Poucos meses depois do lançamento do excelente Brutality do grupo Nova Era, eis que vem a luz Amor e Poder do Mc Morango NE uma das quatro cabeças do grupo. Não, ele não está saindo em carreira solo, a mixtape é simplesmente fruto do excesso de produção do rapper. Algo comum para quem vive num coletivo é em certos momentos não encontrar vazão para algumas de suas produções. E nesse momento, busca-se outros parceiros, escreve-se sobre outros temas para dar conta da miríade de sentimentos e sensações que um artista sente necessidade de comunicar. Em sua estreia solo fica claro, ou melhor, brilha como a luz do sol a qualidade e versatilidade do seu trabalho. O que Morango NE nos apresenta é o excesso de sua cabeça e de sua vivência, que aqui certamente não deve ser encarada como sobras, mas como aquilo que passa da medida, da taça que transborda.
Capaz de rimar com contundência e leveza, falando dos mais diversos assuntos: relacionamentos amorosos, família, visões de mundo, descrições sobre os problemas das favelas, autoconhecimento, sempre atacando com qualidade, fruto de uma consciência critica. São vinte músicas e se tivéssemos num país onde existissem de fato rádios comprometidas com a qualidade musical, pelo menos cinco músicas desse disco estariam estouradas. Isso porque o artista em questão tem uma qualidade pouco vista no meio do rap. O artista consegue produzir os famosos refrões chicletes, daqueles que grudam e não querem mais se soltar da nossa mente depois que ouvimos a primeira vez. Consegue compor músicas que sem perder a característica contestadora do rap de raiz, é capaz de agradar outros públicos. Utilizando-se de beats incomuns, rimando em geral num tom médio, selecionando composições impactantes e executando com clareza o flow, muitas vezes numa chave de interpretação que parece que o rapper está conversando com o ouvinte.
Já na primeira música essa percepção pode ser comprovada. Em Salvê (com participação N’Ativa Mauro VL) a palavra se repete tanto como refrão quanto como um cumprimento aos oprimidos e às várias quebradas da cidade de Salvador. Amor e Poder, música que sintetiza a intenção primordial, o conceito e a mensagem desta mixtape, possui também além da letra excelente, um refrão muito forte. “Amor pra se amar/ Poder pra se viver/ Poder pra se amar/Amor pra se viver/ Quero amor e poder” simplesmente certeiro. A busca pelo autoconhecimento – deste poeta admirador da filosofia – se faz presente de modo contundente em Sentimento Sincero, esta também possuidora de um refrão pegajoso, numa pegada r&b.
Na sequência outra de temática parecida e com as mesmas qualidades pop apontadas acima, Malandro Bandido Inteligente: “Enquanto eles pensam/eu sigo calmamente/ e raciocino ligeiro e consciente/quem não conhece me acha diferente/ já é/ malandro bandido inteligente”. E pra fechar e comprovar, essa micro seleção de possíveis hits radiofônicos, a minha preferida: Nem Tudo É O Que Parece Ser foca na necessidade de estarmos atentos às aparências que enganam nossa percepção da realidade e que nos faz ficar atento para as máscaras, vem com um beat cabuloso e dançante (que os Djs estejam ligeiros) e certo tom de ironia, nos exemplos utilizados e nos comentários sobre os mesmos. Cinco músicas que são como que mini aulas de como compor material contundente e acessível.
Vale ressaltar que os exemplos acima pinçados serviram apenas para ilustrar a ideia de que uma das qualidades do disco é o acertado apelo pop radiofônico, porém certamente não se resume apenas a esse mérito. Como já dito acima, as vinte tracks (uma introdução e uma vinheta) é um excelente apanhado com participações em outros discos, e com temas e andamentos dos mais diversos. Aliás, esse é o próprio conceito de Mixtape, e que encontra nesta um exemplo virtuoso. Mix sim, mas que encontra unidade nas várias representações sobre o amor (no fim de amores ou na ausência dele) como no caso da forte Pai e Filho. Ou nas diversas formas de poder, seu desvirtuamento por parte do braço armado do estado, O Tiro, para ficar em dois exemplos.
As participações e parcerias se fazem presentes com as melhores cabeças do rap baiano e brasileiro, como o grande Yuri Loppo, Samuel PX, Cintia Savoli, N’Ativa, Aurêa Mc, Nilton, Stheff, Léo Soulza, Geraldo Santana. Fazendo com que a quantidade de músicas não torne em momento algum a audição algo monótono ou cansativo. A intensidade se mantém do início ao fim, obviamente mudando de velocidade, mas sem perder qualidade nesta pluralidade de flows e composições, seja na temática, seja nas técnicas.
Por enquanto o disco só encontrou lançamento em plataformas virtuais, afinal não esqueçamos que Morango NE está percorrendo o Brasil junto com seu grupo, o Nova Era. Mas certamente essa obra merece muita atenção dos admiradores da boa música e merece um lançamento ao vivo para podermos ter o prazer de ver essas músicas, com as participações sendo executadas ao vivo. Fica a dica.
Baixe Amor e Poder aqui ou aqui.
https://soundcloud.com/morango-n-e