O disco Maria Esmeralda composto por 16 faixas nos remete a um universo melodramático composto com esmero e iconoclastia!
Lançado pelo selo Sujoground, Maria Esmeralda é um disco que desde a sua composição coloca em xeque o modo de entendimento do disco. Criado pelo quinteto mágico composto por: Thalin, VCR Slim, Cravinhos, Pirlo e iloveyoulangelo, somente três deles são creditados nas plataformas. Transbordando de saída o modo de reprodução e creditação musical nos streamings, o disco é nomeado com um nome próprio: Maria Esmeralda, mas afinal de onde vem essa figura?
Há mistérios a serem desvendados em torno do nascimento e do desenvolvimento desta figura estética, muito nova e inovadora na história do rap nacional. Maria Esmeralda é um disco de feitura complexa mas de audição suave, leve, que passa-nos ao longo de suas 16 faixas em pouco mais de 38 minutos, dando-nos muito a pensar. Um disco de estreia de um trabalho coletivo que constrói um melodrama no sentido originário cheio de contribuições individuais, mas que ainda assim consegue erigir uma forte individualidade.
Um disco onde não se ouve um “Eu”, onde a indistinguibilidade entre autor e obra se dá pela construção dessa figura estética da Maria Esmeralda como uma colcha de retalhos de perspectivas sonoras e líricas em um comum compartilhado. Há também a inspiração proveniente das novelas brasileiras e do cinema marginal, trazendo uma concepção de mise-en-scene musical que colabora para essa percepção de elenco e construção narrativa e de sentido que ultrapassa seus colaboradores.
É curioso que o disco tenha começado a surgir quando uma parte dos caras ficaram trancados em um estúdio. A faixa “Lince”, terceira do disco, foi composta durante este cárcere e lançada no mesmo dia. Curioso, porque esse evento e produção nos mostra que o ano que o disco levou para ser confeccionado – desde a prisão e o lançamento – foi fundamental para o resultado final e amadurecimento da ideia.
As participações são um outro ponto alto do trabalho, pois estão coadunadas com a narrativa onde todo mundo colabora de modo orgânico para a “história”, acrescentando “atuações” que trabalham em prol do resultado final. Nomes como a grande Marilia Medalha e o Doncesão, que são os dois mais conhecidos, do projeto inteiro, se adequam e abrilhantam o disco mas não fazem com que a sua participação seja maior do que o álbum. Existe uma horizontalidade em termos de produção e concepção estética que envolve o ouvinte lhe prendendo ao todo.
Outras partes líricas fundamentais são compostas por nomes menos conhecidos do grande público e mesmo do underground. Servo, Yung Vegan, tchelo rodrigues, Quiriku e RUBI, são gratas surpresas para quem não os conhecia, estando longe de serem meros coadjuvantes. Diferentemente do convencional, onde o MC principal é auxiliado pelas participações, em Maria Esmeralda é o disco que ganha camadas cada vez mais expansivas, com os feats.
“Lúdica, eu te amo meu amor, com um amor que vai embora, um amor que ceva o mundo”
O prólogo poético, na declamação feita pela diva Maria Medalha, abrindo o disco com uma poesia “Lúdica” de sua irmã Marly Medalha, a ode ao amor pode ser entendida como o sentido do disco. Um amor que ceva o mundo, que o alimenta e o nutre diante de tantas forças de destruição e morte tão vigorosas em nossos tempos. E que através desse amor abre os caminhos para a criação do novo. Aqui representados pela jornada de Maria Medalha e do seu par Túlio Miguel.
Entre a tradição presente na faixa de abertura pela voz icônica de Maria Medalha e a curta faixa “McCoy Tyner”, existe uma quebra de expectativas ou pelo menos um estranhamento provocado pela ruptura musical entre uma e outra. Porém, apesar desta brusca mudança de cadência, o que domina todo o disco é um modo de fazer e cadências que são próprias ao boombap. A faixa “Lince” além de guardar um áudio apresentado no final sobre o dia que os caras ficaram presos no estúdio Base Company, já nos dá pistas de que a narrativa não é linear e nem possui traços de realismo.
O papel de Thalin como MC principal do projeto se explica muito como uma espécie de condutor lírico e musical, um pouco como ator de teatro Vaudeville, apresentando diversas nuances no tom, na entrega, no flow e na lírica que perpassam uma gama ampla de afetos. Com “Primo Favorito” – uma de nossas faixas favoritas – o ouvinte percebe que muitas vezes é rindo – neste caso brincando – que se diz o severo, com quebras rítmicas e as inserções de sample para entortar o juízo.
A participação de Doncesão em “Poliesportiva”, retirado de uma aposentadoria auto imposta, nos mostra barras sobre a “vida” e as relações que se inserem dentro do sistema econômico capitalista onde valor e preço se confundem. Reforçando a ideia de que a cantora e os MC’s presentes não entregarão uma narrativa linear, e podem ser entendidos como personagens que vão surgindo na tela – ao longo do play – para apresentar facetas que subjazem a história principal, a jornada da Maria Esmeralda.
Já na 7 faixa do trabalho, o safado do Túlio termina com a Maria Esmeralda, frustrando quem esperava um final feliz. “Amarelo Cor do Sol” apresenta a primeira participação do Servo que faz uma entrega excelente e rima com urgência e raiva características de um fim de relacionamento. O curto interlúdio “Bill Evans” que evoca em sample o grande maestro jazzista norte americano faz a ponte para “Todo Tempo do Mundo” uma faixa construída em suspensão musical onde Thalin dá um show lírico sobre o fim do relacionamento, incorporando o Túlio Miguel, musicalmente a faixa termina com uma pegada Soul/R&B deliciosa.
Com “Waldomiro” mas uma ponte linda e que reflete a consciência histórica e musical do coletivo de produtores, recebendo um beat muito foda na sequência em “Judas Beijoqueiro”. Construído com a inserção de cordas em loop, e contando com o Servo a despejar linhas muito bem construídas sobre traições de amigos, daí o título, e o Quiriku dando sequência com referências a Black Alien e ao mestre sagrado Letieres Leite, e produzindo uma operação digna de nota. Ao inserir o capitalismo, como a fonte de competição entre os seres humanos, logo de traição, e se posicionando como “trabalhador” na resistência ao desmonte. Cabe ao Thalin, reinserir de modo muito louco, a Maria Esmeralda na narrativa, E fechar a faixa com a síntese de que “ainda há tempo de fazer algo mudar: Maria”!
Original Urubu da Lama, a jovem RUBI é uma grata surpresa para este que vos escreve, que não conhecia o seu trabalho anterior junto ao Thalin: BLONDGYALS (2024) com produção do Shirts. Ela abre com maestria a faixa “Boca de Ouro”, título que evoca o clássico de Nelson Pereira dos Santos, de 1963. A faixa conta também com o Yung Vegan, um dos nomes mais respeitados do underground nacional.
Em “Chão de Mármore”, a participação do MC tchelo rodrigues oriundo do Trap, mostra a diferença entre um MC e um Trapper… Aqui vemos, o jovem entregar barras muito bem construídas em um flow muito seguro. Procedido por Thalin que faz observações críticas sociais mesclando técnicas como storytelling e sem perder o bom humor. Duas faixas que não sequência do disco, quebram e levam a obra para outros lugares, em um processo disruptivo da narrativa que será retomada nas três faixas que finalizam o álbum.
A tríade formada por “Dedo Cheio de Anel”, “Nova Ternura” e “Revoada”, podem ser entendidas como um comentário sub-reptício à cultura Hip-Hop e também como um encerramento do disco que ficará em aberto. De modo direto em “Dedo Cheio de Anel”, Thalin poetiza sobre a busca pela simplicidade, por uma vida simples de paz, sem treta em um construção novamente suspensa e que se encerra com a inserção do beat.
Já em “Nova Ternura”, um dos melhores momentos líricos e de flow do Thalin ao longo do disco, há o desfecho poético do disco. Há o anúncio do desfile de Maria Esmeralda que carregou e trouxe ao longo das faixas anteriores: a ludicidade, o amor, o fim, o entendimento do social, o conhecimento iconoclasta da tradição, enfim uma nova política, uma nova ternura que foi ofertada ao ouvinte e ao cenário. E que se encerra com o voo dos pássaros em “Revoada”.
Para quem esperava uma história com início, meio e fim, se deparou com a figura estética da Maria Esmeralda, uma personagem que vem, que foi construída através de rimas e batidas, por 4 produtores, 7 MC’s e uma cantora. E que em sua jornada musical colocou-nos diversos signos em jogo, através de um pensamento musical, de uma postura coletiva e ética de produção. Um verdadeiro Melo (Música e Canto) Drama (Ação Dramática), no sentido originário. O resultado está aí, um dos melhores discos do ano, realmente uma nova sensibilidade no rap e na cultura hip-hop, obrigado Maria Esmeralda!
-Maria Esmeralda, um melodrama de estética underground em 16 capítulos!
Por Danilo Cruz