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Mateus Fazeno Rock é muito hip-hop, rock, reggae e funk em Jesus Ñ Voltará

Mateus Fazendo Rock

Em seu segundo disco o artista cearense Mateus Fazeno Rock, se afirma como um dos mais importantes artistas negros de sua geração!

“A consciência me estimula e eu avanço”  Mateus Fazeno Rock (As vozes da Cabeça)

Mateus Fazeno Rock é um jovem nome da música brasileira que tem se constituído como uma ilha estética para além do ecletismo fajuto e do requentamento de referências cult. Como o próprio artista disse em entrevista ao programa cultura livre, “a essa altura do campeonato, não há porque não nos permitimos nos deixarmos afetar pelas diversas sonoridades que atravessam as nossas periferias”. Sobretudo quando entendemos que todas elas – em termos de música pop – são frutos da diáspora negra e possuem uma raiz comum.

Das favelas brasileiras sempre emergiram artistas dos mais diversos estilos musicais, do metal ao rap, do hardcore ao funk, do samba ao jazz. O entendimento, a compreensão de que a música preta é uma expressão das diversas vertentes musicais no século XX, tem levado um nova geração agora no século XXI, a incorporar e a se reapropriar desta herança. De Living Colour à Johnny Alf, da força dos blocos afro, do maracatu, do rap, do house, têm nascido artistas interessantíssimos em nosso país, que apontam para um hibridismo criativo muito singular.

Se o segundo disco é um grande desafio para artistas que despontam bem em suas estréias, Mateus Fazendo Rock não se atentou para essa maldição e apresenta um trabalho diferente do primeiro. Se prova como um cantor e compositor, além de instrumentista, dos mais importante para as novas gerações, abrindo uma caixa de ferramentas muito rica e apresentando domínio pleno destas.

Em seu segundo disco, o artista cearense Mateus Fazeno Rock expande as trilhas criativas mudando as coordenadas apresentadas em seu disco de estreia: Rolê nas Ruínas (2020). O seu rock de favela permanece incisivo, porém em “Jesus Ñ Voltará”, que chega à luz três anos após a estreia, ele amplia o seu território criativo. E para tal constrói uma visão sobre negritudes, sobre jovens negros presos em estruturas, em ideias e ações que o supremacismo branco tem desenvolvido com sucesso para o nosso enfraquecimento e extermínio. 

O título do disco já avisa que não há nenhum nível de falsas esperanças no que tange a redenção do povo negro. Em um período de franco crescimento e em certos níveis até de hegemonia neo pentencostal nas nossas favelas, Jesus Ñ Voltará do Mateus Fazeno Rock, dialoga com esse estado de coisas de maneira iconoclasta. Não há porém, nenhum apelo anti cristão, senão uma crítica que passa pelas músicas de modo subrepticio à noção de que nossos problemas enquanto povo negro encontraram resolução na volta do Cristo.

O disco já abre os trabalhos com a recusa a se resignar pela volta de Jesus, o título do álbum de certo modo é a base sob a qual tudo o mais irá devir, na mesma medida em que se nega uma ilusão metafísica. Não há um ser sob o qual Mateus Fazeno Rock irá se prostrar e isso não apenas em termos metafísicos como sobretudo sonoros. A faixa homônima conta com versos ironicamente agressivos da Jup do Bairro, revelando o fascismo subjacente ao paraíso fascista – que nega a diferença – assim como a impossibilidade da fé monetária de tratar problemas sociais. 

Jup do Bairro em foto por Felipa Damasco e Cai Ramalho

Música de abertura e porque não – temática – do álbum, apresenta o rock de favela ao ouvinte com guitarras do próprio Mateus junto a Agê que se coliga com Caiô no beat, nos synths e sirenes. Aqui, Mateus Fazeno Rock introduz sem falsas esperanças de dias melhores a ideia de autodestruição que percorre e estrutura nossas favelas, algo que ele vai desdobrar ao longo do trabalho. 

 

“Avua, Meu Filho Querido” 

Ao longo das faixas existem muitas camadas que de algum modo vão se entrelaçando de modo que as músicas conversam entre si, tematicamente. Segunda música do disco, “Pode Ser Easy” é uma balada potente onde Mateus reflete sobre a necessidade de sair do seu território com sua arte, ao mesmo tempo, em que descortina os diversos afetos que atravessam corpos negros nas periferias. Há também um pensamento ético atráves das imagens poéticas construídas pelo artista: “Se me fazem mal, não aceito como algo vital”. 

Pode até ser fácil, mas a aterrissagem exige prudência e uma visão minimamente critica que harmonize as dores e as alegrias: “sorrir,ruir”. A faixa traz uma banda afiada com o baixo de Marcus Au Coelho, piano Rhodes do Agê e beat do Nego Célio, além dos dois guitarristas acima citados. A participação de Mumutante complementa a faixa com um spoken world bonito. 

Entre o funk e o trap no beat da dupla Agê e Caiô, traz o Mateus Fazeno Rock em composição dividida com Big Léo, a música traz uma perspectiva mais hip-hop ao denunciar a violência policial, a falta de oportunidades para a juventude negra. “Pose de Malandro/ Me Querem Morto” é um daquelas faixas que fariam os adolescentes velhos do rap nacional corar, dada a profundidade do discurso, das rimas e a da própria construção musical da faixa. 

As 13 faixas que compõem Jesus Ñ Voltará vão pouco a pouco cartografando afetos, desgraças, perdas, memórias, micro e macro políticas que lutam contra quaisquer idealizações. Há neste novo trabalho de Mateus um pragmatismo da ação derivado das suas experiências que é transmutado em poesia e música e que o situam como uma importante voz no cenário da música brasileira contemporânea.

Utilizando diversas técnicas ao longo do disco, a faixa “Nome de Anjo” é um storyteller que o inscreve dentro desta tradição amplamente cultivada dentro do rap, como um dos mais belos exemplos. Amizade, desencontros, linhas de vida que se cruzam, se conjugam, se separam, findam, sobrevivem, são lembradas. A simplicidade e a competência com que Mateus canta essa faixa é comovente e para nós a transforma em um dos pontos centrais do disco. Não seria exagero dizer, que de certo modo as outras faixas giram em torno dela, dado o seu caráter documental.  

Pense por exemplo se a criança que é retratada em “Melô de Aparecida” não poderia ser o personagem descrito em “Nome de Anjo” ou ainda na faixa de abertura pela Jup do Bairro? Entre tragédias e lutas de resistência, Mateus Fazeno Rock não compõem um simples binarismo, que esteja abençoado pela moralidade cristã, mas antes nos apresenta um território onde os dois pólos são alvos constantes das políticas de estado. 

Em “Pôr do Sol Marrom” uma outra balada – dessa vez curtinha – o artista cria imagens muito bonitas dos “meninos cor de vinho” que precisam segurar os guidões nas curvas que fazem pelos becos e vielas de nossas favelas. Traçando desta forma uma visão trágica e realista da atual situação de nossas comunidades adoecidas, o cantor e compositor cearense produz um disco que não será muito bem recebido por quem é esperançoso no sentido de renegar as diversas formas de políticas de extermínio da supremacia branca brasileira, a esquerda e a direita. 

“Eu posso pensar um pouco menos, baixar os olhos no meu abismo e dizer que vai dá bom, nois vai se curar e vai ser massa lá na minha casa, lá na tua casa. Mas o outro nóis, o nóis maior, vai continuar errando, sonhando com merda, cheirando a merda e vivendo na merda. Não tem pausa. Essa porra não tem pausa.”

A potência de uma poesia como “Feito Um Porco Indo Pro Abate” deixa tudo muito escuro quando se trata de falar sobre “nós” enquanto povo. A hipocrisia que reina atualmente nos discursos dos vencedores da música periférica não pode suportar essa verdade, pois não é lucrativa, não se faz confortável a alimentar suas ilusões e discursos e palavras de ordem marqueteiras. A egolatria tão bem alimentada pelos elogios ao capital recebe de Mateus uma cacetada com um barrote de quatro quinas em um simples recitar dessa poesia. 

Está tudo no lugar correto dentro de Jesus Ñ Voltará, o tema racial e de classe decorrendo um do outro através de suas músicas e de suas imagens poéticas que ao mesmo tempo abrem mão de clichês e de qualquer forma de didatismo. É poesia de alto nível e se coloca muito bem, seja quando Mateus faz rock, rap, funk, reggae, não importa, a música periférica e afro diaspórica – tautologia – é sempre muito bem dominada fazendo-se meio através do qual a poesia combativa do disco flui. 

Em “Indigno Love” Mateus se junta a uma outra artista que rompe ao seu modo e com suas próprias pautas com essa hipocrisia acima mencionada. A convidada é a Brisa Flow, outra artista como Mateus múltipla em suas formas de expressão, e juntos historicizam os privilégios da branquitude construídos com o genocídio dos povos originários e dos negros, trazidos para serem escravizados e mortos aqui em nosso país. 

“tá indigno o job

tá indigno o lovesong 

lovesong lovesong lovesong

lave o sangue”

“Compete a função fabuladora inventar um povo” Gilles Deleuze

As formas de adoecimento produzidas pelo capitalismo são abordadas nas faixas “Da Febre e Só Suor e Lágrimas”, esta última com participação da MC cearense Má Dame. As existências que resistem às febres que o socius produz ao inflamar os nossos corpos e subjetividades, a “busca por virar o jogo”, e a necessidade destas mesmas mentes e corpos não pararem de produzir arte. Como um agrimensor de si mesmo – “Meu corpo é meu próprio terreno” – Mateus Fazeno Rock segue a linha tênue entre saúde e doença. 

Nesse seu delírio o artista cearense passa uma máquina de terraplanagem com sua arte, abrindo espaço para o ouvinte refletir sobre a necessidade e a emergência de uma consciência racial e de classe capaz de se furtar e sobretudo resistir, lutar contra as formas de dominação de nós enquanto massa. O reggaezinho “Rezo” é uma breve oração, a qual se segue “Vontade Nego” onde o Mateus canta sobre as vontades de autodestruição e as ameaças de morte externas dentro de nossas favelas, outro tema que é recorrente ao longo do disco. 

De palmas e coro, o disco se encerra com “Da Noite” nos dando uma impressão de ajuntamento dentro da favela, onde amigos fazem um som, cantam na pracinha onde o Mateus se trombo com o seu amigo que já partiu. A alegria encerra o disco, porém uma alegria potente o suficiente para reconhecer que não há vencedores e sobretudo que os ventos que nos cortam pelas quebradas estão prenhes de ensinamentos dos nossos mais velhos e mais velhas. 

Jesus Ñ Voltará é “encatoamento”, palavra inventada pelo Mateus Fazeno Rock, para nos dizer que os nossos lamentos podem e devem nos encantar, e isso sim, viralizar formando um povo que hoje nos falta, pois não haverá segunda vinda e nós não queremos morrer para viver em um paraíso que não nos cabe!

-Mateus Fazeno Rock é muito hip-hop, rock, reggae e funk em Jesus Ñ Voltará

Por Danilo Cruz 

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