Marcão Baixada propõem um movimento de recenseamento de sua caminhada com o seu novo EP visual: Repertório.
“Dez anos sem sinal de desistência
Não tem como negar minha influência
De onde eu tô, não vejo concorrência”
Marcão Baixada
O trabalho e a história de Marcão Baixada estão muito além das idiossincrasias de alguns que pretendem através de recortes baseados meramente no seu gosto pessoal e em suas influências pressupostas pela indústria cultural, decretar quais são os MC’s relevantes ou não para o cenário. Com uma história de formação e atuação enquanto MC militante da cultura hip-hop, beatmaker e produtor cultural na Baixada Fluminense, o artista possui uma das mais interessantes discografias do rap nacional.
Agora em 2023, 11 após o seu primeiro lançamento, o EP de estréia “Itinerante” lançado em 2012 para download em um antigo site do artista, e que chegou aos streamings em 2014, Marcão Baixada lança: “Repertório”. Composto por uma intro e seis faixas, o trabalho joga luzes e pétalas de rosa na estrada trilhada até aqui, propondo para o ouvinte mais desatento o conhecimento de um trabalho fundamental para o rap feito na cidade do Rio e consequentemente para o Brasil.
A diversidade sonora e as narrativas líricas e audiovisuais propostas neste novo trabalho, chamam atenção para o seu trajeto/talento enquanto MC, que também já lançou o disco Bastidores de uma Vida Aleatória e a mixtape Black Friday em 2016 e os dois EP’s seguintes: Geração 90 (2018) e Vermelho Outono (2018). Além dos diversos singles e do emblemático freeverse de 2013: “BXD Freestyle (The Underachievers ‘Herb Shuttles’ Freeverse)”.
Alguns anos atrás tomei contato com o trabalho do Marcão Baixada e ali eu já percebia a necessidade de uma investigação mais profunda para entender a sua caminhada. Dono de uma discografia robusta e fundamental para o próprio entendimento do desenvolvimento do rap carioca e nacional, seu trabalho não comporta escutas apressadas. Para as novas gerações acostumadas com a rapidez líquida de uma vivência online, em geral com uma velocidade incapaz de transformar informação em conhecimento, Marcão Baixada é um desafio.
Um dos precursores do Trap em solo nacional, ele nunca se prendeu em fórmulas prontas e em fraseados rasos repletos de clichês repetidos a exaltação por muitos que embarcaram nessa estética. A grande potência do seu “Repertório” está no fato de ser um MC de formação sólida dentro da cultura Hip-Hop e neste sentido, pouco importa em qual beat o mano esteja rimando. Indo sempre além da falsa oposição Trap x Rap, Marcão Baixada construiu uma obra enquanto MC, obra esta que deságua agora neste seu novo EP visual.
“Azul piscina, igual meu selo de verificado
Mas na rua nem tem tanto significado
Tenho o respeito dos mais velho, eu tô certificado
É que o produto que eu vendo é tão sofisticado
Depois que eu rimo, o microfone tá santificado”
Marcão Baixada
Enquanto um EP Visual, “Repertório” apresenta a solidez conceitual de um disco cheio, as faixas variam em sua sonoridade de boombaps and drumless, passando pelo Detroit e o Trap, mas dialogam entre si. Rompendo com a falsa dicotomia que apresentamos acima, estamos diante de um disco de Rap, um “álbum vivo” pois fruto de uma história e que apresentará de acordo com Marcão alguns desdobramentos, como sua versão instrumental, podcasts e shows.
A “Intro” seguida da primeira música “Rap sem Refrões e Pontes” é uma produção do Marcão Baixada com G.a.B.o e conta com a participação do músico Rodrigo Caê. As faixas que são uma continuidade, começam por ambientar o ouvinte em um território aos sons da natureza e da metrópole, o canto dos pássaros, o raiar dos galos, helicópteros sobrevoando a Baixada Fluminense, o ranger de uma porta. No audiovisual isso se complementa com um Marcão Baixada captado no sofá de sua casa.
O MC sentando com uma rosa nas mãos – um signo que atravessa quase todo o audiovisual – é logo depois captado na rua com a música “Rap Sem Refrões e Pontes”, uma verdadeira pedrada, onde uma possível egotrip neste caso se converte em linhas intrincadas produzidas com um flow pegajoso. Nesta música de abertura do disco onde o MC ao falar de si reflete não apenas o seu ego, mas sobretudo o que significa fazer e viver a cultura hip-hop nas periferias do Brasil: Amor e Morte, ou ainda para citar o poeta Cartola: as rosas não falam.
A mitologia grega guarda uma relação profunda sobre o simbolismo das rosas, pois conta-se no mito do nascimento de Afrodite, a deusa do amor, que quando esta nasceu das espumas do mar, as espumas tomaram a forma de uma flor branca, simbolizando daí em diante a pureza e a inocência. Por outro lado, quando Afrodite viu Adônis pairando sobre a morte, e foi lhe socorrer feriu-se em um espinho da rosa, tingindo-lhe assim de vermelho, e passando daí em diante a ser ofertadas – as rosas vermelhas – sobre túmulos.
A força deste simbolismo está fortemente presente não apenas nesta primeira música, onde Marcão Baixada faz referência a sua formação nos anos 90 e a violência progressiva no estado do Rio de Janeiro e na sua Baixada Fluminense. Ela perpassa também as descrições de sua caminhada, a força do amor pela cultura que o faz seguir produzindo. Mas ganha amplitude ao se colocar como ponto de confluência destes processos históricos onde é protagonista e vítima, enquanto homem negro em uma diáspora que não cessa de tentar lhe ceifar a vida e ou barrar-lhe de seguir sua potência artística.
É curioso como nessa faixa o boombap é um espaço sonoro fundamental para pensarmos na relação dessa faixa com as duas últimas, o modo como cada sonoridade guarda possibilidades de desenvolvimento lírico únicos. Para além da falsa dicotomia entre o trap e o boombap, entre o drill, o grime ou quaisquer outros subgêneros, é essencial perceber que cada rítmica oferece um espaço próprio, onde a capacidade inventiva dos artistas vai se inserir sem limites pré estabelecidos.
A faixa seguinte é uma produção cortesia do grande Lessa Gustavo, onde Marcão chega amassando com linhas muito fortes e com um flow que hipnotiza junto ao sample utilizado pelo produtor. “Tom Ford” nos parece seguir a reflexão sobre a busca enquanto artista para se firmar no mercado, e a violência que nos cerca enquanto pretos e periféricos, ao mesmo tempo que o artista é levado a buscar outras formas de atuação:
“Enquanto não vinga
Quinto dia útil eu tô buscando o meu dote
Meus pés ganharam asas nesses Reeboks
Esse verso pode até não ir pra Billboard
Mas separa um real man de todos lil boy”
Sim, a força da poesia dentro da cultura hip-hop é sempre extraída das vivências obviamente aliadas ao talento e ao conhecimento capaz de transmutá-las em arte. É a prova de fogo que separa adultos de crianças, e neste sentido Repertório demonstra isso com bastante enfâse. O drumless do próprio Marcão Baixada – Blue Moon – em seu falso início, já constata: “pai de todos esses trappers”, sim, pois quem acompanha o cenário do gênero no nosso país sabe a importância do trabalho do artista como uma das figuras de proa já ali em 2013 produzindo dentro da estética do Trap.
Quando se fala da força do rap enquanto estilo musical saído das ruas se esquecem muitas vezes da força de sua poesia e apega-se hoje como antes, muitas vezes em posturas e imagens meramente. Em “Blue Moon”, para além de exaltar armas, Marcão desenvolve um procedimento de construção lírica onde flow e rimas nos atingem como balas, por refletir e expressar ideias muito bem construídas com muita técnica. para além de “beefs” e “punchlines” que muitas vezes são meros veículos de marketing e auto promoção e ou fábulas!
O mesmo procedimento me parece ser utilizado na quinta faixa do play, onde o grande EricBeatz é o produtor de Highball Papi. Há dentro de sua caminhada, o que de certo modo ocorre com todo artista que se constrói e alcança uma certa serenidade mas sobretudo, a autoconsciência dos seus poderes e o sentido que se lhe atribui. Todo herói é herói para uma comunidade, para um povo, e aqui mal comparando há o que poderíamos chamar de um duplo da jornada do herói, se entendermos a importância do Marcão Baixada para a cultura hip-hop da Baixada Fluminense.
Não é atoa que os quadrinhos e a cultura hip-hop possuem uma ligação intrínseca, porém para além do que afirmou Jay-Z muitos dos “heróis” de hoje, são apenas personagens ou meros artistas forjados por números, porque sim eles mentem, ou no mínimo iludem. Na faixa Highball Papi, para além de “beefs” e “punchlines” que muitas vezes são meros veículos de marketing e auto promoção e ou fábulas, Marcão solta os seguintes versos:
“Eu sigo no front
Pra sua Quimera eu sou Belerofonte
Eu sou a ref não citada, eles não explanam a fonte
Vocês surfaram minha onda e não querem que eu conte?
Eu que fiz essa ponte”
Entre a forma e a substância expressa pela poesia do Marcão Baixada, ao longo de todo EP, o que podemos notar com facilidade é a caminhada de um MC que se passa ao largo do mercado, no entanto está nas raízes da cultura e neste sentido apresenta um trabalho violentamente pacífico. Se entende como parte de algo maior, o que não significa de modo algum qualquer apologia da precariedade, mas antes um entendimento sereno do seu papel dentro do Hip-Hop.
Marcão como dezenas de outros artistas da cultura hip-hop vem enfrentando a Quimera – um monstro da mitologia grega – que é uma simbologia neste contexto para as dificuldades intrínsecas numa sociedade capitalista e por isso mesmo racista, para se posicionar com dignidade dentro de um mercado que se compraz do esvaziamento das forças culturais negras na diáspora. É curioso notar que o herói grego Belerofonte é auxiliado por Atena a deusa da Sabedoria, que lhe forja uma rédea de ouro para que ele seja capaz de domar Pegasus, o cavalo alado que o levará para o covil da Quimera.
Por um decalque primário, podemos facilmente associar sem forçar a barra, esse “Repertório” como essa rédea de ouro fruto do conhecimento (sabedoria) obtido pela cultura hip-hop, e que possibilita ao Marcão domar – produzir – rimas e flows capazes de lhes levar ao enfrentamento das feras que ameaçam o seu povo, o seu lugar! Não à toa no audiovisual do EP, que possui a direção criativa do Marcão Baixada e de seu parceiro de muito tempo Higor Cabral, Marcão é captado em primeiro plano em uma das ruas na sua Baixada Fluminense!
A penúltima faixa do EP, Black Money é uma produção do próprio artista que produz um beat Detroit com toda a cara de música pra pista, daquelas que você escuta o beat e o corpo balança automaticamente. Mas ainda assim, o papo segue na mesma linha, de busca artística, de vivência de um real man nas ruas, Fechando o EP temos o bônus “Meu melhor Rap do Ano” – que não por coincidência é um Trap – um remix do Mano Fá Beatz.
“Se eu não tiver ice, glock, ou 1 milhão de views no YouTube Nego, eu tô fodido
Vou passar batido
Mas o que eu falo sempre tá no ouvido
Daqueles que são mais bandido
Agora eu vou virar vendido
E o cenário vai ficar rendido
‘Cês não atiram, ‘cês só dão latido
E onde eu moro, ‘cês ficam perdido”
A primeira versão desta música foi lançada há dois anos com um videoclipe e é uma daquelas músicas em um beat de trap que são imortais, que duram e prova disso é ouvi-la agora. Quantos outros traps podem dizer o mesmo? Marcão Baixada mostra o quanto se afasta dos clichês, o quanto é um MC fora da curva finalizando o EP e provando que a falsa dicotomia supracitada é como tal um falso problema.
Apesar da utilização da Industria Cultural desta falsa dicotomia, apesar de um público adolescente ignorante sobre o que seja a cultura hip-hop, da completa rendição de mídias que se dizem do rap, mas não passam de reprodução de ignorância, clickbait, babação de ovo de nomes com números de um público guiado por algoritmos. A sua arte como MC e beatmaker, o seu ativismo como agente da cultura hip-hop e produtor cultural, supera, sempre superará falsos problemas. Pois como herói da cultura que tem consciência das dores, das dificuldades, das expertises, das alegrias, da potência de onde está inserido, o artista segue produzindo em alto nível. Viva a Baixada Fluminense, Viva o Marcão Baixada, Viva o Hip-Hop.
-Marcão Baixada apresenta um EP visual com a potência e história do seu Repertório!
Por Danilo Cruz