguro.  

https://www.youtube.com/watch?v=CzWQ33i-bjU

Muzenza do Reggae (1988)

Fundado no bairro da Liberdade no ano de 1981, o Bloco Afro Muzenza optou pelo Caribe e se colocou se diferenciando dentro da divisão “geopolítica” do samba-reggae baiano. Enquanto o Olodum e o Ilê Ayê viajam poeticamente à África e bebiam de sua história, dando início ao processo de reafricanização na Bahia. O Muzenza buscava na Jamaica e mas especificamente em Bob Marley a sua inspiração inicial.

O disco Muzenza do Reggae lançado em 1988 é o terceiro registro de Bloco Afro em Salvador e é daqueles discos que conseguem aliar a força da mensagem, das batidas com músicas que se tornaram hits indeléveis em nossa história. Trazendo composições de Tatau, Mundão, Nego Tenga, Tobi, Sacramento, Participação e Ythamar Tropicalia. Aqui temos dois exemplos muito interessantes dos diálogos que então se fazia entre as produções da música preta baiana. 

Um ano depois poderemos ver Tatau cantando no Samba Scorpios (Grupo de Samba Junino), na coletânea a que aludimos acima e após comandando o Araketu. Já Ythamar Tropicália é também todo um capítulo a parte na música baiana, excelente compositor e cantor é figura acima nessa lista na Banda Terceiro Mundo. Aliás, um das grandes faixas presentes neste disco e que abre os trabalhos: “Guerrilheiros da Jamaica”, composição sua com Roque Carvalho, é cantado por ele e faz parte do rol das músicas inesquecíveis deste disco.

O Muzenza que foi 1º lugar no Carnaval, traz neste disco uma das mais bonitas composições da história da música baiana, “Brilho e Beleza” composta e cantada por Participação, é mais do que uma simples canção, representando de modo veementemente bonito a força com que a música de Bob Marley e consequentemente o reggae conquistou corações e almas em nossa diáspora baiana. “Libertem Mandela” composição de Rey Zulu e Ythamar Tropicália, é outra das músicas lembradas até hoje, assim como a clássico “A Terra Tremeu”. O disco também conta com a participação de Barabadá na faixa “Mensageiro do Amor”.

Precisamos nos reapropriarmos da nossa história senão seguiremos sempre cativos, reféns daquilo que a branquitude nos faz consumir, naturalizando cada vez mais o embranquecimento das nossas expressões culturais. Todos os discos presentes nessa matéria podem ser escutados no youtube, basta pesquisar os nomes.

Se você não leu a primeira parte desta série, clique aqui

https://www.youtube.com/watch?v=l2vU1E9g4Ik

-Um retrato da amplitude da Música Preta Baiana nos anos 80 (Segunda Parte)

Por Danilo Cruz 

 

 

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