Mattenie e Barba Negra lançam Malbec & Fettuccine: Sapore e Veritas no Rap Nacional

A dupla do interior paulista Mattenie e Barba Negra, preparam uma refeição vigorosa com o melhor para degustar do rap underground nacional!

Mattenie
Equipe responsável pelo Malbec & Fettuccine

“In vino veritas, in aqua sanitas”

Com Malbec & Fettuccine que chegou hoje às plataformas digitais, o MC Mattenie e o produtor e beatmaker Barba Negra dão uma contribuição substanciosa para um ano de literal renascimento do boombap drumless, o que muitos têm chamado de Nova Golden Era. Eles já estiveram por aqui em outros lançamentos fundamentais do ano, como no caso do Anti Lock (2022) com Mattenie participando ou mesmo nos dois volumes do excelente O Pirata em Tóquio, produções do Barba Negra que o Mattenie também colou.

Utilizando o mote de uma refeição que certamente muito me apetece, Fettuccine ao molho Alfredo com um bom Malbec acompanhando, Mattenie e Barba Negra, neste sentido produzem um trampo que nos leva a pensar sobre com o que temos nos alimentado. As nove porções servidas ao longo do disco levantam diversos problemas sob os quais estamos muitas vezes fingindo não ver ou ainda tergiversando, e aqui Mattenie é bem direto ao apontá-los. Sem jogo de compadres, sua lírica foca bastante nos aspectos políticos que são negligenciados ou simplesmente confusos em boa parte das produções atuais. 

De acordo com o Malbec sorvido de modo recreativo, podemos ver o discurso do Mattenie emergir naquele momento em que o rosto e corpo esquentam após algumas taças e com a palavra devidamente molhada, a verdade emerge. E nesse caso a verdade vem à tona com uma força indubitável ao mostrar como nossos MC’s tem preferido rimar ganhos ao invés de esclarecer o público sobre os problemas que nós enfrentamos. Nos anos de inserção da população negra e periférica como consumidores durante o governo do PT, criou-se uma mística onde a exaltação do consumo seria algo relevante politicamente. 

Nos últimos seis anos vimos de perto essa ideia de que a inclusão social pode ser feita pelo consumo, pois estaremos sempre sujeitos aos golpes do mercado, não à toa temos hoje algo em torno de 33 milhões de pessoas passando fome, sem contarmos os outros tantos milhões em insegurança alimentar. A cultura da ostentação, a apologia da meritocracia, falaciosas como sempre foram, servem apenas para reificar a noção de que o trabalho oferecerá as condições necessárias para vivermos dignamente. Ou que com muito trabalho, você alcançará os seus sonhos, vai vendo. 

Hoje na cultura Hip-Hop é feio fazer elogios a vida simples, criticar marcas que se utilizam de trabalho escravo, pois isso seria romantizar a pobreza. O cinismo de grande parte dos artistas que obviamente se beneficiam como empregados destas empresas através dos recebidinhos e dos patrocínios, só perde pros assalariados que entendem que um dia podem ser milionários através do trabalho. Assim, Malbec & Fettuccine (2022) é um EP que toca nessas feridas de modo a se tornar uma refeição indigesta para quem está acostumado a se alimentar de fast food. no rap nacional!

“Primo Mangiare, dopo filosofare”

A música, assim como a literatura, o cinema e as outras artes são alimentos essencialmente espirituais, por isso é fundamental sabermos selecionar o que vamos “consumir” neste mercado cultural que quer lhe empurrar goela abaixo, qualquer coisa. É realmente, de uma tristeza medonha perceber que um beatmaker, produtor e MC da estirpe de um Barba Negra seja tão pouco conhecido em nosso país. Após dois lançamentos pesados com os dois volumes de O Pirata em Tóquio (2022), ele nos apronta uma sequência de loops absurdos neste Malbec & Fettuccine. 

Roubando honestamente recortes de músicas que parecem geralmente orbitar na esfera da música negra, nacional e internacional, Barba Negra constrói bases sólidas o suficiente para inclusive serem ouvidas sem as rimas. Não que tenhamos interesse em desprezar a parte poética, mas esse é um daqueles trabalhos onde as duas partes possuem tanta substância que poderiam e devem ser degustadas em separado e juntas também. Já na faixa de abertura, Mattenie se aproveita de um loop utilizando vozes de fundo para nos chamar atenção para o fato de que enquanto seres humanos, nos alimentamos de tudo, de todas as formas de experiência, pois nem só das operações estomacais viverá o bicho homem. 

Enquanto animais racionais, em tese, somos alimentados por todas as nossas experiências, e o quão difícil é saber selecionar os pratos, sabermos nos portarmos diante dos mais diversos tipos de ambientes, de pratos e de talheres que nos são apresentados. “Malbec” é uma excelente faixa que introduz de saída a noção de que devemos estar vigilantes diante das coisas que compõem a nossa subjetividade. Inclusive, o Mattenie abre mão de um cardápio que muitos desconhecem com artistas como Murica, Galf AC, Gabi Killabi, Bianca Hoffman, Traumatopia, Nairobi, Thestrow, Raul Rondé, Rato, etc… Artistas que estão produzindo o que de ponta se faz no boombap nacional hoje.

Já na faixa seguinte – a outra metade da refeição – “Fettuccine” tem uma bonita noção da importância de comer, de preparar comida com quem nós amamos, para além de reuniões burocráticas. Comer, beber, dançar, são formas de sociabilização e quando bem executadas de afeto. Vocês não sabem, mas esse espaço aqui, o Oganpazan, nasceu exatamente da reunião de amigos que se juntavam para comer comida mineira, churrasco, beber e falar sobre música e arte. Não à toa, essa base ética sob a qual Mattenie erigiu a sua crítica e a lírica nos cala tão fundo, entendemos desse riscado!

No entanto, como mencionamos acima, a fome assola a população em um nível que em certa medida é até motivo de refletirmos o quão somos agraciados por termos as três refeições garantidas. Esse exercício atravessa e muito bem, a faixa “Tá tudo caro” com os riscos do DJ Sleep e sobre a qual escrevemos aqui, a música recebeu um audiovisual. Na pedrada seguinte: “Clássico de Rua”, o loop de guitarra atravessa para o primeiro plano do som, com a caixa e o baixo marcando esse drumless envenenado do Terrível Ladrão de Loops aka Barba Negra. 

Trabalho com essa intensidade, como presente em Malbec & Fettuccine (2022) só podem ser fruto de uma vivência que se constrói ao longo de anos, com experiências limite, estudo, amor à cultura hip-hop. Para o ouvinte de primeira viagem ou os mais desatentos, se faz necessário prestar atenção nas ideias narradas aqui. “Clássico de Rua” é um bonito e verídico relato da importância do rap como arma, como arte significativa para além de meter dança numa festa estando bem “produzido”. Mattenie dá aqui um testemunho impactante de sua caminhada, nos dando a perceber que por mais que ele narre a sua vida na rua, não saberemos nunca como esse homem se reconstruiu e sobretudo como deu um salto expressivo para se tornar um MC desse nível. 

Suas ideias podem ser pelo menos, aqui, observadas na nascente de uma experiência que muitos nem conseguem se imaginar vivendo. E certamente, o impacto desta, o fez se tornar aquilo que ele é: Um MC comprometido integralmente com a transformação e a luta do nosso povo. E para muitos que acreditam que a defesa do underground é mera romantização da pobreza, deve ser incompreensível ver alguém que viveu na rua, estar mais preocupado em ser relevante do que alcançar o hype. Alguém que não canta a busca ou a posse da riqueza; a fala do Galo de Luta no começo da música explica. 

Este tema é extendido na música seguinte:”São João das Barras” sobre a qual também já escrevemos aqui. E que no contexto do disco faz uma importante reflexão sobre o papel dos MC’s diante desta situação. A grande Killa Bi, traz a saúde “mergulhada em “Águas Claras” que citamos acima no início do texto, em boombapzeira swingada do Barba. Uma faixa onde o MC e a Killa Bi versam sobre honestidade como uma escolha não no sentido meramente moral, mas política, de construção de si mesmos. 

Ao longo das faixas o Mattenie esculacha diversos tipos de flows em beats extremamente exigentes do Barba Negra, porém em momento algum ele sai do registro de um canto ou rima onde sua voz se mantém como um sussurro imponente em nossos ouvidos. Em “Sonho de Vários”, o artista rima sobre amor, sobre amor a si próprio, sobre fé, mas mais importante sobre a noção de se conhecer a si próprio e com isso sobre o que se deseja. O Síntese por sua vez que participa da faixa, rima sobre como a cultura hip-hop engendra alguns representantes que precisam ou deveriam propor um retorno. O MC utiliza o Aboio como metáfora para esse “guia” de ideias e afetos. Uma outra faixa que dialoga com a intenção geral do disco e que precisa ser ouvida, degustada!

Sabor é Saber, Mattenie e Barba Negra nos alimentando, Coda!

Trabalhos como esses deveriam dialogar mais e melhor com o público que se diz apreciador do rap nacional. O quase total arreganhamento do Rap mainstream ao mercado impede que essas discussões, sonoridades, líricas, sejam amplamente debatidos, pois a estratégia primordial do mercado é manter no anonimato, invisibilizar trabalhos como esses, artistas desse nível. As duas faixas que encerram o trabalho, são agradecimentos e convites que reafirmam as intenções do Malbec & Fettuccine. 

Querer reunir a todos em uma mesa é logicamente impossível, porém saber que todos devem possuir uma mesa digna e mais do que isso lutar por isso, se tornou no rap dentro da indústria mero discurso, quando muito. Produtos entre outros, se torna difícil levar a sério uma série de declarações quando os artistas se tornam milionários, pois além de sabermos que eles não estão na rua, a forma de suas artes aqui no Brasil tendem a se tornar inofensivas. 

Com as faixas “Tanto Tempo Skit” e “Maritacas”, as duas últimas do EP, e consideramos Extended Play todos os discos com menos de 30 minutos, Mattenie e Barba Negra encerram um trabalho com duas faixas que somam 4:33ms, de ideias sobre coletividade. Pessoalmente discordo da ideia de que alguém nasce à frente do tempo, na verdade pessoas como Mattenie e Barba Negra e outros grandes do nosso cancioneiro, entendem melhor do que os outros o tempo em que vivemos e eles o fazem pelo poder de se colocar fora deste tempo dado. Assim compreendem tão bem as possibilidades de solução dos problemas que vivemos que são capazes de projetar no tempo presente outras soluções diferentes do senso comum. 

E talvez aí esteja um explicação possível para esta pergunta colocada em “Tanto Tempo Skit”. isso é possível exatamente por que quem possui uma sensibilidade e um intelecto saudável é capaz de tendo perdido tudo, não sendo possuidor de nada, reconstruir outros futuros possíveis, foi assim com o Racionais MC’s, é assim com o real sabor da verdade do Hip Hop. 

-Mattenie e Barba Negra lançam Malbec & Fettuccine: Sapore e Veritas no Rap Nacional

Por Danilo Cruz 

 

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