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Há 25 anos Marcelo D2 redefiniu a linha evolutiva do rap nacional: “Eu Tiro é Onda”

Marcelo D2

Disco de estreia do MC carioca Marcelo D2, Eu Tiro é Onda redefiniu a forma de se fazer rap no Brasil, 25 anos atrás

“O primeiro disco brasileiro de rap que só usa samples de música brasileira” Marcelo D2

Ontem me peguei ouvindo o disco de estreia do grande Marcelo D2, um dos artistas mais importantes do rap nacional, e me lembrava do meu mano Rodrigo. Lembrei instantaneamente do Rodrigo cantando “1967” com um sorrisão na cara, feliz e empolgado e me mostrando o disco que ele tinha acabado de comprar na lendária loja Mutantes do não menos querido Jorginho. 

O ano era o hoje distante 1998, e eu como ele estávamos entrando na vida adulta, pouca grana, rolês no pelourinho com intera para comprar cravinho e ainda tateando o que seria o nosso futuro. Rodrigo trampava em uma bomboniere enquanto eu entregava cosméticos nos salões chiques de Salvador, carregando bombonas de 5 litros de shampoo e condicionador, e caixas de tintura de cabelo, esmaltes etc… 

Para mim e para ele, que ouvíamos Racionais MC’s, MV Bill, Verbo Pesado, Da Guedes entre outros, aquele disco foi uma verdadeira iluminação e fonte inesgotável de pesquisa dali em diante. Época de formação nossa, dali em diante passamos a buscar outros sons, nomes como Bertrami e Dom Um Romão foram pistas para buscar a nata do jazz nacional. Assim como nas citações do Planet nós já íamos atrás das referências, aqui a coisa se ampliou e não apenas para nós.

Só dali a cinco anos eu teria acesso ao Tim Maia Racional, mas entender que tínhamos um possibilidade de samplear nossa própria música e nos nossos próprios termos, naquele momento influenciou não apenas o rap carioca, como nacional. E não deixa de ter uma certa ironia notar hoje que muitos na época rechaçaram “Eu Tiro é Onda” por supostamente haver ali uma certa postura de rendição ao mercado por D2 estar misturando rap com samba, o famoso traidor do movimento.

Em 1997 o grupo Planet Hemp foi preso e indiciado por apologia ao tráfico e formação de quadrilha, a gravadora Sony lhes encomendou um disco resposta, que o grupo não fez e que Marcelo D2 chamou de disco da prisão. A não feitura do Planet Hemp do que seria seu terceiro disco, junto a proibição da banda se apresentar, levou Marcelo D2 à produção do seu primeiro disco solo. Com equipamentos comprados em Nova Iorque e devidamente instalados na Casa do Caralho, sua residência, o álbum foi todo gravado por lá e mixado e masterizado entre Los Angeles e Nova Iorque nos EUA por Mario Caldato Jr. e Carlo Bess. 

“Não sou rebelde nem um pouco. Não tenho nem a preocupação de ser um artista. Esse é meu trabalho. Vendi 250 mil cópias com o Planet, mas não porque tinha a pretensão de vender. Fomos fazer nosso trabalho. Este novo, espero, vai vender 2 milhões.”

Ouvir 25 anos depois o disco de estreia do Marcelo D2 mais do que alimenta uma falsa nostalgia nos serve como um fio condutor para pensarmos a própria história do rap nacional. O ineditismo deste trabalho em todas as suas dimensões e em diálogo direto com o que era feito então, se faz como uma peça fundamental para entendermos os modos de produção, as influências que este trabalho trazia e que certamente relegou ao futuro.

Em 1998 não era facil o licenciamento de samples algo que Marcelo D2 conseguiu bem naquele momento – com a exceção de uma fala do Tom Jobim em conversa com Elis Regina – por estar em uma grande gravadora. Ao mesmo tempo o acesso a equipamentos fundamentais como MPC e Roland SP foram de suma importância para a confecção deste trampo. Por outro lado, naquela altura o D2 estava dialogando plenamente com a Golden Era internacional de nomes como The Pharcyde, A Tribe Called Quest entre outros! Após a inquietação inicial vinda das lembranças de quando conheci o disco, e depois de alguns zap’s passados para amigos, recebi essa resposta do mestre Dr. Drumah: 

“Com certeza esse disco mexeu com a cabeça de geral, eu acredito abriu as portas de um celeiro que iria proliferar a partir dali cm produções alternativas/underground, foi depois deles que começou a aparecer outra linha de rap”

É preciso que se diga que quando Eu Tiro é Onda foi lançado em 1998 estávamos ainda vivendo o impacto de “Sobrevivendo no Inferno” dos Racionais MC”s e em geral as produções estavam dentro do que o grupo paulista trabalhava. Os grooves trabalhados nas batidas do rap nacional caminhavam dentro da linha do gangsta rap, mais reto e ou com samples que geralmente remetiam ao funk soul americano. Importante lembrar que nesta altura vivíamos ainda em termos culturais sobre forte influência do movimento Mangue Beat e toda a sua revitalização da música pop com referências regionais, algo que certamente esteve presente no suco inventivo do Marcelo D2, porém em seus próprios termos. 

O carioca suburbano que cresceu recebendo as influências do samba já começa a samplear sua herança cultural pela capa do disco com foto da Dani Dacorso e design da turma dos grafiteiros do SKOLA, uma referência/sampleando ao álbum Vida Boêmia do grande João Nogueira. E aqui é importante que se pontue com clareza, o disco de estreia de Marcelo D2 não é um disco de rap com samba, senão um disco que forja uma persona sambista, malandra, mas com diálogos que passam pelo jazz nacional. E quando falamos de jazz nacional, nos referimos a presença de Dom Um Romão, José Roberto Bertrami, do grupo vocal As Gatas e João Donato que estão no disco. 

Há a bossa nova e há o samba jazz e eles são dois movimentos distintos mas que dialogam firmemente e ajudam a desenvolver a linha evolutiva da música popular brasileira. Curiosamente, neste sentido com a produção de Eu Tiro é Onda, Marcelo D2 vai retomar essa linha evolutiva ao abrir mão dos samples de soul funk americano e trabalhar dentro da nossa própria herança rítmica, abrindo uma linha de modernização e sobretudo de apropriação nacional do rap, como música constituída a base de samples e que ao utilizar uma rítmica local dá a cara autêntica do que pode ser um RAP NACIONAL!

Dica do pesquisador supracitado aqui: Dr. Drumah, na época do lançamento do disco, em um programa do Yo Rap’s apresentado naquela altura pelo Rodrigo Brandão, Marcelo D2 apresenta uma faixa do The Pharcyde que trazia um sample do Herbie Mann presente no disco Bizarre Ride II The Pharcyde de 1992 e que já rendia homenagem ao nosso samba. De lá pra cá, os brasileiros não cessaram de ser surpreendidos por DJ’s e produtores resgatando a nossa música, obviamente por uma rendição nossa em relação a música feita nos EUA e que no momento de desenvolvimento do rap com raras exceções foi meramente copiada!

Como afirmamos acima, Eu Tiro é Onda (1998) não é apenas um disco de rap com samba, basta ouvir 1967 e ver um exemplar original e originário do que poderia ser dali para frente qualquer jazz rap nacional. Lá no final da faixa ele manda um verso ufanista: “Agora saiu um flow brasileiro, carioca, Marcelo D2 na área, se derrubar é penalti”. Certamente as produções anteriores e depois que não se alinharam a essa estética não eram menos brasileiras, mas certamente também aqui temos algo que pela primeira vez podemos chamar totalmente de nacional!

A lírica que envolve o disco é uma certidão de nascimento suburbana carioca, rua e informada por outras influências e D2 emula com bastante originalidade uma persona malandro carioca embebida de cultura hip-hop, de certo modo é uma aproximação mal comparada entre Bezerra da Silva e Pigmeat Markham, no sentido de reconhecer que possuímos também antecedentes rappers que não eram rap, afinal estamos falando de uma música da diáspora. Procedimento similar ao que o Faces do Subúrbio e depois Rapadura fariam com o repente!

Discos de Bezerra da Silva e Pigmeat Markham

Contando com 13 faixas, até a 5º música uma releitura de “Matenha o Respeito 2” – lançada originalmente com o Planet Hemp – não há sinais de samba, senão recortes de samples de jazz nacional pelos mestre DJ Nuts e Zé Gonzales, produtores que colaboraram com essa obra prima. Já com “Samba de Primeira” o breakbeat, o bpm, os samples deixam evidente que a mistura do hip hop que saia do Rio de Janeiro estava longe de qualquer projeto higienista e ou de diluição do samba e ou do rap. Afinal, tinha ali influência do hardcore…

Outra pedrada presente no disco é a faixa “O Império Contra Ataca” que trazia as participações de um Black Alien endiabrado junto ao Speed, Jackson e do BNegão. Grandes expoentes do que viria a ser o que chamamos no Brasil de rap underground, Jackson inclusive é um nome que precisa ser mais lembrado quando se fala desse gênero. Não é difícil ver o quanto essa música é o verdadeiro pai de tudo que se vai fazer no rap underground carioca nos anos seguintes e em muitos lugares do Brasil. 

A faixa instrumental “Espancando o Macaco” é um diálogo gostoso e groovado do rap com o Jazz brasilis. Com “Eu Tive um Sonho” e “Encontro com Nogueira” o MC Marcelo D2 faz dois storytellers que projeta o conceito do disco dentro do hip-hop nacional, misturando Racionais MC’s com Orquestra Tabajara e com Skunk e o próprio D2 levando para um céu o hip-hop, com anjos desejando Breaking violento, Deus fazendo moinho de vento e Jesus de escovinha. Uma fabulação deliciosamente bem humorada!

Se encaminhando para o final, “Batucada” é o ápice da tal rap com samba, onde a batida e os chocalhos encontram um sample do Fundo de Quintal, um piano rhodes dando uma elegância pesada. Aqui é o Marcelo D2 rompendo fronteiras de quintais idiossincráticos e elevando o rap a outro patamar, ironicamente ele mete um sample do “Bandido da Luz Vermelha” do mestre Rogério Sganzerla, um dos maiores cineastas do udigrudi nacional. 

A última música do play traz além de um rap envenenado, uma linha do Black Alien que estava quase 20 anos adiantada, a certa altura o Mister Niterói canta: “Lava Jato a visão distorcida dos fatos!” vou deixar essa questão com vocês. Mas a faixa “Baseado em Fatos Reais” que encerra o disco, se faz como uma resposta a prisão da esquadrilha da fumaça por ter atacado a base sobre a qual até hoje, 26 anos depois segue sendo a desculpa mal feita para o extermínio e o encarceramento em massa da população negra siga funcionando. 

A única forma de finalizar esse texto é falando da faixa Eu Tiro é Onda porque certamente essa foi uma das que mais ouvi do disco ao longo dos anos. Eu tinha comprado uma revista onde esse single vinha encartado e na ausência do disco emprestado do Rodrigo era ela quem me embalava. Em tempos onde o egocentrismo vazio e baixo que canta aquilo que não se é toma conta de um neoliberalismo meritocrático dentro do rap, essa tiração de onda fala alto. Marcelo D2 gravou o clipe da faixa em Nova Iorque – só perdendo em ineditismo para o grupo baiano MD MC’s – e traz o Shabazz The Disciple como participação. 

É uma das faixas inesquecíveis desta obra prima, um disco que iria gerar no seu bojo grupos como Inumanos, Primeira Audição, Esquadrão Zona Norte e outros grandes nomes do rap nacional que hoje vão progressivamente sendo esquecidos. Aqui na Bahia foi influência para Nego Freeza do OQuadro, para Dimak e para um par de MC’s e beatmakers no Brasil inteiro, um clássico absoluto, sem dúvida!

-Há 25 anos Marcelo D2 redefiniu a linha evolutiva do rap nacional: “Eu Tiro é Onda”

Por Danilo Cruz

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