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Matéria Prima é uma ave rara sobrevoando o mar do Hip-Hop Nacional, Rasante (EP)!

O MC mineiro Matéria Prima em parceria com o produtor Cizco acaba de soltar o excelente EP Rasante, um sobrevoo pela mediocridade!

capa por @fralvez

“Eu tenho um diamante lírico, tem quem tem tudo e vive abaixo da linha da pobreza de espírito”

Sempre inspirador, carregando a poesia em sua vida e com sua generosidade nos levando a ver a potência com que resiste em suas caminhadas. Produzindo olhares, signos imagéticos pelas ruas de BH, ou conteúdo lírico em seus momentos de introspecção poética, Matéria Prima lança Rasante (2024) com a produção do também mineiro Cizco. Composto por 4 faixas, o EPzinho é um recorte muito bem feito deste movimento de vida que o Matéria Prima segue imprimindo ao longo de mais de 20 anos de carreira no rap nacional. 

O que possuímos hoje em termos de Mainstream no rap nacional, não comporta o artista mineiro, pois o temos em geral é um punhado de artistas, homens e mulheres que possuem muito pouca coragem artística e se comprazem em rimar ou chavões antiracistas, antimachistas ou em fazer uma forte defesa da meritocracia. Essa tríade tem dado o tom da maior parte dos discos e projetos dos nomes mais consagrados do rap nacional. Em certa medida o nosso mainstream se transformou em um imenso “coach music”, ou quando muito, em letramento racial para baixinhos. E é neste sentido, que o MC mineiro Matéria Prima subverte sempre o esperado. 

Uma vez que como regra o público não sabe de antemão o que quer ouvir, sendo o papel do artista produzir o novo, aquilo que não sabíamos querer até ouvirmos e sermos formados – o gosto – e levados a viajar nos sons, nas palavras e nos sentidos dessa junção, Matéria Prima segue inovando. Muito acima da média do que [é] sucesso, o MC mineiro segue se transformando [devir] através de sua poesia. 

Desta vez ele se apresenta como um animal, sobrevoa nossas vidas com movimentos complexos de rimas e batidas, nos carregando em seu colo poético para longe do “mar de lama” que se instaurou com maior vigor no mundo atual. Com um flow leve, quase levítico, apresenta-nos um EP que com a produção do Cizco alcança esse lugar de arte suave apesar da acidez de uma postura que destoa e embaça a visão turva de quem percebe a realidade de óculos 3D produzidos em larga escala. Nos fazendo pensar no quanto há de falsidade e ideias tortas quando ouvimos grande parte do mainstream.

Ao invés de “representar”, a arte do Matéria Prima segue se diferenciando e com isso sem conseguir ser capturado pela indústria como mais um produto, apenas. A tal da representatividade nunca conseguirá fugir ao que é o seu destino: ocupar espaços da branquitude sobre as regras da mesma, tendo toda a sua potência reivindicatória plastificada, pasteurizada, mediocrizada. É até engraçado como a arte do Matéria Prima nunca reivindica, não possui nenhuma grama de ressentimento, ostentando sempre uma altivez digna de reis. 

Afinal, o regime de representação não comporta a diferença, apelando sempre ao bom senso e ao senso comum, empobrece e exaure as necessidades que uma cultura como o Hip-Hop almeja. Desta forma, a realeza da arte do Matéria Prima, se mostra como pleno e “acima” do mero rapear, é Hip-Hop. Pois podemos perceber, porque apenas o rap foi abraçado pela Indústria Cultural Supremacista Branca no mundo. 

Ninguém respeita o grafite feito para decoração, que é o que se tornou o rap nacional do mainstream. O Breaking dance segue sendo um espetáculo proporcionado apenas por quem cultiva esta arte e não por aqueles adeptos às dancinhas da moda.Os DJ ‘s seguem sendo desvalorizados no cenário do rap, onde progressivamente são substituídos por colocadores de música, que são os atuais MC’s ao transformar em música os clichês sonoros aguardados.

Fora deste cenário, existe o mundo abissal do underground, que hoje são os verdadeiros artistas a produzir uma expressão genuína do rap nacional. E neste ecossistema escondido da maior parte das pessoas está o grande Matéria Prima. Uma ave rara, um MC com mais de duas décadas de caminhada, diversos trabalhos e projetos que sempre primaram pela excelência poético musical. Sua discografia e história contradizem o que os meritocratas ostentam, o seu trabalho demonstra como o lazer de muitos, ou o trabalho porco acontece nas melhores empresas. A artesania nunca perderá sua força diante da linha de produção. 

foto por Samuel Mendes

Enquanto muitos se comprazem em produzir em escala pop fordista – aqui não falamos apenas de quantidade – produtos iguais e muito adequados a lógica capitalista, o underground produz em modo manufaturado uma série imensa de produtos artisticamente brilhantes, de norte ao sul do país. E dentro desse contexto, Matéria Prima dá aulas, mesmo sem investidor, sem gravadora, o artista mineiro segue uma linha incorruptível com uma arte complexa e leve. Suas rimas são imediatamente fruto de sua lida com a vida, por mais lapidadas e refletidas que sejam. 

Os ataques promovidos pela indústria cultural supremacista branca em nosso país no que tange a cultura Hip-Hop, tem sido a cada dia mais perniciosos. A promoção de atores muito abaixo da mediocridade artística, conquistando a atenção de milhões de pessoas com algo impossível de ser chamado de arte, pois apesar de conter rimas e batidas, nunca alcançam a poesia. O entretenimento é a tônica atual, mesmo quando gritam seus chavões antiracistas! 

Festivais promovidos por empresários brancos que além de promoverem line-ups que não se sustentam por qualidade, mas antes são montados pelos números alcançados por uma máquina corrupta de compra de views e investimento algorítmico. Tem contribuído para a criação de um senso comum empobrecido do que seja o tal do Rap Nacional. O gosto como produção social, tem a sorte de se bater com a obra do Matéria Prima, pois apenas o paladar desenvolvido é capaz de absorver o sabor de sua arte. É sem dúvida alguma, um rap feito para pessoas que já saíram da imaturidade, que não compram mais ideias prontas, que apreciam o labor de um artista que é gente como a gente. 

A imagem aqui, não quer fazer nenhuma espécie de apologia da precarização, da pobreza, mas por outro lado é preciso ter consciência de que a pobreza é a riqueza do mundo. Em nosso país, pelo menos, não é possível pensar em um poeta deste quilate que possui o Matéria Prima fazendo sua arte andando de Porsche ou descansando à beira da piscina. Talvez nos EUA, isso seja possível, aqui nem Chico Buarque esteve nesse patamar; Preto e dinheiro nunca serão palavras rivais, são e deveriam ser na prática complementares, mas os exemplos pragmáticos que temos dessa união atualmente contradizem nossos desejos!

Como essa hipótese não pode ser comprovada, nos resta analisar o que temos aqui e agora em exemplos líricos e rítmicos. A exaltação lírica que Matéria Prima promove em cima do beat do Cizco, que cadencia o beat inserindo efeitos e um baixo groovado, nos leva exatamente nesta direção. Os obstáculos políticos e sociais vistos como meros efeitos práticos a serem superados pela consciência e por uma prática poética do que é o real, entende a necessidade de perceber as diversas camadas em nossa realidade, e com isso imprime uma escolha que o faz sobrevoar afirmando a vida em toda sua plenitude.

Já nessa primeira música Matéria Prima nos mostra como ele escolheu aquilo que não está posto, entendendo todas as ambiguidades presentes nas escolhas. “Albatroz” é uma daquelas pequenas pílulas musicais que reverberam para o infinito, quase como uma página aberta ao acaso do Minutos de Sabedoria. O primeiro remix do Cizco na faixa “Vida”, lançada originalmente no EP Material de Estudo em 2012, mostra o esculacho de um MC com uma música de 12 anos atrás e ainda assim mais pertinente e artisticamente atual do que 90% do que é produzido hoje!

Ps: O EP Material de Estudo de 2012 não está no Spotify e se você é antigo e quer baixar aqui

-Leia nossa resenha sobre o EP Material de Estudo do Matéria Prima no site!

O poeta é sobretudo um mentiroso, e aqui Matéria Prima coloca isso em prática de modo brilhante, iluminando nossos caminhos para continuarmos na luta da vida, entre os acordes do piano do Cizco sampleando bonito. E a mentira aqui é exatamente o alvo poético no qual o próprio encontrou o seu farol. É bonito que só, é um exercício que nuuuu, nos leva a risos e nos cala fundo ao ouvir de preferência de fones e no escuro, mas que funciona muito bem andando pela cidade, mas que não reprime os risos ao final, cuidado para não ser tirado de louco. 

A simbiose entre o beatmaker Cizco e o MC Matéria Prima é muito importante de ser notada também. Em “Fora do Grid” outra pedrada contra a hipocrisia e os maus costumes, que se repetem em nossos cotidianos e que podem nos aprisionar e adoecer. Note-se como Matéria Prima trata os temas tão em voga de modo interseccional, mas nunca e em hipótese alguma com a pobreza lírica e a visão estanque dos estúpidos. Prova de sua genialidade é a forma como Matéria Prima se diferencia sempre em suas repetições, ou ainda, como nos leva a nos diferenciarmos – aqui no caso – diante dos loops da vida. 

O produtor Cizco

No segundo remix do Cizco, o beatmaker opera uma invenção que muito me tocou ao colocar o synth pulsando entre as batidas do remix, como um coração. A faixa “Pra Frente” lançada originalmente na mixtape “Rascunhos de um Momento Conturbado” é uma música onde o Matéria Prima reflete sobre o fim de um relacionamento e a vontade de buscar reatar e isso é um em si mesmo que o artista tem consigo. Mas ainda assim, nos comunica como uma espécie de diálogo compartilhado!

-Leia no site nossa matéria sobre a Mixtape Rascunhos de um Momento Conturbado do Matéria Prima e DJ Lotek

Porém, é possível também interpretar a faixa como um pensamento sobre a necessidade de estarmos em paz com a nossa solidão de modo geral, não apenas em termos amorosos. Em tempos atuais onde a conexão total e as formas de relacionamentos se conflagram cada vez mais em termos líquidos, estarmos pleno e conscientes de que somos sempre sozinhos é fundamental para que criemos uma empatia diante do mundo e com isso nunca padeceremos da nossa condição de sermos no fim das contas solitários. Apesar de sermos animais políticos e não podermos sobreviver sozinhos, o nosso ethos precisa comportar a necessidade de que nos bastamos a nós mesmos, assim como por óbvio estarmos atentos com quem podemos contar. 

Com “Albatroz” Matéria Prima e o Cizco nos entrega um trabalho muito bonito e inspirador – mais um – para nos iluminar trilhas e nos levar a criar a leveza necessária para sobrevoamos não apenas a mediocridade atual do cenário do rap nacional mainstream, mas sobretudo no social!

-Matéria Prima é uma ave rara sobrevoando o mar do Hip-Hop Nacional, Rasante (EP)!

Por Danilo Cruz 

 

 

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