Mel Duarte lança Mormaço – entre outras formas de calor (2019), o Spoken World, a poesia e o caminho para apalavrar, e produzir nosso comum!
“Somos uma extensão do que falamos e a palavra traz muitas responsabilidades. Manter a coerência entre o que falo e o que faço é o que dá sentido ao meu corre.” Cria das ruas de São Paulo, Mel Duarte se descreve como uma mulher negra que se descobriu escritora e que encontrou na palavra uma fortaleza para lidar com a vida.
Inspirada por Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus, Erykah Badu, Anelis Assunção, Céu e Tássia Reis, a poeta, slammer, produtora cultural e integrante do Slam das Minas – SP, tem 4 livros publicados e acaba de lançar seu primeiro disco de spoken word “Mormaço – Entre outras formas de calor”. Trocamos ideia sobre isso e a mesma foi firme ao falar como é ser uma artista independente.
“Ser independente significa depender ainda mais das pessoas. Precisamos trabalhar em coletivo para caminhar mais longe. Ser autônoma exige de você muito mais foco, mais profissionalismo, mais dedicação então há um desgaste físico e mental, além da questão de grana, mas eu não troco a loucura da minha vida por nada, faço o que amo, sei das coisas que abri mão pra construir um trabalho sólido entendo que tudo leva tempo e sou grata porque desde 2016 eu vivo da minha palavra num país que tenta nos silenciar” explica.
Mel cresceu no meio de manifestações culturais de todo tipo: alimento essencial para o desenvolvimento da arte de se comunicar sobre o que vive, o que vê, suas perspectivas, sobre quem é e o que sente. A poesia foi a chave para mudar sua vida e que permanece dando sentido pra viver nesses tempos sombrios.
“Produzir o Mormaço foi a coisa mais prazerosa que me dei ao direito esse ano. Eu já tinha o projeto a um tempo e vinha cozinhando ele, eu me cobro muito e acho que esperei um momento certo em diversas esferas da minha vida pra poder colocar ele na rua. Mormaço vem pra falar de amor, afeto, paixão, coisas que com a loucura da vida a gente vai deixando de lado. Eu sempre gostei de falar sobre elas e senti que esse era o momento certo, já que além de marcar uma nova fase do meu trabalho, apresenta uma proposta que ainda é pouco feita no Brasil, ainda mais por mulheres negras. Sei que esse disco é uma conquista para muitas das minhas e espero que ele eleve um pouco o espírito de quem se permitir escutar” garante a poeta.
Um dos sons do álbum, “Ocupação” deixa claro o apoio à Janice Ferreira Silva, conhecida como Preta Ferreira, presa injustamente por suspeita de extorsão. Em outras palavras: suspeita de cobrar aluguéis indevidos de moradores de ocupações. O inquérito que levou a sua prisão temporária se baseia em denúncias de treze testemunhas anônimas e é um desdobramento da investigação do desabamento do edifício Wilton Paes de Almeida, no Largo Paissandu, em maio de 2018. Entretanto, Preta nunca sequer pisou no lugar.
“Preta é uma amiga muito amada, nsó por mim mas qualquer um que a conheça, não tem como ela é uma mulher incrível! Mas a música não tem nada haver com esse momento em que ela esta passando agora, até porque escrevi essa letra no ano passado. A questão é que eu frequento a ocupação 9 de julho e a proposta do som cabia muito no espaço, eu conversei com a Preta contei a proposta do clipe e ela me auxiliou no dia da gravação e qnd fomos soltar o vídeo ela já estava presa injustamente, então fiz questão de deixar um agradecimento especial a ela, toda oportunidade de nos manifestar é bem vinda” desabafa Mel.
Infelizmente, a realidade atual do Brasil tende apenas a piorar e consequentemente, criminalizar grupos que já estão à margem da sociedade. Questionada sobre como o hip-hop deve agir e qual sua responsabilidade diante disso, Mel foi certeira: saber usar seu meio para contar a outra versão da história, porque ainda tem muita gente que precisa acordar.
“É um movimento muito plural para tentar encontrar uma resposta que contemple ele como um todo, mas eu penso como artista que entende a responsabilidade social que tem, que se comunica com uma geração, que é preciso se posicionar. Eu sempre vi no hip hop essa relação de resistência, apenas sinto que hoje, parte desse movimento não está muito preocupada com a mensagem que transmite. Acho que muita coisa perdeu a poesia pra virar publicidade e isso me entristece porque se esquece de aprender com quem veio antes… Sinto falta da troca entre as gerações. Hoje eu sinceramente não escuto mais rap como ouvia a 5 anos atrás. Tenho me envolvido com outros estilos e ritmos, acabo acompanhando mais as manas do rap porque com elas tenho visto um progresso bonito da cena e de qualidade musical” afirma.
Mel firma também que o público precisa entender que dar like numa foto não fortalece tanto quanto indo ver um show de um artista que ele gosta. “Os MCs têm a responsa de fazer a mensagem ir mais longe, então que se comuniquem de forma coerente. Acho desperdício alguém que tem visibilidade não se manifestar contra o que tá rolando nesse país” explica.
Pensar em desistir é recorrente para qualquer um, principalmente para quem sobrevive de arte. Apesar dos empecilhos que todos já conhecem, a poeta conta que são as mínimas coisas que a fazem valorizar sua carreira.
“Um dos momentos mais marcantes pra mim até hoje foi representar a literatura brasileira em Luanda (Angola) em 2017. Atravessar o oceano de avião para fazer um trabalho e ao me apresentar ver pessoas na plateia, num país que eu nem imaginava que sabiam da minha existência, declamando meus poemas junto comigo. Foi surreal. E ainda pude ter uma aproximação com irmãs e irmãos da África” se emociona.
Só mesmo as palavras tem o poder de construir bases tão sólidas quanto essa. Ouça o álbum e se emocione junto:
-Mel Duarte: vida, luta e som em “Mormaço – entre outras formas de calor”
Por Gabriela Santos