Muddy Waters Electric Mud (1968) Revela a complicada história da aproximação do bluesman ao LSD e como o resultado foi musicalmente sublime!
As bebidas alcoólicas são parte importante da cultura do blues, pois que nos barracões, tendas improvisadas e botecos por entre as “plantations” onde os bluesmans e as divas do blues mandavam ver, eram os álcoois que ajudavam a esquentar a alma junto a música. Não são poucos os casos trágicos de alcoolismo no blues, e nem as músicas que exaltam esse combustível que ajudava e segue nos ajudando a curar dores, ou a comemorar alegrias.
Muddy Waters possui muitas canções onde o whisky é a bebida preferida para curtir ou sofrer, caso de um dos seus primeiros singles na Chess Records, Sittin’ Here and Drinkin'(Whiskey Blues), onde o mestre canta: “Whiskey you ain’t no good I declare I’m thru with you/ Whiskey you ain’t no good I declare I’m thru with you/You have taken all my money/You have taken my baby too” Perdeu dinheiro e mulher com o traste do whisky, e aí surge aquela velha e boa promessa de que vai “largar” a bebida.
Seja a cerveja, o whisky ou mesmo o vinho, são as bebidas alcoólicas que entorpeciam os corpos e mentes, criando relaxamento ou tensão, servindo para acompanhar ou mesmo causar, tristeza ou alegria. E obviamente isso se refletia nas produções musicais dos mestres do blues, pois estavam intimamente ligados ao ambiente e consequentemente ao aprendizado que os mesmos tiveram.
A relação entre música e drogas, arte e drogas é um tema bastante antigo, desde os pintores rupestres a arte esteve relacionada com a expansão dos sentidos e da consciência, geralmente através de meios artificiais. Com a música não é diferente, experiências diversas geram artes diversas, o que não quer dizer que a simples ingestão de alguma substância que alterem nossa percepção gerem artistas.
Sendo assim, a pergunta do título deste artigo se justifica, e se pretende responder sobre um contexto musical e cultural onde progressivamente o L.S.D foi utilizado como fonte de inspiração para produção musical. Sendo assim, porque Muddy Waters, experiente bluesman curtido no álcool, teve que provar L.S.D? E mais importante do que o porque, ou tão importante quanto, é no que essa experiência resultou musicalmente. Qual foi o resultado estético desse adentrar na cultura psicodélica? Para tanto, precisamos fazer um breve percurso a fim de remontar alguns importantes aspectos dessa história.
Os anos 60 deram a conhecer o ácido lisérgico (L.S.D.) e influenciou muito toda a produção artística da época, atraindo cineastas, escritores, pintores, mas sobretudo músicos. E a galera branca do rock eram sem dúvida os maiores consumidoras do LSD. O impacto disso na música é amplo e não se configura aqui em nosso objeto principal. O fato é que no final dos anos 60, a cultura do flower power era proeminentemente branca, e na música rock americana, era a atração mais consumida pela juventude que tinha vivido o Woodstock.
Vindo do Mississipi, o senhor McKinley Morganfield é certamente um dos maiores nomes no desenvolvimento do blues elétrico dos anos 50, juntamente com nomes como Howlin’ Wolf, BB King e John Lee Hooker entre outros. O senhor McKinley foi batizado ainda nas “plantations” onde trabalhava e fazia a diversão da galera com sua música, com nome artístico de Muddy Waters (Águas Barrentas). Apelido de infância, pois tinha o costume de se banhar em um rio quando criança, Deixando assim, o nome dos senhores “brancos” para trás e incorporando uma força da natureza do seu lugar de origem.
Ainda pelo fim dos anos 40, Muddy Waters, ainda McKinley Morganfield, foi contatado pelo pesquisador Alan Lomax, que naquela altura produzia uma série de gravações da música folk americana pelo sul dos Estados Unidos da América, sob encomenda para a biblioteca do congresso americano.
No filme Cadillac Records (2008) vemos essa cena com riqueza de detalhes, o Alan Lomax a gravar o Muddy Waters em sua varanda, após um dia de exaustivo trabalho. E ao conseguir se ouvir pela primeira vez numa gravação, o homem McKinley decide se tornar o Muddy Waters em tempo integral e ruma assim para a cidade grande, nesse caso, Chicago.
Foi na Chess Records onde Muddy Waters teve sua chance de se tornar um artista recebendo a ajuda do grande Leonard Chess, onde juntos desenvolveram parte fundamental da gramática do blues elétrico. Primeiro artista de sucesso, essa dupla construiu juntos a gravadora que viria a ser parte importante da história da música americana.
Em pouco tempo o Muddy viu sua carreira decolar, ali por volta do inicio, para o meio da década de 50, onde o Hoochie Coochie Man conseguiu seus cadilacs e andava sempre impecável em seus ternos, com o sucesso retumbante de seus singles e discos pela Chess Records. Já um pouco depois, pelo meio e final da década de 60, Muddy Waters já sofria com a queda vertiginosa na venda de discos.
Ora, vivia-se num país segregado ainda em diversos estados, e obviamente isso se refletia na industria cultural que teve bastante sucesso em embranquecer as paradas de sucesso e oportunizar shows, aparições em televisão etc para um cast embranquecido. Toda a máquina dessa industria sempre funcionou para valorizar seus astros brancos, e estamos falando aqui de um período onde a Motown, Stax, assim como a Chess eram a casa dos grandes artistas negros. No entanto, mesmo com uma enxurrada de artistas geniais, nas mais diversas expressões acima supracitadas, nomes como Muddy Waters e Howlin’ Wolf e outros, enfrentavam sérias dificuldades no fim dos anos 60.
E por incrível que possa parecer, os artistas negros perdiam espaço também para seus discípulos, que faziam em muitos casos versões ou músicas que em sua estrutura profunda, copiavam técnicas e tinham sido criadas e desenvolvidas por eles, e outros esquecidos e grandes do Blues.
A British Invasion, junto ao Blues Britânico no final de 67/69, com bandas super influenciadas pelos artistas negros americanos, como Cream, The Animals, John Mayall & The Bluesbrakers e americanos como The Doors, The Blues Project e Paul Butterfield Blues Band, The Allman Brothers Band e Janis Joplin se embebedavam com a música negra. Faziam mega shows, gravavam velhos sucessos, mas o mesmo reconhecimento não alcançava os verdadeiros criadores. Com a exceção de um breve brilho proveniente de alguns dos artistas ingleses que jogaram os holofotes na direção de alguns artistas do blues, os mesmos, estavam em geral colocados pra escanteio.
Obviamente, a história não é estática e houveram acréscimos e desenvolvimentos que ultrapassavam a linguagem artística e musical que o blues elétrico de Muddy desenvolveu e que tinha ajudado a criar o rock, pelas mãos de outros artistas negros. Dentro dessas expressões surgidas dentro dos anos 60, a música psicodélica é parte fundamental desse processo que escapava e geracionalmente ultrapassava ao trabalho de Muddy Waters.
Nesse aspecto e em todos os outros, Hendrix é sem sombra de dúvida o caso mais emblemático, se levarmos em conta esse contexto, racial e geracional. Não é impossível se pensar que, se não fosse o seu contato com um músico inglês, o baixista do The Animals, Chas Chandler, hoje poderíamos estar ainda descobrindo discos obscuros de um guitarrista genial. Como aconteceu e acontece com vários artistas ao longo dos anos, que possuem grande talento mas, que não receberam a devida atenção.
Seria mais justo dizer que Hendrix é um artista britânico, pois em seu país natal ele não recebeu as chances de se tornar aquilo que era, o maior guitarrista de todos os tempos, um dos maiores artistas da história da humanidade. Já tendo dominado a ilha da rainha com a mesma rapidez dos seus solos e desenvoltura de seus riffs, os E.U.A só o reconheceram quando ele literalmente botou fogo no palco do Monterey Pop Festival em 1967.
Todo esse processo foi sentido pela Chess Records e a gravadora que foi a casa de grandes nomes da música negra americana acabou sendo vendida em 1969, o fim de uma era chegava ao fim, e de algum modo o disco Electric Mud (1068) seria um marco final desse processo, deixando claro hoje que não se tratava nunca de acompanhar a evolução, o problema que levou a Chess a falência. É bom lembrar que nesse período, o rock era bastante plural musicalmente, contando já com diversos sub gêneros, e não seria exagero dizer que a psicodelia era uma linguagem de bastante sucesso. Infiltrada em diversos desses sub gêneros mas também no funk e no soul, não é exagero dizer que a psicodelia era então o espirito da época.
Nesse sentido foi o filho de Leonard Chess, Marshall Chess quem teve a ideia de fazer um disco psicodélico com o um dos grandes senhores do blues elétrico, de forma a aproximar o coroa do público jovem e aproveitar o hype que os discípulos dele estavam vivendo. Em 1968 o mundo conheceu Electric Mud um disco genial, mas que recebeu o mais puro rechaçamento de critica, público e dos próprios artistas.
Em 1967 Marshall Chess começa a produzir um grupo chamado Rotary Connection, através de uma subsidiaria da Chess, a Cadet Concept. Para tal feito, ele convida o supervisor musical e arranjador da Chess, Charles Stepney que produz arranjos maravilhosos que cairiam como uma luva para o som da banda. O Rotary Connection fazia um chamber pop psicodélico (música pop de câmara psicodélica), apostando muito nos doces vocais da Minnie Riperton, que já tinha sido artista da Chess.
Para as gravações, um elenco importantíssimo para a nossa história foi chamado, o baterista Morris Jennings e os guitarristas Phil Upchurch, Bobby Christian e Pete Cosey. De 1967 até 1971, o Rotary Connection lançou discos que se não fizeram sucesso para além do meio oeste americano, naquela altura, hoje podem ser devidamente apreciados e são considerados influentes.
Todo esse processo e personagens vão desembocar neste marcofinal da Chess e num dos melhores discos da carreira de Muddy Waters: Electric Mud (1968). Uma tentativa que pretendia – Marshall Chess pretendia – atualizar o blues elétrico do mestre com a linguagem psicodélica de modo a conquistar a juventude flower power. Como dito acima o disco foi odiados por critica, público e pelos artista, Muddy Waters renegou o álbum considerando-o: “dogs shit”.
No entanto, com o afastamento temporal e o passar dos anos, é possível perceber que não é bem assim. Apesar do disco se afastar de tudo, absolutamente tudo feito até então, é exatamente por esse motivo que Electric Mud (1968) se tornou sem sombra de dúvidas, um dos melhores discos do Águas Barretas.
Algo bastante comum a certa forma de critica musical é o apreço que alguns profissionais possuem por seus critérios de como deve ser a arte. E pra ficar em apenas um exemplo, o Led Zeppelin foi saudado como uma banda muito ruim em seus primeiros dois discos. Leiam essa excelente matéria que copila as merdas que alguns críticos da Rolling Stones (sim, ela mesma) falaram na época do lançamento.
No caso de Muddy Waters o disco psicodélico em sua carreira mexeu num vespeiro pior, pois o afastava de uma linguagem que dominava e o aproximava de formas musicais que naquela altura eram amplamente utilizadas dentro de uma estética completa que o mestre do blues não tinha, digamos, contato.
Além de existir até hoje uma visão de que o blues precisa ser idílico, rústico apenas, sem o verdadeiro entendimento dos processos pelos quais o mesmo passou e como esse desenvolvimento não restringe ou anula outras formas do blues. A eletrificação do som é algo inerente à música urbana, algo sem o qual ela perde a força de disputa e intersecção diante do caos urbano. O blues mesmo no campo, diga-se de passagem, sempre foi plural em suas manifestações, dialogando com bastante intimidade com o ambiente e o tempo ao redor. Basta uma verificada em estilos como o blues rural, o piano blues entre outros para notarmos que a diversidade e a adaptação é algo fundamental para esses três acordes que possibilitam o infinito.
Para o bem ou para o mal, a eletrificação das guitarras abriu todo um campo de experimentação que foi dominado e dixavado criativamente pelos negros americanos. Para só depois ser surrupiado. Ops! Ter influenciado os músicos britânicos e termos com isso o desenvolvimento do rock branco.
A banda recrutada por Marshall Chess para a gravação do disco psicodélico do Muddy é um verdadeiro espetáculo a parte, e dominava plenamente todos os processos acima mencionados. Ajudando-o a produzir no Electric Mud (1968), um trabalho finíssimo, fazendo com que o Muddy Waters transcendesse o blues completamente, levando-o para um lugar onde nunca mais ninguém ousou estar.
Esse é um disco que qualquer pessoa admiradora de rock e sons psicodélicos e mega groovados, vai ouvir e chapar. Na guitarra solo temos o Pete Cosey, na batera Morris Jennigs, no baixo Louis Satterfield, na guitarra base Phil UpChurch e Roland Faulkner, contando ainda com Gene Page no sax e Charles Stepney nos arranjos e piano.
Pode-se considerar sem tirar nem por, um super time de músicos, Louis Satterfield tocou com nomes como: BB King, Donny Hathaway e Earth & Wind and Fire. Phil UpChurch engatou uma carreira muito elogiada pela critica depois desses dois discos, apesar de pouco conhecido. O grande Pete Cosey foi o guitarrista de ninguém menos que Miles Davis, em excelentes discos, é dele a guitarra na gigantesca viagem jazz-funk: Agharta (1975).
O saxofonista Gene Page transitou nos mais diversos estilos, do rock, do soul, do blues e do jazz, tocou com gente do quilate de um Jack McDuff, Keef Hartley Band e Shuggie Otis. Finalizando essa ficha corrida de excelentes servições prestados a música, o batera Morris Jennigs tocou com gente da potência de Ramsey Lewis e Oscar Brown Jr., pra ficar com dois.
A Electric Mud Band, era uma banda da pesada e isso fica bastante evidente nas construções musicais que os caras operam com bastante ousadia em clássicos do próprio Mud, assim como em versões presentes no disco. Transitando num blues chapado, misturando andamentos funkeados, a Electric Mud Band conseguiu de fato, não modernizar o blues que já era moderno em sua essência, como queria Marshall Chess, e muito menos abrir um filão de mercado. Pelo contrário, Muddy Waters junto a essa banda, criou um hibrido irrepetível, singular e fruto de uma humildade artistica impressionante.
O Blues é devidamente psicodelizado e funkeado já na primeira faixa do disco, a clássica I Just Want To Make To Love You, onde o ouvinte já começa a perceber que não está em território seguro, conhecido. A tríade Cosey, Jennigs e Satterfield, mostra uma coesão absurda, com Cosey simplesmente nos hipnotizando, enquanto o grande Uppchurch segura a onda na guitarra base. I’m Your Hoochie Coochie Man segue mais ou menos o mesmo padrão da anterior, com a inserção do excelente Gene Page, ainda se restringindo a breves floreados iniciais. O trabalho de Pete Cosey em todo o disco é fundamental, pois é dele a função de estraçalhar sua guitarra produzindo solos absurdos, e improvisos geniais.
Muddy Waters era já na altura das gravações desse disco um veterano, e é perceptivel o quanto ele deixa o jogo correr solto, muitas vezes se esforçando para conseguir alcançar o que os jovens músicos o propõe. Basta ver a beleza e a força de “Let The Spend The Night“, cover dos influenciados Rolling Stones, presente no disco. Nessa faixa, é possível ouvir o Muddy bater palmas como para marcar o tempo na loucura proposta pelos caras, a qual ele vai colocando seu vozeirão a serviço. O resultado é sublime!
Talvez uma das mais loucas faixas desse discos, She’s Allright, é um outro exemplar maravilhoso do trabalho da Electric Mud Band e da força do grande Muddy Waters, Talvez um dos exemplares que mais comuniquem hoje com as novas gerações. Como diz o rapper Chuck D, que no documentário Godfathers & Sons (2003) da série The Blues produzida pelo Martin Scorcese, conta como foi esse disco que o fez querer conhecer o trabalho de Muddy.
O disco possui 8 faixas e nenhuma está abaixo da qualidade do grande mestre Muddy Waters pelo contrário, é um passeio onde um velho mestre da cultura encontra e se entrega – por exigências do produtor – a juventude negra que então dominava a tal da psicodelia.
Nesse encontro, podemos perceber com tranquilidade, pelo menos na exigência dele, como a industria cultural é muitas vezes perversa. Não me recordo de ter visto ou ouvido Frank Sinatra ter que gravar um disco de rock para alcançar a juventude, mas tal exigência foi feita ao grande Muddy. Exigência que ele simplesmente transformou em aula, que foi rechaçada, mas que hoje já começa a ser plenamente encarada como tal.
Escute-se com atenção as versões de Tom Cat (com a genialidade de Gene Page operando) e a estranha Herbert Harper’s Free Press News, para notar que estamos de um genuíno disco de inéditas, sejam as já conhecidas do repertorio sejam essas outras que são regravas com primor.
Poderíamos discorrer longamente aqui, sobre a delicia dos arranjos do Stepney, sobre a força com a qual Pete Cosey coloca a virtuosidade de sua guitarra a serviço da música que está tocando. A bateria ora marcial do Morris Jennings, ora super swingada, as linhas de baixo super funkeadas do grande Louis Sutterfield.
Demonstrar como a voz de trovão e a juventude que o grande Muddy Waters exala por todo o disco, ao longo das 8 faixas é infinitamente superior a diversos outros exemplares do famoso blues rock da época. Ou ainda, mostrar a inferioridade através de comparações, desse disco com a própria música psicodélica produzida então, e que foi devidamente incensada e apimentada para os ouvintes, pelos mesmos críticos que destruíram esse disco durante seu lançamento.
Mas, o melhor remédio é a escuta atenta e sobretudo sem pressupostos, apenas ouvir e perceber que esse disco é uma excelente amostra da força originária da música negra. O título do disco já deveria nos esclarecer que quando se eletrifica a lama, se tratando do velho Mississipi o resultado é sem dúvida alguma soberano. Não há noticias de que o velho Muddy tenha experimentado LSD para fazer seu disco psicodélico, nem os músicos. A música, a boa música vem sempre da vida do espirito e da carne curtida pela existência, o resto é placebo.