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Merry Clayton, uma artista inspiradora em Beautiful Scars (2021)

Merry Clayton produziu uma discografia excelente, enfrentou tragédias e segue nos ofertando beleza em seu novo Beautiful Scars

Atribuir sentido a nossa existência é uma necessidade vital, essa atribuição sendo assumida seja através de ideias religiosas, ou mesmo de argumentações filosóficas, terminam sendo o nosso alicerce para continuar, para viver. Porém, prefiro acreditar que não existe nem motorista e nem sentido algum colando os eventos ao longo da história da humanidade, além daqueles que construímos interpretando-os sob as mais diferentes perspectivas. 

Àquilo que nos acontece, seja “bom ou ruim” precisamos estar à altura e de preferência sermos capazes de contra-efetuar esses acontecimentos. Pois é um fato é que ao longo da vida todos nós vamos adquirindo cicatrizes, frutos desses raios que nos cortam, que nos atravessam, que vivemos e aos poucos tentamos digerir. Alguns chamam de fatalidades, outros de más escolhas, outros ainda de azar ou castigo. Eu chamo de acontecimentos. E a vida da cantora Merry Clayton é marcada por acontecimentos trágicos, que de um modo ou de outro, ela transformou em música para todos nós.   

Alguns anos atrás com o lançamento do documentário 20 Feet to Stardom (2013), eu como muitos descobri essa maravilhosa cantora, que inicialmente e para milhões de pessoas é uma voz anônima em alguns clássicos. Sua voz figura retumbante em Gimme Shelter (Rolling Stones) e em Sweet Home Alabama (Lynyrd Skynyrd). Como muitas cantoras Merry Clayton começou sua carreira como cantora de apoio, as famosas backing vocals. 

Merry Clayton, junto as Rayletes!

Nascida em Nova Orleans no ano de 1948, é detentora de uma técnica maravilhosa e acumulou milhas preciosas ao longo de sua carreira como vocalista de apoio. Com apenas 14 anos a cantora começa a se aventurar na carreira musical com um parceria junto ao Bobby Darin, seguem-se alguns compactos solo nos anos de 1963 e 64 todos pela Capitol, que não obtiveram sucesso. No entanto, a cantora seguiu emprestando o seu instrumento, sua voz para trabalhos de nomes do calibre de Ray Charles, Elvis Presley, Buffalo Springfield, BB King, Jerry Garcia e muito mais.

Grávida já de uma gestação avançada, Merry Clayton recebeu um telefonema do produtor Jack Nitzsche no meio da noite enquanto se preparava para dormir, lhe convidando a gravar um dueto. Apesar de certa hesitação, ela e o marido toparam e saíram no meio da noite, em direção ao estúdio. A música era Gimme Shelter e o grupo era os Rolling Stones, e a performance da cantora se tornou histórica, porém ela sofreu um aborto espontâneo no dia seguinte que muitos atribuem ao esforço feito durante a gravação. 

Em 1970, mesmo tendo afirmado recentemente que essa sessão de gravação e essa música lhe traumatizaram, Merry Clayton estreia em disco solo intitulado Gimme Shelter. Nessa excelente estreia – dia-se de passagem – além de regravar a faixa fatídica da dupla Jagger/Richards, num funk mezzo psicodélico, ela também traz uma regravação de I’ve Got a Life da Nina Simone. O disco tem os arranjos do grande Gene Page. 

Selo de propriedade de Lou Adler, a Ode Records seria a casa onde a artista gravou três discos até 1975. Porém, é certamente o seu segundo disco, aquele que foi alçado ao posto de obra prima. O seu álbum homônimo Merry Clayton, lançado em 1971 é o primor pelo qual eu fui levado a querer saber mais sobre essa grande cantora, após assistir ao documentário. 

Composto por uma banda afiadíssima, é o seu disco com melhor produção, repertório e instrumentação. Estão no disco Wilton Felder (baixo), Paul Humphrey (bateria), David T. Walker (guitarra), Clarence McDonald e Joe Sample (teclados), Bobbye Hall Porter, Sandra Crouch e Gary Coleman (percussão) e Curtis Amy (saxofone). Nos backing vocals estão Abigale Haness, Patrice Holloway e o Rev. James Cleveland, a produção é assinada pelo Lou Adler e arranjos de Carole King, Billy Preston, Jerry Peters e Marty Paich.

Merry Clayton e Carole King, que foi uma das arranjadoras do seu disco de 1971

É certamente uma turma de respeito e isso pode ser sentido em cada segundo do disco, um petardo funk soul com deliciosas gotas de gospel e blues. Faixas como a de abertura: Southern Man, a entrega doce e forte em Love or Let Me Be Lonely, em A Song For You entre o soul e o gospel, Merry não deixa pedra sobre pedra. Um álbum que corre maravilhosamente bem na ponta do laser, pela sua rede de wifi ou na ponta da agulha, completando em 2021 seus 50 anos de idade, porém eterno. Aqui está o que podemos sem exagero chamar de clássico obscuro. 

Ainda nos anos 70, pelo mesmo selo ela gravaria Keep Your Eye On The Sparrow (1975), que certamente é um disco que você também precisa ouvir. A partir daí, seus lançamentos se tornaram mais espaçados, lançando cinco anos depois pela MCA  Emotion (1980) e daí somente 14 anos depois viria a luz o disco Miracles em 1994. Sua discografia é irrepreensível e se você não ouviu nenhum destes trabalhos certamente verá o grande valor artístico deles. Desde os compactos até o seu último lançamento – veremos abaixo – Merry Clayton é uma cantora que possui todos os atributos técnicos e um timbre vocal que encanta, além da imensa capacidade de interpretação.    

Após todos esses anos de luta, Merry Clayton ganhou destaque com o lançamento do documentário A Dois Passos do Estrelato (2013) dirigido pela fera Morgan Neville e que arrebatou o Oscar de melhor documentário. Porém, um outro acontecimento trágico iria vitimar a cantora com um golpe muito duro, nos anos seguintes.

Logo após a atenção conquistada pelo sucesso do documentário, com um disco já quase pronto, Merry Clayton sofreu um acidente de carro que a deixou internada por meses, e lhe tirou as duas pernas. Nesta altura muitos fraquejariam, muitos atribuiriam a causas metafísicas tamanho infortúnio, depois de tantos anos de luta, Merry Clayton não. Lou Adler, seu amigo e produtor durante tantos anos, ainda no hospital a convenceu a gravar um disco, e já de saída a cantora decidiu: “Eu disse a ele que queria homenagear Deus por me dar minha vida de volta”.

O resultado é o belo Beautiful Scars (2021), disco gospel de uma cantora maravilhosa sob quaisquer critérios que se queira. O disco traz 10 canções e já abre os trabalhos com a clássica A Song For You, gravada 50 anos antes por ela mesma. Leon Russell o autor a ofereceu durante as gravações de seu segundo disco e a faixa se tornou a música de Merry e do seu marido Curtis Amy (saxofonista) que faleceu em 2002.

Aos 73 anos, com 59 dedicados à música, Merry Clayton brilha como um farol a nos guiar através das falsas ideias sobre vitória e sucesso. O canto religioso que ela prega em verdadeiras tábuas de pedra nesse Beautiful Scars, carrega consigo toda uma vida dedicada à música. No sentido mais genuíno que o termo possa carregar, Merry Clayton é uma artista grandiosa que fez a sua voz servir a beleza, ao bem, à própria vida. Ouvir Beautiful Scar é realmente uma experiência religiosa nesse sentido, nos religando ao que interessa de fato quando se trata de arte, de música e de vida.

Entendermos que a vida é sempre o maior valor e que as dores, os acontecimentos trágicos que nos ocorrem precisam ser bem absorvidos e de preferência se tornarem elementos de luta e porque não de louvor a vida!

-Merry Clayton, uma artista inspiradora em Beautiful Scars (2021)

Por Danilo Cruz 

 

 

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