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Mascote e Dr.Drumah lançam o disco Jornada Dupla, safra envelhecida em HD de ouro!

A união de Mascote e Dr.Drumah por pouco não ficou perdida em HD’s queimados, mas nos prova que a arte não possui tempo!

Jornada Dupla é já uma parte da enciclopédia do rap nacional!

A história de “Mascote du Contra” é de uma excelência indiscutível dentro da não história do Rap Nacional. Ora, por que não história? Simples meu caro consumidor de música, se houvesse de fato uma história elaborada sobre a história do Rap Nacional, Mascote teria o reconhecimento de uma carreira brilhante e essencial para o entendimento dos últimos 24 anos do rap nacional. Tendo feito parte de dois grandes grupos fundamentais para o desenvolvimento do rap e da cultura hip-hop, segue como um ilustre desconhecido de grande parte dos idiotas que hoje compõem tanto o público como a “mídia” do REP. 

Nadando contra a maré das modas e construindo uma caminhada enquanto MC da Cultura Hip-Hop, Mascote fez parte do fundamental Contra Fluxo. Grupo fundado em 2003 e composto também pelos DJ’s Big Edy e Willian, e pelos MC’s Mascote, Munhoz, Rodrigo Ogi e Deja Vu. O grupo lançou dois discos que são indispensáveis para entender o rap underground nacional (aqui tomado como concepção estética e não como termo de posição na indústria cultural): Missões e Planos (2005) e SuperAção (2007). Se tivesse ficado por aqui, já seria nome obrigatório ao se falar da nossa história.

Inquieto, participou de um dos grupos mais importantes para o pouco conhecido Rap Jazz nacional, o clássico Primeira Audição. Formado por Gelleia, Rato Fritz, Omig One (Mental Abstrato) nas rimas e batidas e os produtores Calmão e DJ Soares, os caras lançaram dois plays sensacionais: A Primeira Audição é a Que Fica (2006) e Muito Antes de a Gente Chegar (2017). Perceba, caro leitor, aqui temos já um MC em dois projetos originários dentro do cenário, mas ainda assim, um ilustre desconhecido. 

No entanto, Mascote ainda soltou plays solo com Eu (2013), singles em coletâneas do Dj. Caique e de Gori Beatzz e o EP Ligue os Pontos (2023) com seu parceiro de Contra Fluxo Deja Vu, que são discos excelentes da boombapzera under. Portanto, nos parece que essa breve listagem comprova as duas ideias aqui presentes: a ausência de uma história do Rap Nacional e como consequência e por questões também de mercado, a formação de um público idiota de meros consumidores, assim como de uma mídia que se compraz em reificar esse cenário estúpido. 

-Leia também nosso artigo 5 Grandes Discos do Jazz Rap Brasileiro que você precisa conhecer!

Mas, temos também em Jornada Dupla, um dos mais importantes produtores do cenário nacional que também é um ilustre desconhecido dos consumidores do Rap Nacional. Dr. Drumah aka Jorge Dubman é comprovadamente dono de uma discografia fundamental para quem curte produções onde samples e batidas alcançam o status de pinturas, construções quase pictóricas de paisagens sonoras. Já escrevemos anteriormente sobre o quanto Dr.Drumah é um real mestre vivo, no auge de sua produção como produtor e como baterista e band leader. 

Sim, é isso mesmo que você leu. Antes do Dr. Drumah, temos o Jorge Dubman. Um dos, senão o melhor baterista de reggae (Dubstereo) e afro-beat (IFÁ Afrobeat) do país, recrutado por exemplo, recentemente pela cantora Céu para o seu projeto de música jamaicana. Essa formação orgânica do Jorge Dubman, só vem a locupletar o seu trabalho como produtor assinando como Dr.Drumah, e a pesquisa insana que ele empreende desde a adolescência quando se trata de música afro-diaspórica. 

Com uma discografia imensa, de discos instrumentais como os brutais 90’s Mindz e Drumahmental, lançados no mesmo ano – imagine aí? – que são verdadeiras perólas em um mar de mesmice quando se trata de produções de beat. Ou ainda, os deliciosos The Confinement, Vol.1: Africa (2020) onde através de colagens, samples e batidas retiradas do seu precioso acervo de discos da música africana, o mano produziu um disco completamente fora da curva, com a participação do MC do grupo Black Jesus Experience, Liam Monkhouse aka Mista Monk. Que se registre que não existe similar na discografia de beattapes nacionais. 

E, para que se prove o ponto acerca da força orgânica do digital Dr.Drumah, temos o Nu-Konduktor (2021), onde o analógico e orgânico servem ao propósito da criação de batidas, sem no entanto parecer um disco de música instrumental, apesar de sê-lo também. Essa zona de indeterminação de um Sem Condutor se refere a utilização de trechos de gravações guardadas ao longo dos seus mais de 30 anos de carreira que ele utilizou para montar o corpo do disco. E daí, chamar diversos outros instrumentistas para preencherem com suas próprias substâncias as faixas e o resultado é mais um excelente álbum.

-Leia também nosso artigo sobre o mestre Jorge Dubman aka Dr.Drumah 

Ora, em um país que não reconhece os seus músicos, que os pseudo admiradores de música nunca sabem quem está tocando em um disco do “seu artista favorito”, figuras de excelência como Dr.Drumah aka Jorge Dubman serão ilustres desconhecidos não apenas da manada que chamam grande público como de muitos que são “comunicadores”, “produtores de conteúdo”, ou até mesmo daqueles que se consideram jornalistas musicais. E isso também passa, senão atravessa a não história do Rap Nacional.

O disco Jornada Dupla (2024), fruto da ligação entre Mascote e Dr.Drumah que nos remete ao tempo do Primeira Audição, ao seu modo e de forma bastante incisiva discute tudo isso acima exposto. A degradação pela qual a cultura hip-hop vem passando no seu elemento Rap, hoje o queridinho rendido pela Indústria Musical supremacista branca. Ora, enquanto público e mídia esperam discos do Racionais MC’s e reverberam qualquer fala vulgar do Emicida como as únicas coisas dignas de atenção, o Rap segue a dupla via de produzir com excelência e de visibilizar apenas ou quase sempre a mediocridade. 

“Uma batida nervosa, o verso mais sujo, sem subterfúgios, o nosso refúgio” 

É curioso como o neoliberalismo que é a tônica do Capitalismo tardio se infiltrou até a medula de muitos que fazem parte da “cultura Hip-Hop” e do Rap. Em termos musicais, um aspecto que compõe o rap, a batida e a rima que deveriam ser a base da apreciação se transformam em: um tipo de batida e uma forma de rima. Me explico: o Rap é por definição um campo onde diversas formas de batidas e de formas de rimar constituem sua história, mostrando-nos a riqueza inventiva afro diaspórica em termos rítmicos e líricos. No entanto, em nosso país, a pobreza no debate público acerca do rap, leva muitos a falarem uma coisa que destoa completamente da história do Rap: “Rap de Verdade”.

Esse triste jargão, que representa a falta de compreensão histórica da cultura, assim como se traduz também enquanto local de disputa mercadológica, é uma das formas onde conservadores e pseudo progressistas vivem as redundâncias de suas idiossincrasias. E em tempos de plataformização e ausência de crítica cultural, esse procedimento beira as raias da loucura. Ora, é bastante comum que o ser humano tome os seus próprios gostos e hábitos pessoais como os únicos possíveis, como normas que tendem ao universalismo. Porém, ideias como “Rap de Verdade”, “Rap de Mensagem”, “Boombap está Morto” e outros jargões que atravessam essa falsa disputa, só demonstram ignorância.

Como muito bem colocam Mascote e Nel Sentimentum na faixa que encerra o disco, o no rap se trata de encontrar um “Refúgio”, sem no entanto estabelecer subterfúgios que queiram tornar este encontro como o único possível em uma tradição que se estabelece por sempre indicar infinitas possibilidades. Cito aqui o final do disco pois em nossa leitura desta obra, o seu fechamento é o resumo perfeito tanto das ideias presentes ao longo do play quanto dos problemas que levantamos acima, frutos da audição atenta de Jornada Dupla. 

Ora, se você leu até aqui, sabe que estamos falando de um disco de boombap under, dado o histórico importante apresentado acima. No entanto, nesta forma de criação de rimas e batidas que é a de “Jornada Dupla”, que muitos querem opor ao Trap, ao Grime e ao Drill, encontramos uma afirmação de excelência de um modo de fazer e existir que não compete com sonoridades e estéticas mais novas. Sem ressentimento, sem postura de guardinha, mas, antes como bons guardiões da cultura, Mascote e Dr.Drumah mostram o seu modo de ser dentro da Cultura Hip-Hop. 

Isto nos parece muito importante, primeiro por mostrar a importância de se manter atual mesmo sem nenhuma gota de sucesso mercadológico. Segundo, porque apresenta-nos o frescor e a potência presente em uma forma de fazer, que é o boombap, que hoje concorre em números de produção com os atuais queridinhos do mercado e dos consumidores do Trap. Se trata menos de comparar do que da necessidade de ponderar e entender que não há e nunca haverá um valor maior entre uma música que está no underground e outra que está no mainstream. O debate deveria ser outro. 

E ao longo de toda essa Jornada Dupla, em suas 9 tracks, isso é debatido com a lucidez e com a qualidade poética e sonora que a dupla possui. Uma jornada dupla que já na “Intro” também se refere a uma parceria entre nordeste e sudeste, entre Bahia e SP, rompendo com a clássica xenofobia que caracteriza público e mídia do rap. Que utiliza o recorte da queridona Rochelle para mostrar que a excelência está além do fato de trabalhar em dois empregos – CLT e música.

“Mantendo a Raiz” sem se tornar mais um idiota velho e conservador que diante das contradições dos mais jovens – local importante para se pensar o Trap atual – virar um mero apontador de questões morais, como bons bolsonaristas. Da mesma forma, que respeita as caminhadas e suas tradições, mantendo uma raiz que aqui se mostra apegada ao solo da cultura hip-hop. Os riscos Dj Novset são o embelezamento radical que fecha a faixa. Essa pegada se mantém com a clareza de um verdadeiro “Nômade Urbano”, como na lírica intrincada misturando técnicas como o storytelling e uma pegada memorialista na nostálgica e atual “Do Outro Lado da Rua”. A aula aqui se trata exatamente de olhar para trás e entender o presente, e o Mascote aqui apresenta-a como uma magnificência brutal. Note-se como ele fala da juventude, dele e de outros, das fugas dos perigos, da lembrança formativa, e como coteja isso com bastante humildade como os jovens de hoje, sem generalizar e sem nenhum traço de moralismo babaca. 

Em um beat sereno do Dr.Drumah, que providencia timbres para conduzir as rememorações e avaliações que o Mascote como um real educador da cultura encadeia com excelência. “Guardião das Linhas”, Mascote não deixa a toada definhar. Há mais de 20 anos, uma daquelas faixas que servem inclusive como metalinguagem do fazer poético. O beat do Drumah nesta faixa, como dissemos acima, inclui um sample de harpa, dentro de uma cadência gostosona, que nos remete a lira como companheira dos antigos poetas. Aulas senhores, apenas isso, aulas magnas!

Com três MC’s geniais como Mascote, Pazsado e Besouro Anêmico, “Visionários” elevam o tom em conjunto, mostrando de que forma se preenche um espaço sonoro com linhas de extrema qualidade poética. Os caras desfilam no palco percussivo elaborado por Dr.Drumah, versando sobre múltiplos aspectos acerca da importância da “Visão”. Utilizando a força da poesia com flows que racham telas por onde hoje grande parte da população constrói sua percepção da realidade. 

Demorei para escrever sobre esse disco, mesmo tendo recebido antes do lançamento porque foi impossível, pelo menos para mim, não tentar sorver tudo com um mínimo de apuro. A primeira faixa que ouvi desse trampo foi “O Canhoto”, single lançado antes do disco. E putz, que porrada! Nesta música, Mascote discorre sobre o enfrentamento fundamental pela qual nós entramos nos anos do fascista eleito presidente, que trouxe à tona o esgoto reacionário sobre o qual ainda andamos em nosso país. Esgoto este que é inclusive a substância podre que construiu nossa história como nação. Racismo, machismo, fascismo que sempre estiveram aí e que receberam um período histórico frutífero nos últimos anos.

Dr.Drumah

Note-se como Dr.Drumah e Mascote não fazem um disco de Rap de Mensagem, mas trazem nas suas formas de produzir arte, diversas questões que vão da forma de construção dos beats (episteme), passam pela relação entre os artistas (ethos) e desembarcam no espaço público (pólis) de modo a nos contagiar com sensações e percepções (aisthesis). Isso é fazer rap, mas que também pode estar presente no trap, drill, grime, plug, lo-fi, house, drum n’bass ou qualquer outra forma de rima e batida, desde que feita com esmero e consciência crítica.

A música afro diaspórica não precisa ser “consciente”. Ela precisa de excelência ao que se propõe. Diversão, problematização, entretenimento ou arte. Desde que não caia e se afunde no senso comum, nas formas estandardizadas pela indústria musical como únicas formas possíveis, cópias de cópias, coisa que já aconteceu e segue acontecendo nos RAP de Verdade, quadrados, chatos e cheios de clichês. Houve um tempo no Rap nacional, onde muitas cópias dos Racionais eram aclamadas, como hoje muitas cópias do Trap Gringo são. Como estamos tentando refletir aqui, os problemas são outros.

Trata-se sempre de encarar o real em sua complexidade, em ser capaz enquanto artista de elaborar algo que de fato enriquece a vida de um povo. Como dizia o mestre Carlos Careqa: “vulgarizar o raro e rarificar o vulgo”, sem entrar em jogos elitistas e preconceituosos. De apresentar uma forma de divertir, embelezar, criticar ou enfrentar a realidade e seus problemas de um modo que não incentive o rebaixamento da experiência humana. 

Na faixa “Outro Reality Show” temos um excelente exemplo disso, em tempos onde o BBB, se torna o assunto onipresente no real e no virtual. Um programa que conseguiu fazer com que diversos extratos da sociedade debatam calorosamente uma experiência controlada e manipulada onde o pior possível, se torna a atração principal. Mascote, Dj Novset e Dr. Drumah demonstram aqui o quanto a alienação nos cerca por diversos locais em tempos de redes sociais, onde digitais influencers, subcelebridades, se tornam modelos de existência almejados tanto por pessoas que se definem como de esquerda ou de direita. 

A opção diante desse status quo decadente, desses falsos problemas debatidos, do desconhecimento histórico e de uma servidão voluntária diante das ferramentas de alienação do capitalismo tardio em uma sociedade de controle é dado na faixa “Savoir Faire”. Onde o “Saber-Fazer” é determinado dentro da Cultura Hip-Hop: obtenção de conhecimento, mas não apenas, este conhecimento de nada vale sem uma prática radical e de rua. Outra trinca pesada de MC’s, Mascote se coliga a Deja Vu e a Danilo Skrap, que dessa vez desfilam agressivamente sobre como cada um percebe esse Savoir Faire. 

E se você ouvir bem verá que o Skrap avisa e consolida o que aqui dissemos:

“De dentro da condução eu sigo canetando a vida, ciente que evolução não é estilo de batida, seja trap ou boombap, cheio de autotune ou crua, se tô com o Contra na track os maloca tumultua”  

Coda de uma Jornada Dupla: 

Sankofa é um símbolo de lembrança da história afro-americana e afro-brasileira, que recorda os erros do passado para que eles não sejam cometidos novamente no futuro. Isto é, representa o retorno ao passado para que seja possível adquirir conhecimento e sabedoria.

O novo disco do Mascote e Dr. Drumah por todos os motivos apresentados acima é um produto manufaturado com uma artesania que seguirá sendo desvalorizada e pouquíssimas pessoas terão acesso ou condições de chegar nele. Mas aqui temos um documento que por pouco não ficou relegado ao esquecimento, pois a queima de um HD por pouco não o enterrou antes que esse pudesse ver a luz do dia. Esta obra é a prova de que a boa música, aquela que não é feita para consumo imediato e descarte, sobreviverá independente de qualquer circunstância. Mesmo, em alguns momentos se referindo a um cenário que “já passou” a qualidade poética e musical faz com que essas referências habitem a eternidade com a força que apenas a arte e o pensamento tem. 

A arte não respeita o tempo do relógio, o tempo cronometrado. Ela é do campo do tempo não pulsado, da duração, da própria ideia de suspensão do tempo. A arte é do reino de Aion não do de Cronos. E nesse sentido, como ligado à construção histórica de origem expressiva afro diaspórica, remete-nos a noção de ancestralidade. Por mais que imbecis desinformados queiram contrapor trap/boombap, fazer novidade equivaler ao novo no campo da arte, a cultura Hip-Hop se alimenta desta circularidade proveniente de um passado em constante renovação. De princípios axiomáticos (valorativos) que não podem ser refeitos a cada vez, noções defasadas apenas pelo mercado como: união, solidariedade, identidade, humildade, lutas políticas anti-coloniais etc. sempre serão a base.

A cultura Hip-Hop surgiu literalmente dos escombros de moradias no Brooklyn, que utilizou a arte como forma de protesto e diversão de pessoas despossuídas e de grupos sub representados na sociedade americana. Tudo isso não mudou, seja lá ou aqui, o que nos diferencia são os mercados capitalistas e suas relações com essa cultura. O disco Jornada Dupla é um exemplo inconteste de que as raízes do Hip-Hop não cessam de pivotar, independente da Indústria Cultural Supremacista Branca. 

Mascote e Dr.Drumah, obrigado irmãos por mais esse presente!

-Mascote e Dr.Drumah lançam o disco Jornada Dupla, safra envelhecida em HD de ouro! 

Por Danilo Cruz 

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