Milton Nascimento e Esperanza Spalding nos apresentam à beleza possível da obra de arte em novo álbum, fruto da conexão entre ambos.
Sentado com um amigo no bar de Dona Zilda, no Largo de São Lázaro, em Salvador, lá nos distantes anos iniciais da primeira década deste terceiro milênio infame, a gente tomava uma e conversava sobre a música do Milton Nascimento.
Em certo momento este amigo, Tiganá, disse algo que nunca saiu da minha cabeça. Ele descreveu a música do compositor mineiro como se ele compusesse músicas para crianças. Cantarolou algumas melodias famosas do Milton para ilustrar aquela sua afirmação. A única que me lembro dele cantarolar foi ‘Paula e Bebeto‘.
Quando ele cantarolou as músicas se acendeu em minha mente o sentido daquela afirmação. A música de Milton, assim como a infância, está carregada de ingenuidade! Uma ingenuidade genuína, portanto, capaz de revelar sentimentos e emoções sem mediações.
Sempre senti a música do Milton como a expressão máxima sobre o jeito de ser do povo mineiro. Entendendo o povo mineiro como aquele que vive na roça, que é capaz de preservar a fresca ingenuidade de quando fora criança. Portanto, capaz de sinceridade, de se apresentar sem disfarces, sem a necessidade de mediações.
Porém, eu me enganei, isso não expressa uma “mineiridade” ou coisa que o valha. Expressa algo característico do próprio ser humano. Cujo tipo de civilização erigida ao longo dos últimos séculos, dilacerou. Fez-nos perdê-la dentro de nós mesmos.
Nesse sentido a música de Milton Nascimento, não apenas ela é claro, quando consegue nos atingir, faz com que encontremos esse ‘elo perdido’ da nossa condição humana, que nos faz emocionar e nos sentirmos bem. Eu tenho certeza, foi isso que a música do Milton Nascimento fez a jovem Esperanza Spalding experimentar.
Ela se encantou pela música brasileira. Tanto que em seu terceiro álbum de estúdio, “Chamber Music Society” (2010), gravou “Inútil Paisagem” do Tom Jobim. No Festival de Jazz De San Sebastian, realizado no dia 18 de agosto de 2009 ela tocou “Coisa Feita” do João Bosco.
Contudo, o amor só foi arrebatador com a música do Milton Nascimento! Logo em seu segundo álbum, “Esperanza” de 2008 fez uma versão belíssima de “Ponta de Areia” do Milton. Contou com a participação do compositor mineiro no “Chamber Music Society”. Cantaram juntos a música “Apple Blossom” , composição da própria Esperanza.
Não esqueçamos da participação do Milton no show da Esperanza no Rock´ In Rio de 2011. Clique aqui e assista-os tocando o clássico “Cravo e Canela” do Milton naquela edição do festival. Em vídeo promocional, publicado nas redes sociais de Spalding no dia 14 de maio deste ano, preparando o terreno para o lançamento do álbum Milton + Speranza (2004), a compositora estadunidense diz que o sono dela sempre foi gravar um álbum com Milton Nascimento. Assista clicando aqui!
Aliás, nos vídeos em que Speranza Spalding e Milton Nascimento aparecem juntos, percebe-se o carinho e admiração mútuos. Nestes momentos estamos testemunhando o vínculo entre dois artistas, entre dois seres humanos, cuja expressão do amor se dá através da música. Mostra a reverência de uma jovem musicista àquele seu ancestral capaz de lhe fazer revelações sobre a vida, tendo na música o veículo para tal ação.
Speranza + Milton (2024) revela essa reverência e esse amor entre duas almas musicais. Para materializar esse sentimento e as emoções dele emanadas, Speranza Spanlding mergulha na música de Milton Nascimento, rearranjando faixas clássicas do compositor mineiro, além de se servir dos elementos nelas presentes para compor novas músicas.
Portanto, não se trata de um álbum tributo à Milton Nascimento e sua música. Trata-se, ao contrário, de um álbum autoral, contudo, em que o coautor aparece como elemento criador e objeto de inspiração! Quantas divindades musicais tiveram essa oportunidade ao longo de sua vida? Speranza gentilmente segura as mãos de seu ancestral e o conduz para criarem juntos uma obra grandiosa. Pelo seu sentido, pela sua natureza leve, tranquila, revestida pela serenidade de um ser humano que alcançou o sublime em vida, através da sua música.
No dia 07 de agosto, portanto, às vésperas do lançamento de Milton + Speranza, saiu no canal da NPR Music, vídeo em que Speranza e Milton mais banda, com a presença do compositor, saxofonista, clarinetista e flautista de jazz britânico Shabaka Hutchings, tocam cinco faixas do álbum. São elas Cais, Outubro e Saudades dos Aviões da Panair (feat. Maria Gadu), composições do Milton Nascimento. Saci (feat. Guinta), composta pelo Guinga e When You Dream (feat. Maria Gadu) do Wayne Shorter. Há de se dizer, homenagem ao saxofonista, amigo de Speranza e Milton, falecido recentemente, há 1 ano completo ontem, dia 25 de agosto.
A performance no vídeo revela um pouco do que encontraremos no álbum, além de revelar o ambiente de gravação, a felicidade radiante da Speranza executando as músicas do Milton, ao lado dele, podemos ver isso nos olhares que ela dirige a Milton, nos sorrisos que saem em trechos das músicas tocadas, em especial Saudades dos Aviões da Panair.
No vídeo podemos ver uma homenagem à obra e ao seu criador! A participação de Maria Gadu e Shabaka Hutchings, de gerações mais novas, e do Guinga contemporâneo do Milton, expandem a percepção acerca daquela celebração. Qual seja, a integração ao álbum de referências e influências musicais de diferentes momentos da história da música.
Podemos acrescentar ainda a participação de Paul Simon em Um Vento Passou. Nesta faixa, cuja letra é de Márcio Borges, parceiro de Milton de longa data, Paul Simon canta em português ao lado do nosso Bituca. Essa faixa, aliás, foi lançada como single como forma de promover o lançamento de Milton + Speranza. E contou coma produção da própria cantora estadunidense.
O universo musical de Milton Nascimento se expandiu ao longo de sessenta décadas. Há uma vastidão a ser explorada. Para Speranza foi prazeroso fazer essa viagem na busca pelas músicas que fariam parte do setlist do álbum. Buscou músicas expressivas, em destaque no repertório de Milton como Cais, Outubro, Saudade dos Aviões da Panair (featl. Lula Galvão e Liane La Havas) e Morro Velho. Esta última com participação da Orquestra de Ouro Preto.
As músicas ganharam arranjos novos, dando-lhes um ar contemporâneo, mas sem perder a originalidade impressa nelas por Milton Nascimento. Tendo em vista haver uma veia jazzística em Milton + Speranza, espera-se a presença de uns standards de “terceiros”. Sendo Milton Nascimento um fã incondicional dos Beatles, foi escolhida A Day In The Life para representar a influência dos Garotos de Liverpool sob o próprio Milton.
E a versão presente neste álbum, surge como daquelas cuja versão supera o arranjo original. O arranjo dá um tom de fluidez, tranquilidade e suavidade na primeira parte da música e na parte em que há a intensificação da tensão é feito com certa suavidade até desemborcar num caos completo. E daí vem aquele temazinho vocal, pra vir um crescendo gradual com as vozes de Esperanza e Milton conduzindo o rumo da música. Bate de imediato o sentimento de renascimento, de superação de um período de trevas.
Outra música escolhida para fazer parte do hall de faixas inseridas no setlist de releituras é Earth Song do Michael Jackson. Música pouco popular do Rei do Pop, mas que traz uma carga emocional muito grande em si. A voz suave e intensa de Milton imprime ar contemplativo, enquanto a interpretação de Diane Reeves lhe dá uma força explosiva e arrebatadora. Dois extremos que se articulam em transições suaves e harmoniosas.
Esperanza Spalding nos brinda com composições inspiradas na obra de Milton. Wings For The Though Bird e Get It By Now, expressam em contornos vivos a influência melódica e harmônica do artífice mineiro. Podemos constatar o quanto Spalding mergulhou fundo na alma e na música de Milton Nascimento ao ouvi-las.
Milton + Esperança é um álbum resultante do respeito, da admiração, do amor à música. Neste caso, a música s encarna figura de Milton Nascimento. Eperanza Spalding pega na mão de Milton Nascimento, despertando na “Divindade Musical”, como bem o definiu Jack Nicas em artigo do New York Times (aqui), impulso criador, posto em ação mais uma vez.
Somos agraciados com esse registro afável, acalentador e resplandecente. No qual brota as luzes radiantes de mais uma obra magnifica do inigualável Milton Nascimento.