Oganpazan
Destaque, Discos, Lançamentos, Resenha

ManoWill faz chover cevada em Nuvem Negra

ManoWill lançou sua primeira mixtape: Nuvem Negra (2019) e vem construindo uma obra que é uma excelente amostra de toda a força da tradição!

Algo que muita gente já notou e que poucas pessoas falam abertamente: a Soundfood Gang é atualmente a banca mais relevante da cena. Essa relevância se dá por diversas razões que não cabem agora nesse texto discorrer, mas que certamente tem na força de mc’s e produtores, uma das razões. E em uma diversidade de linguagens tão sinistra, que ficamos diante de mundos que se reúnem num universo até aqui infinito em possibilidades.

O ManoWill é um dos integrantes desse universo e acaba de lançar uma mixtape que já se configura como um dos melhores lançamentos do ano, sem dúvida alguma. Mas isso pouco me importa, me toca muito mais perceber a caminhada insana que esse mano vem fazendo em seus lançamentos.

Ouvindo com atenção e a malemolência necessária seus trabalhos anteriores, o EP Aprendizados (2016) e a mixtape Saudosa Maloca Sombria (2018), podemos aos poucos começar a entender o movimento que deságua desta Nuvem Negra (2019). Um primeiro dado a reconhecermos são as linhas estilísticas que vem sendo desenhadas e reafirmadas nos sucessivos trabalhos do artista.

É notável um apelo à tradição que nos parece fundamental para curtir e compreender plenamente o trabalho que ManoWill vem realizando. Esse apelo a tradição num primeiro momento nos chegou pelo seu apego aos botecos da vila, a uma observação que pode ser remetida a outros grandes poetas da nossa música. Não se trata aqui de uma apologia, as menções ao álcool se dão sempre dentro de um contexto de favela. 

Quem é de quebrada sabe o quanto o álcool é um dado ambíguo de nossa realidade. É a droga que nos socializa, é aquele vizinho que lhe chama pra beber e queimar uma carne, é o moleque que toma seu primeiro porre com os mais velhos, é também elemento de degradação. Mas é um ambiente de sociabilidade onde se aprende, como em qualquer outro, botecos ensinam a viver, mas somente àqueles que são capazes de aprender. Foda-se o seu lean, desce um rabo de galo ai chefia.

Ao mesmo tempo, existe uma aproximação com os grooves clássicos da tradição de nomes como Marvin Gaye, Al Green, Barry White entre outros mestres da música preta do funk e soul norte americanos, que de algum modo ajudam a dar uma tônica old ao trampo do ManoWill. Mas essa aproximação, em samples e em algum nível de sua sonoridade está dentro de sua obra sem nenhum cheirinho de naftalina. A música (ritmo e poesia) que o flow Hancock produz é plenamente atual, porque ele consegue mostrar como ser malandro no século 21 é possível e até desejável.

Essa malandragem está presente em sua lírica, nos temas que aborda, no seu flow, no seu vocabulário, de um modo muito forte. E é sobre tudo uma malandragem associada ao respeito a tradição, aos mais velhos. Ensinamentos básicos que muitas vezes são perdidos de vista, estão presentes no trabalho e na poesia do ManoWill, sobretudo um valor que hoje é pouco valorizado no rap e que ele faz de um jeito que nos mostra o quanto é complexo: ser simples.

Ao contrário do Yung Buda, não existem aqui milhões de referências a animes e a cultura japonesa de modo geral, como não existe qualquer traço de vanguardismo como o nILL e suas produções vaporwave. E ao mesmo tempo, ele está ali em pé de igualdade na qualidade dos sons juntos aos seus parceiros de Soundfood Gang. A música do ManoWill é o prazer das bebidas simples, da cerveja gelada com os amigos, é um amálgama de tudo de melhor que rap dos anos 90 tinha, codificado numa linguagem atual!

A mixtape Nuvem Negra (2019) é a continuação e explicitação dessa linha de evolução que estamos tentando ressaltar e as capas dos trabalhos de ManoWill trazem essa ideia. Da concretude do corpo negro até as nuvens produzidas pela evaporação de uma sequência de excelentes trabalhos, para fazer chover cevada. E nesse sentido seria possível argumentar que não a evolução, mas talvez destilação, aprimoramento, mudança de estados desse espírito maloqueiro, de um trabalho para o outro.

A produção dessa nova mixtape contou com os beats O Adotado, GoriBeatzz, DegrausBeats, Bface e Tan Beats, que fizeram mais uma vez um excelente trabalho, com a direção musical do nILL que consegue dar a coerência estética necessária. Ao longo das oito faixas vemos todas as qualidades que já eram evidentes nos trabalhos anteriores de ManoWill e que aqui são mais uma vez reafirmados. Sua capacidade de descrever um mundo (quebrada) onde a cultura negra em diáspora, a sabedoria dos mais velhos e a busca por melhorias para os nossos são os temas essenciais. 

O clima é mais sombrio, e isso já começa a ficar óbvio na primeira faixa “Sina“, que conta com a participação da Galena. “Não é que a cidade morreu, é que a vontade de viver se perdeu, tá escasso, menor se sentido pra baixo” rima com muita força em “Guerra Infinta“, que tem o mano nILL na contenção. A vivência das ruas é exaltada em “Full Sombrio“, ao mesmo tempo que privilegia mais a potência de agir do que a obtenção do poder.

A faixa “Janumsabe“, traz o Matéria Prima bagaçando nos versos num dos melhores feats do disco. Como falávamos ali em cima, não se trata de apologia mas de aprender com os mais velhos e consigo mesmo, aprender a se conhecer, a se limitar. E prova disso é “Depósito de Frustação” e para a tarefa de alertar sobre os malefícios da bebida quando mal empregada, ManoWill convidou um especialista: Oddish, que inclusive fez uma curiosa promessa, chamando atenção para apropriações indébitas no rap game.

Em “Flow Matarindo” o convidado pra dividir é o mano Cab, mandando a real pra quem está moscando no rolê ou na cena. As linhas de um baixão e aquele vocal faceiro sampleados da grande e desconhecida Camille Yarbrough, dão o tom da pesada “Bohemismo Urbano“, curtinha (quase um interlúdio) mas não menos foda por isso. Com um fechamento essencial nos chega “Vagabundo Raro” onde é possível perceber com tranquilidade de uma levada cadenciada, as ideias que acima tentamos escurecer.

Essa música que finaliza a mixtape é quase um “braggadocio doce”, que pode ser também uma cartinha de apresentação de qual o tipo de artista nos foi dado conhecer para quem tá em contato pela primeira vez nesse trabalho. Em sua música, ManoWill faz o simples, o direto, valoriza suas raízes, busca inspiração na tradição, escuta os mais velhos incorpora os ensinamentos, transforma isso em algo seu e passa a frente em forma de música e poesia. Talvez, o faça também numa mesa de bar, mas na impossibilidade de tomar umas com ele lá em Jundiaí, me dá meu copo…


ManoWill faz chover cevada em Nuvem Negra

Por Danilo Cruz      

Matérias Relacionadas

Taik – Selva de Pedra (2018) Resenha faixa a faixa!

Gagui
6 anos ago

Charles Mingus Plays piano & e a letargia da quarentena

Guilherme Espir
5 anos ago

Tetel Di Babuya e a liberdade criativa em 8.12

Carlim
3 meses ago
Sair da versão mobile