Mattenie lançou esse ano três trabalhos inéditos pesados com três nomes da produção nacional, você precisa ouvir!
Ainda faltam pouco mais de 4 meses para que o ano de 2024 termine, mas Mattenie já fez a mala e se pá merece um bônus para as férias. E se você tá por aí com a internet inteira pra passear mas ficou preso em bobagens e ou reclamando da qualidade do rap nacional, você tem muito trabalho de casa para fazer. Mas não se preocupe, vamos te guiar nesse passeio pelo “vale” de rimas e batidas que o Mattenie tem cultivado com primor.
Vamos começar te situando geo-poeticamente, afinal Mattenie é um filho legítimo da lírica e da pegada espiritual do Rap e da cultura Hip-Hop do Vale do Paraíba, mas especificamente da cidade de Jacareí. Há 32 primaveras de absorção de vivências verdadeiramente intensas, dentro e fora da cultura Hip-Hop, já conta com uma discografia de muito respeito iniciada em 2011.
Parte da atual geração que impulsiona firmemente o rap underground nacional, o MC deu uma verdadeira injeção de produtividade na sua discografia e produções audiovisuais este ano. Muito dessa injeção, imaginamos, é também fruto do momento atual onde diante da mediocrização e crescimento mercadológico do mainstream no Rap Nacional. Apesar do silêncio constrangedor e não menos medíocre dos “articulistas” das mídias de (rep) no Brasil, hoje vivemos um dos momentos mais prolíficos do under nacional.
Dois anos após o lançamento de “Malbec & Fettuccine”, disco excelente e que tivemos a honra e o prazer de resenhar, parceria sua com o Barba Negra, Mattenie soltou o disco Prensa. Aqui contando com a luxuosa companhia criativa do carioca Goribeatzz, que assinou a produção deste novo e primeiro disco de 2024, o MC de Jacareí trouxe 10 músicas e muitas participações. Lapidando cada vez mais sua lírica e seu flow, esse certamente é um dos grandes discos do ano, como de resto toda a obra lançada por Mattenie, afinal atemporal.
A veia lírica de Mattenie tem um aspecto muito próprio que é a forma como ele tangencia sua fé, o apreço pela cultura Hip-Hop enquanto maquinaria cultural que nos liga e impulsiona a se expressar com singularidade e a luta política sempre atenta aos aspectos mais prosaicos, mas não menos importantes. O Mattenie, apesar de leitor voraz de literatura, não nos parece estudou mais a fundo economia, no entanto podemos perceber facilmente que ao contrário dos “funcionários do capitalismo” ele entende que só existe economia política.
Através deste tripé: “Cultura Hip-Hop”, “Fé” e “Luta Política”, Mattenie apresenta outras tantas variações, seja a valorização da “cultura popular”, referências cinematográficas e de cultura pop, relatos de sua vivência e de seus posicionamentos diante das patifarias do mercado do rap. Se seguirmos a lógica interna e a semiótica do disco Prensa, o que o Mattenie nos apresenta é um boa dose de café poético e musical, um estimulante artístico para nos acompanhar no nosso dia a dia, seja acordando, seja naquele intervalo maroto do trabalho ou menos ao chegar em casa.
A produção que Goribeatzz traz nesse disco é bastante exemplar do que é tanto a sua arte quanto a força do boombap/drumless nacional nesta segunda década do século XXI. A escolha de timbres, samples, os loops, as quebras e variações de andamento, às vezes na mesma faixa, é algo muito próprio do produtor carioca, um dos nossos grandes arquitetos do som e dono de um currículo ímpar.
-Leia sobre outros trabalhos do Goribeatzz no Oganpazan
As participações presentes em Prensa são também um elemento engrandecedor do trabalho contando com nomes como Alra Alves, Galf AC, Traumatopia, Barba Negra, Rato, Betel, Bianca Hoffmann, Pedro Simples, Semente da Essência, Enidê MC, Pedro Simples e Éricon. E você querido leitor, se não conhece algum desses nomes, nem preciso dizer nada né?
Não bastasse esse discaço, na sequência Mattenie lançou um EPzinho com 3 faixas. A produção desta vez ficou a cargo do Traumatopia que desde o – para nós – clássico Anti Lock, apresentou uma assinatura que nos parece muito própria. Essa alquimia sonora do produtor sempre me traz uma vibe que eu particularmente não chamo mais de batida suja, mas carinhosamente de “batida demente”. Saca quando “bati tudo” e a realidade diminui de velocidade ao mesmo tempo que as coisas parecem se repetir num eterno retorno da chapação? Pois bem, é o que sinto ouvindo a maior parte dos beats do Trauma e Teyú vem muito nessa pegada.
Neste trabalho “menor”, Mattenie preferiu a produção de faixas maiores, algo pouco comum hoje no rap nacional e mesmo no boombap/drumless. A crônica poética que abre os trabalhos “Idade da Prata”, o MC faz um brilhante exercício de critica ao machismo estúpido e ao consumismo neoliberal que pretende fazer das aparência moeda de troca essencial para as relações sociais. Mattenie é bastante certeiro ao fazer esse diagnóstico e se posicionar apresentando a quem estiver desavisado, quais os valores que alicerçaram e segue sendo o motor da cultura Hip-Hop.
Na faixa seguinte, “Roteiro”, outro momento alto do ano do MC, Mattenie produz um storyteller sobre suas possíveis vivências no crime, sobre as necessidades e desejos da época. O refrão funciona também como um lembrete que “loopa” poeticamente a consciência do ouvinte, servindo-lhe como um aviso. Algo bastante diferente, dos “marginais influencer” que “vendem” não apenas uma imagem fake do crime, como também valores neoliberais de vitória na corrida e todo esse tipo de lixo que pulula na música periférica.
Fechando o trabalho, “Fapija de 2007” é outro exercício memorialista que transforma experiências vividas que enquanto poeta Mattenie transforma em universal. Lembra do que chamei de “beat demência”, pois aqui Traumatopia traz um exemplar de ouro. A faixa traz o feat do The Dummies Drilla que reforça com qualidade e exemplos fortes a ideia da faixa.
Ora, além do disco e do EP, Mattenie lançou um single com o produtor Rodesens que certamente vale muito a pena sacar, porque é um boombapão pesado e também participou de uma faixa produzida pelo Cômodo Alquímico (local de gravação do EP Teyú). Lançada como audiovisual Alquimistas#4 registrou Mattenie, Dukes, Síntese, Ingles e Spivic na gravina dentro do estúdio no beat do Neto. Flagra aqui:
Digna também de altíssima nota é a participação do Mattenie junto com o Barba Negra no programa Feat Saci. Nessa live session, abrem-se realmente portais, pois além da excelência artística apresentada, temos ali um registro muito interessante de uma apresentação de drumless, que diferentemente do Boombap mais clássico, implica um outro tipo de entrega e obviamente de recepção.
No Brasil é curioso notarmos como o “viralatismo cultural” é uma constante, ao mesmo tempo que os “articulistas do rap” conhecem o underground do rap de Minnesota, desconhecem nomes como o do próprio Mattenie ou mesmo do Barba Negra aka Terrível Ladrão de Loops aka Ralph MC. Da mesma sorte, a rapaziada cult se urina de emoção ao ver o Milton Nascimento no Tiny Desk, mas desconhecem projetos como o Feat Saci.
-Leia sobre outros trabalhos do Barba Negra aka O Terrível Ladrão de Loops no Oganpazan
Certamente, pode-se contrapor essa comparação talvez esdrúxula para alguns apresentando o argumento do sucesso, do tempo e mesmo do dinheiro investido em propaganda nos algoritmos. Porém, me parece que esse argumento apesar de válido em uma escala macro, não deveria funcionar tão perfeitamente no núcleo duro da cultura Hip-Hop, por exemplo. Haja vista, que são atores e atrizes culturais ou mesmo apreciadores que se arvoram de pesquisa e de apoiar a cultura Hip-Hop nacional, está faltando um pouco de esforço.
Pois, para ficar no exemplo restrito aqui neste texto, o que faz com que nomes de excelência da produção contemporânea do rap do próprio eixo Rio-SP não possuam visibilidade? Ao que parece, o interior de SP não é do Eixo, ou certas estéticas sonoras não recebem a valorização devida nem das mídias “nacionais” do eixo. Fica no ar essa questão.
Voltando à apresentação do Mattenie & Barba Negra, os caras trouxeram 6 faixas, sendo 4 de colaborações entre os artistas e mais duas músicas inéditas: “Mandinga” e “Eu Só Queria Dizer”. Vale citar também, a bonita fotografia em preto e branco neste episódio que se destaca do já extenso catálogo do canal. As gravações ocorrem na Saci Tabacaria em Taubaté e são “operadas” pela produtora Mocó Filmes.
A dinâmica da produção musical na era dos streamings gerou o mercado dos singles, artistas que lançavam diversas músicas e clipes para se manter ativo nos algoritmos. A “facilidade” de produções “caseiras” embarcou na medida do possível nessa estratégia, acreditando ser possível competir com grandes gravadoras e/ou produtoras com investimento de milhares de reais em “adsense” e posts patrocinados. Sem contarmos as fazendas de streamings que até pouco tempo atrás não eram conhecidas por muitas pessoas.
Ora, nos últimos dois ou três anos o rap underground nacional passou a ter artistas que têm lançado muitos discos e EP’s, singles, mixtapes, audiovisuais por ano. Certamente, não é por algum credo na teoria da “Cauda Longa”, mas por um processo de alianças e por uma urgência em colocar na rua sua arte. Como nos conta o próprio Mattenie:
“De 2022 para cá, eu consegui me aproximar de produtores do Underground que estão nessa a muito tempo e que acreditam demais na força da nossa música e da nossa arte. A partir do momento que eu me junto com essas cabeças, muita coisa boa tem surgido, e fiz a escolha de não deixar passar esse momento e não ficar buscando a perfeição em cada obra, apenas dar o meu melhor e colocar na rua, isso tem sido minha principal meta, pois nisso já consiste boa parte do meu sonho, o de conhecer pessoas do RAP e de ter boas lembranças ao fazermos música.”
Por incrível que pareça, essa visão não é tão nova assim, pois uma breve observação na história da música mundial veremos nomes como Baden Powell lançar vários discos em um mesmo ano, e outros exemplos não faltam.
E curiosamente, A Rede disco lançado pelo Mattenie com a produção do também prolífico Digmanybeats ontem dá a liga dos pontos e das linhas que tem composto essa forma de trabalho no rap nacional. Além do Digmany que lançou em parceria com Rah Lobato dois discos, temos o Mascote e o PaZSado que lançaram disco juntos, com produção do DIG. Percebe leitor, é dessa rede que o Mattenie nos chama atenção, uma rede comunitária de alianças artísticas e que está presente em diversos locais do Brasil.
-Leia a entrevista que fizemos com o Digmanybeats e os seus 30 anos de Cultura Hip-Hop
E por favor não perca o fio da meada, A Rede – o disco – chegou com 8 faixas e participações pesadas como além dos citados Mascote e PaZSado, trouxe também DJ EB, DJ Novset, Killa Bi e Cabes. Com uma sonoridade bem diferente dos trabalhos acima mencionados, com muitos riscos nervosos dos DJ’s convidados, nos mostra que a caixa de ferramentas do Mattenie é bastante extensa e ele não se repete.
O disco foi anunciado nas plataformas com um videoclipe da faixa “Zion Williamson”, filmado pelo mestre Jean Furquim, com edição do Alfredo Piñata e atuação do especialíssimo ator Iuri Lucas. Já apresenta muito fortemente o tipo de sonoridade classic 90’s mind, que Digmanybeats cozinhou nos beats, assim como as temáticas já apontadas que são os dardos poéticos lançados pelo Mattenie.
Ouvir produções como “Qual foi, tio?” balança até a medula do malandro ou da malandra, e veja, quer dizer ouça o flow que o MC lança nessa, se liga na intervenção do DJ EB “mediunizando” o Sombra na faixa… Outra cortesia da fornalha do Digmanybeats, os dois drumless: “7KM as 7AM” e “Terminal” como camas melancólicas onde Mattenie, PaZSado e a braba Killa Bi realmente “versam” com um nível altíssimo. Encerrando o disco e pelo que se sabe o ano de lançamentos grandes do Mattenie.
Agora, caro ou cara leitora que chegou até aqui, só lhe resta ouvir, e tecer você também a sua própria rede, ouvindo os outros artistas que participam aqui, vendo os vídeos de outros tantos artistas que já passaram pelo Feat Saci. Aprenda a pesquisar, e sobretudo traçar você mesmo as suas linhas, para além do que querem os algoritmos!
-Mattenie com 3 produtores e um ano grandioso em lírica, flow e batidas!
Por Danilo Cruz