Os MC’s Matheus Coringa e Galf AC juntos ao produtor Noshugah soltaram o EP Repulsa, um ato político do under!
Matheus Coringa e Galf AC são dois dos MC ‘s mais prolíficos do cenário atual, fechando um trio com o jovem produtor Noshugah que assina todos os beats do EP Repulsa, os caras soltaram um pequeno grande trabalho composto de uma intro e 6 faixas. Em tempos onde o capital determina o que se fala, o que se produz, as relações e tudo mais que está ao nosso redor, EP’s como Repulsa demonstram a aversão necessária a esse modo de ser em pleno capitalismo cognitivo e de neoliberalismo extremo.
Na abertura do EP Repulsa, o mano Noshugah criou uma introdução que serve de chave de interpretação para compreendermos alguns aspectos importantes desse trampo e sua relevância no cenário underground e da cultura hip-hop nestes estertores do século XXI. Atualmente o rap mainstream respira muito mal no que tange a criatividade e neste sentido a tríade de artistas presentes neste trampo tem muito o que dizer, mesmo que indiretamente.
Houve um tempo em que se entendeu de modo canhestro que o rap só poderia falar sobre política, desigualdade racial e temas que analisassem as questões sociais em nosso país. Durante décadas, o rap de certo modo não era considerado música em nosso país, excluído das revistas de músicas da classe média branca universitária e muitas vezes visto meramente como fenômeno sociológico pela grande mídia. Este cenário mudou gradativamente de na virada da primeira para a segunda década do século atual. A partir de 2015 o rap passou por um imenso boom sendo incorporado gradativamente pela indústria cultural.
Longe de haver minimamente uma harmonia entre as diversas formas de produção e subgêneros do rap, o que houve historicamente em nosso país foi uma passagem abrupta do rap consagrado dos anos 90 para o trap da segunda metade dos anos de 2010. Apesar da imensa pluralidade do que é produzido em nosso país desde sempre, o fato é que o mercado produziu um recorte entre um tipo de rap repetitivo a exaustão em termos temáticos e sonoros, e uma pequeníssima vitrine para alguns poucos nomes que rompem com esse modo, uma espécie de cota criativa.
“Não serei extorquido, tão pouco esquecido / Profetas armados vencem, sem armas são destruídos” Matheus Coringa – Santa Morte
É diante desse cenário onde a indústria cultural domina e hegemoniza os modos de fazer do rap nacional, que o atual trabalho lançado por Matheus Coringa, Galf AC e Noshugah se coloca como um ponto potente e resistente de aversão, de verdadeira Repulsa ao fazer do rap de mercado e às ideias que são veiculadas a partir daí. Os milhares de beats trap falando em placo, em balão, em buceta todos exatamente iguais, são mostrados naquilo que são mesmo que os artistas não se refiram explicitamente a eles. O discurso meritocrático, as ideias de um liberalismo chucro e porque não o machismo muito presente em certas expressões do trap, são rebatidos aqui pela sujeira do boombap.
A intro de um Mariguela alvejado e morto enquanto fazia sua transmissão – referência direta ao Racionais MC’s – encontra no verso de Matheus Coringa citado acima, sua explicação. No mercado musical que não tem capital samba, que não tem investidor sangra, e quem rompe com o modo de produção das fórmulas e do marketing digital tende a desaparecer. Porém, o underground resiste e está longe dessa oposição infantil entre trap e boombap, pois sabe que não se trata meramente de subgêneros, senão de uma indústria que precisa docilizar um e invisibilizar o outro para gerar os lucros que almeja.
Neste sentido, o boombap underground sujeira dos atores aqui em questão mas também de diversos outros e de outros subgêneros do rap, seguem resistindo e provocando pequenas contra efetuações, que em Repulsa encontram um excelente ponto de convergência. Movendo as pequenas manufaturas do underground contra as grande big techs do rap mainstream. Em outro momento do EP Coringa se compara a um mero proletário, o que nos mostra qual o tom da lírica que os caras mobilizam para o disco.
“A ganância cobra caro, não é prata nem é ouro / Sobrevivendo no inferno, castelando habilidoso / Kardecista honrou na pista, na corrida ouroboros / Se tu lutas tu conquistas, nós na fita zera o jogo” Galf AC – Cataclisma
A sequência de pílulas azuis rimadas e ritmadas são sempre pesadas e sujas ao longo das faixas, e não é difícil para o ouvinte atento entender o jogo que os dois MC ‘s promovem em cima das batidas. Ao longo das faixas temos duas líricas que se complementam de modo bastante harmônico em suas dissonâncias. Dois baianos, um de nascença e outro nascido e criado na CBX. Enquanto Galf AC investe em linhas que retratam a vida, a vivência – palavrinha fora de moda – de homens negros em um estado genocida através de uma ética afrocentrada, Matheus Coringa elabora critícas ácidas e iconoclastas a ideias sobre economia política.
Como complemento sonoro à dupla temos Noshugah produzindo beats que bebem de certo modo na tradição noventista atualizando os temperos e utilizando o que de melhor nós temos atualmente em termos de produção. Os recortes, os samples, as texturas, são aulas e criam climas sonoros onde o “ouroboros” de Galf se harmoniza com a vida loopada de Coringa. Uma verdadeira aula de parceria onde as bases sonoras do Noshugah nos mostra que no pseudo gênero estagnado do Boombap segue tão vivo como sempre estiveram, e que é o Trap mainstream quem incorpora uma espécie de criação “the walking dead”.
Pode parecer que existam compartimentos estanques entre os MC’s que esmerilham temáticas sujas sob os beats do Noshugah porém o diabo sempre mora nos detalhes. Se a oposição que estabelecemos acima é uma constante há também fugas, e diferenças se colocando nessa divisão. Na parceria entre esses dois anarquistas do mic, há pregações pela morte do papa e da santa igreja, assim como esclarecimentos sobre o que foi a lava jato para o nosso país por parte de Galf AC, enquanto fica a cargo do Coringa a descrição das suas próprias vivências under de sexo drogas e política, como na faixa “Fumaça do Papa”.
Afinal, o sobreviver no inferno tece histórias próprias e neste sentido dois infernos, ou melhor, três se tocam e produzem uma Repulsa muito potente contra a indústria o status quo que vivemos atualmente. São pecadores poetizando pecados, lírica e sonoramente, são artistas que cultivam a Repulsa não de modo reativo, senão como modo de ser e de fazer dentro do rap nacional. Matheus Coringa, Galf AC e Noshugah nos entrega um trabalho que desde a capa nos impulsiona para frente no combate.
A arte primeiramente chega para o ouvinte em tempos de internet é a capa, a imagem, e neste sentido é curioso que muitos ao tomar contato com a capa, achem ela bonita, mas não tenha assim tanto interesse em buscar. Há uma dessensibilização em curso para tudo que remeta para além da aparência, e em tempos de revolucionários de internet, de camisas de Che Guevara nas lojas de departamento, tudo fica mais difícil. O artista que criou a capa de Repulsa, @bypdvrx fez um excelente trabalho ao samplear o Cildo Meireles.
O artista plástico e escultor Cildo Meireles, de certo modo, inspirado na Pop-Art de Andy Warholl e no Ready Made de Marcel Duchamp, produziu uma série de garrafas de Coca-Cola retrabalhadas no projeto “inserções em Circuitos Ideológicos”, que consistia em retrabalhar essas garrafas inserido diferenças em seu conteúdo. O processo criativo de Cildo Meireles gravava informações e opiniões e até receitas de coquetel molotov em garrafas retornáveis. Mensagens essas que só eram compreendidas quando a garrafa estava novamente cheia, pois ele usava tinta branca vitrificada.
A capa de Repulsa, repousa sobre essa política de criação e envelopa muito bem um dos melhores EP’s do ano em um rap nacional cada vez mais rendido – no mainstream – a políticas reacionárias, a meros produtos descartáveis. Escute…
-Matheus Coringa, Galf AC e Noshugah na potência da Repulsa
Por Danilo Cruz