A cidade, em seu “desenvolvimento” urbano foi toda recortada por grades avenidas de vale. E para aqueles – negros e pobres – que não possuem rendas nem capitais, restou equilibrar-se nas encostas. Fazer ali sua morada para encontrar nestes períodos, a morte nos vales. Vales esses que passam o ano, asfixiando o trafego, matando a possibilidade de moradas minimamente planejadas. E que nos dias de fortes precipitações convertem-se em num longo e serpenteante Letes soteropolitano, onde corpos e frutos de trabalho serão condenados ao esquecimento arrastados pela enxurrada e soterrado pelo barro. Sem direito a Caronte ou moedas sobre os olhos (auxílio moradia?), sem a mínima condição de se re-moldar mais dignamente.
De qualquer sorte aqui e ali a vida segue buscando resistir e foi nessa intenção que a muito custo saí de casa no sábado dia 09 de maio rumo ao Pelourinho para assistir a dois dos maiores nomes atuais da música negra do Brasil. Bixiga 70 e O Quadro, iriam se apresentar na Praça Pedro Arcanjo. A chuva caia impiedosamente sobre a cidade e no busão já pude notar alguns jovens comentando sobre a série de shows que estariam rolando na mesma noite no Pelô, Versu2 e Mc Sant estariam tocando no mesmo dia na Praça Tereza Batista. É a “dor” de uma cena que só cresce em nossa cidade.
Cheguei a tempo de conferir ainda a primeira fase da Batalha de Mc`s e a apresentação do Mc Sant, nome que só cresce com excelentes trabalhos no cenário do rap nacional e que vez por outra, está por aqui em Salvador no agenciamento com a Versu2. Numa apresentação cheia de uma performance visceral, o mc carioca chocou a todos com uma presença de palco impactante e com as letras fortes que caracterizam sua poética e que eram conhecidas dos presentes. Chegando a hora da apresentação do Bixiga 70, tive que cortar o bebê ao meio e correr, quer dizer, dar três passos e atravessar até a praça em frente.
Na porta o público surgia pelas ruas que ligam o Pelô como um circuito eletrônico do melhor que a noite podia nos presentar em termos musicais. Esta foi a segunda apresentação dos paulistas do Bixiga em Salvador, e minha primeira experiência ao vivo com esses dez músicos de uma só vez no palco, apesar de acompanha-los em disco desde o primeiro lançamento em 2011.
Para quem não conhece a banda, basta dizer resumidamente: eles fazem o que de melhor se pode ouvir hoje no mundo em termos de afro-beat. Com rolês pela Europa e Estados Unidos, vem construindo um forte nome na gringa. A subida ao palco e o numero de integrantes da banda junto ao currículo já impõem respeito, mas é no expressar do som que se separa o joio do trigo e não tem intimidação certa, apenas convite, sedução. Certamente aqui na terra dos ritmos, eles se sentiram em casa, apresentando no seu set list as músicas de seu terceiro disco: III (2015) – que inclusive já resenhamos.
Já na segunda música fizeram-nos lembrar que certamente a culpa dos nossos sofrimentos não é da rainha dos raios, e sim da iniquidade dos que historicamente nos governa. Ventania foi tocada para sacudir corpos e consciências mais ligados no que tem de Axé na música do Bixiga 70, assim como para os leigos. O público respondia atento, de corpo e alma, cantando as melodias e refrões sem ligar pra chuva que caia.
Característica marcante nos shows deles, o que me foi confidenciado mais tarde, a ausência de vocal ou letra não é sentida, como poderia imaginar o senso comum. Parecem sempre uma banda de casa, aqui ou em Paris, pois o ritmo desconhece a língua e trabalha diretamente na linguagem. O que em se tratando de Salvador e da música do Bixiga 70 comunicam diretamente ás nossas raízes mais ancestrais. Desfilando um balanço pesquisado e cheio de uma virtuosidade não sentida, pois trabalham para a música.
https://soundcloud.com/bixiga70
Banda de ilhéus, cidade do Sul da Bahia, já deram rolês pela Europa levando seu som ao Reino Unido e aos festivais Shamballa, Bestival e Number 6. E logo mais estarão aterrissando na Dinamarca tocando no Festival Roskilde, ao lado de nomes como Kendrick Lamar, Pharrel Williams e Paul MCartney.
Em mais uma apresentação em terras nativas, eles provaram uma vez mais quanto punch possuem no palco, e como são difíceis de bater. Sim, as músicas adquirem um peso insuspeito no palco, e as letras de intrincadas rimas filosóficas, pungente conteúdo social e fortes posições politicas se encontram numa pegada mais rock, mais pra frente, cheia de peso. Insuspeito, me entendam bem, pois quem os conhece do disco de estréia lançado em 2012, deve convir que o acompanhamento instrumental lá está mais voltado para uma approach soul, funk, jazz, para a swingueira black, por cima da qual os Mc’s desfilam suas rimas.
Este deve ser o meu terceiro show desde que conheci a banda, dica de um colega de faculdade e profissão, colega de formação dos caras, lá em Ilhéus, o grande Gustavi. E é sempre bom notar como as músicas envelhecem bem, como possuem a virtude de se renovar sempre numa nova audição, da mesma forma que os arranjos vão recebendo pequenos retoques, improvisos que nos dão um sabor novo a cada show. Sucessos como Evolui, Sapoca, Seja Bem Vindo ao Meu Lar, crescem nos meus ouvidos a cada apresentação. O show ainda contou com participação de Dimak – que cantou com eles Tá Amarrado – Mobiu, Coscarque e do Mc Sant, que colaram o bebê de novo e fecharam a noite em grande estilo. Versu2, O Quadro, Mc Sant e Bixiga 70. Uma noite memorável! Apesar de tudo a música negra permanece.
Sim, voltei pra casa com a potência renovada, nova carga, mais disposto para enfrentar o terror da city, as novas notícias de desabamento, e outras misérias cotidianas. A música negra na diáspora sempre foi lugar de afirmação e de luta do povo negro, diante das tristezas amorosas, diante da opressão racial, econômica, social, nunca foi mero desregramento ou lugar para simplesmente esquecer as dores como infelizmente querem alguns. A produção de afetos alegres deve servir como elemento de resistência contra os poderes. Os caras honraram a missão. Valeu a pena ter saído debaixo de chuva, voltei lavado para casa….