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Makalister Rap Poesia e Cinema!

Makalister é um rapper da nova geração invertendo a proposta de Passolini criando uma poesia cinéfila, servindo-se do cinema como inspiração!

Makalister Cinefilo

Se você estava dormindo dentro de uma caverna nos últimos meses, ou não é um admirador do rap brasileiro, provavelmente não conhece o rapper de Florianópolis Makalister. Porém se você acompanha o rap Br, o rapaz dispensa apresentação e você provavelmente você passou um tempinho refletindo sobre: como “o reflexo vira matéria”. Verso que foi destacado por diversos canais e retirado de sua participação no projeto Poetas no Topo. Com dois eps, singles, cyphers, participações e uma mixtape (Laura Miller mixtape) muito elogiada, o Jovem Frozen vem causando frisson e sendo alvo de muitos debates sobre suas linhas.

Uma de suas características mais bacanas é a utilização de referências que fogem ao senso comum. A arte se basta, no entanto é sempre bom encontrar um artista como Makalister, onde além das qualidades artísticas, somos inundados de boas referências. Suas composições sempre remetem a literatura ou a filosofia citando diversos autores como: Eduardo Galeano, Dostoievski, Moacyr Scliar, Sinésio de Cirene etc. Mas é na utilização do cinema que o mano se esbalda, nos oferecendo diversas referências a filmes e cineastas. Sem esquecermos óbvio das referências musicais que também fogem do senso comum do rap. Citando quase que exclusivamente MPB dos anos 60 & 70: Beto Guedes, Raul Seixas, Doces Barbaros são algumas ótmas e pouco óbvias referências utilizadas em seus samplers. Pra nós que estamos muito acostumados com funk, soul nas construções sonoras é um sopro do novo e outros caminhos possíveis.

Porém, boas referências não garantem boa arte, afinal deter algum conhecimento sobre a história da arte não faz de ninguém artista. É apenas o talento, o vetor capaz de transformar vivências e conhecimento em arte. E se entendermos que a arte é também uma forma de pensar, nos tornará obvio que um artista bem referenciado possui matéria prima e inspiração de qualidade sobre a qual produzir. Entendemos que a arte pensa através da produção de afectos e perceptos, e se seguirmos nessa linha de pensamento, seria interessante pensar como essas referências atuam dentro da construção poética do Jovem Maka.

Tentarmos descobrir como ao povoar seus versos de referências isso termina por determinar sua construção poética. Pois, a matéria prima sobre a qual se produz, ajuda e talvez até direcione um modo de criar e de se diferenciar,  na medida em que o artista consegue produzir um estilo único.

Em muitos casos e isso não é algo novo, rappers utilizam grandes filmes para ilustrar uma ideia, através de analogias, citando personagens famosos. Ou em outros casos, remetendo o ouvinte a uma metáfora que recorre ao título de um filme. Mas, a utilização que o Jovem Frozen faz dessas referências se diferencia um pouco do que estamos acostumados a ver comumente. 

O grande Pier Paolo Pasolini, poeta e diretor de cinema italiano, propôs uma ideia que nos parece esclarecer um pouco a forma como o próprio Makalister trata o cinema em suas composições, porém de modo inverso. O pensador italiano definiu duas formas de cinema em seus escritos, ao constatar que não havia uma gramática que desse conta da linguagem cinematográfica, ele deduziu que o cinema deveria ser sobretudo uma “língua de poesia.” E que a língua de prosa que o cinema cultivou ao longo de sua história, seria meramente fruto da pressão sofrida pela indústria cultural, além de seguir a necessidade de vermos histórias representadas. Aquela necessidade de narrar historinhas enquadradas de modo comum, com desenvolvimento e fim da forma esperada, num esquema estilo novela.

E para fugir dessa cilada, Passolini passa a desenvolver um cinema que pretende escapar de um naturalismo tendencioso na narrativa, através da utilização de um Neo-formalismo formulado como um discurso indireto livre, denotando a expressão do autor através de personagens que falam em primeira pessoa. Essa formulação teórica feita por Passolini visava sobretudo desenvolver outras formas de através do cine poesia encontrar novas formas de entender o encadeamento das imagens como uma forma profunda de arte. O cinema entendido como algo além do contar estórias de modo vulgar com aquele naturalismo tosco tipo novela da Grobo. Não se trata aqui daquela coisa de filmes cut, como distintivo de algo bom, por ser algo elitista e de pessoas descoladas. Mas de buscar extrapolar os limites que a arte sempre impõe ao artista, no caso de Pasolini, dentro do cinema e no caso de Makalister, nos parece, no rap.

Desde seu primeiro trabalho Makalister já se auto imprimiu a alcunha de Renton (2015), personagem principal do clássico Transpotting. Naquela altura, o artista já se utilizava de um referencial cinematográfico (não apenas o personagem principal) que servia claramente de baliza para o universo poético que o Ep desenhava (filmava?). Relações amorosas incertas, subempregos, drogas, pessimismo, são alguns dos temas tratados nessa sua estreia. E podemos perceber que a incorporação dessa espécie de alterego é no sentido de incorporar em suas construções musicais, os afectos que o personagem do filme transmite em suas peripécias. Uma luta de morte contra uma sociedade de merda, diante de perspectivas de vida escrotas, onde a mediocridade de se tornar mais um cidadão mediano (os de bem) se iguala a estar a sete palmos do chão. É menos um clichê do zé droguinha do que a necessidade de trazer a tona um inconformismo que passa ao largo de outros clichês ideológicos.

As referências ao cinema podem também se dar dentro de sua obra para além da escolha do seu nome temporariamente artístico. E chegar até a própria escolha do nome de um de seus trabalho, como no Ep A Terça Parte da Noite (2016).  

Longa metragem de estreia de um dos diretores poloneses mais controversos e geniais daquele país, A Terça Parte da Noite é uma história muito forte sobre o período de ocupação nazista na Polônia. Não temos certeza e não fomos conferir, mas ao que parece Makalister se baseou nesse titulo e filme para nomear seu Ep. Leszek é o personagem principal que tem sua família massacrada, num curto período em que se ausenta de casa para um passeio. Acontecimento que o devasta e que o levará a viver de modo alucinatório encontrando duplos seus, da sua esposa e do seu filho, após a morte dos mesmos. O diretor Zulawski é mundialmente conhecido por seus filmes impactantes que retiram de seus personagens atuações fortes como o caso de Isabelle Adjani em Possession (1981), abrindo mão do realismo na atuação. O rapper catarinense parece ter um apreço todo especial pelo cinema europeu ao construir climas para suas letras, e nesse caso, o clima alucinatório, claustrofóbico e angustiante parece ser o que se queria. “A terça parte da noite não dormi”.

Dentro da música de mesmo nome, segunda faixa desse ep, encontramos alguns versos que nos dão algumas pistas de como esse referencial truncado tem passado a alcançar toda sua potência dentro de seu processo criativo. Numa construção em que imagens cinematográficas, ou títulos de filmes se tornam as próprias imagens poéticas. Se o Makalister Renton ao enunciar “Bota um Woody Allen deprê pra assistirmos juntinhos“, podia nos remeter a uma cena com uma determinada intensidade desejada e a um clima buscado. Na música acima referida encontramos um procedimento diverso:

“No universo transito
Da Terra em Transe até a Santa Sangre
Imerso em Torrents
Raising Arizona
A Dupla Vida de Veronique
Esposa Turca
Viva em coreano
Como o Velho Kar em Dias Selvagens”

Aqui o Jovem Maka, passa a sair do mero referencial a climas retratados em filmes e diretores de sua predileção para alcançar uma verdadeira edição, uma montagem poética de origem cinematográfica. Ao construir um verso inteiro com títulos de filmes, utilizando-os como referências, mas sobretudo como matéria prima mesma de sua poesia, ele talvez consiga inverter o desejo que Passolini cultivou. De Glauber a Jodorowsky, dos Irmãos Cohen a Kieslowski, de Akin a Kar-Wai, a matéria bruta cinematográfica (o conjunto de imagens que forma o filme) se tornam palavras brutas de poesia, montando um calçamento poético rimado. Uma poesia cheia de possibilidades de interpretação, remetendo a universos distintos, mas que aqui são decodificados em seus proprios termos, retrabalhados pelo seu olhar. Uma espécie de pequenos remakes, remontagens insuspeitas.

O verso em questão é possível de ser lido e sentido poeticamente sem necessidade de que se tenha assistido a nenhum dos filmes. O que demonstra um procedimento, um uso superior das referências, da mesma forma que é possível ouvir seu Ep de estreia sem necessariamente ter assistindo ao filme do Danny Boyle. O deslocamento e a apropriação das referências ao ponto de torna-las suas, de fazê-las não mero signo elitista, o que seria uma falsa diferenciação. Pelo contrário, títulos de filmes se diferenciam completamente em sua utilização, da mesma forma que as ideias que o poeta desenvolve de suas audiências se tornam singularidades poéticas. Aqui são outras tantas possibilidades de visões, pelas palavras e não pelas imagens, quadros, enquadramentos através das imagens que sua poesia suscita através da escolha das palavras e não da posição da câmera e das imagens montadas.

Mas talvez exista uma outra intenção mais profunda por trás desses procedimentos até aqui apontados. O cinema talvez seja o local onde o poeta afina o seu terceiro olho, aquele capaz de produzir visões do Real, para além dos nossos cortes de realidade cotidianos, de nossas formações e posições culturalmente determinadas. Os signos cinematográficos amados, talvez sejam um caminho possível para outras tantas realidades, tão diversas quanto os cineastas utilizados. Do Brasil até a China.

Dado a outras formas de desregramento da razão, Makalister parece fazer do cinema seu local primordial de inspiração e reflexão, fazendo com isso de sua poesia um produto do seu pensar sobre o Real mesmo das coisas. Produzindo formas poéticas que nos entrega como material de seu pensamento local através da onde o “reflexo vira matéria”, poética.

No single Breaking The Waves agenciado do filme de mesmo nome do cineasta dinamarquês Lars Von Trier, encontramos outra pista interessante para pensarmos a poesia do Makalister:

“Dupla exposição natural aos olhos desse ser
Qua nada vê, mas tudo capta
Não paga o resgate quando o escombro o rapta
Prestes a nascer outra vez eu morri
Logo perto de você
Me contaram que nem fosses lá me ver
Grato eu fico pelo exílio aos olhos teus
Lembro bem o mal que fez
Underground 1995

Assista e chore

Não estamos numa “party” figurando por cachê
Pelo bem dessa película eu demiti você”

Ora, ao final e ao cabo, é possível entender que a visão é o órgão dos sentidos mais importante para esse poeta, local primordial de onde o mesmo retira sua imagens. Makalister vive os filmes e entende a vida como cinema, local onde apenas através da visão alcançamos o Ser. Sendo a música uma espécie de complemento dessa percepção do Real, porém parte dessas visões. Obviamente isso não reduz a importância das outras artes que lhe servem de referência para suas criações. Mas certamente, nos leva além da simples menção a filmes como se suas composições fossem algum tipo de conversa de gente cult. Fazendo da enumeração de filmes europeus mero capital simbólico, pra subjugar os ouvintes parecendo complexo. 

E certamente para quem esta mais atento, todos os referenciais do cinema e outros precisam passar, precisam ser filtrados por uma vivência. Encaixados dentro de um contexto próprio pra que faça sentido, pois não se trata de critica cinematográfica. Coloque nessa conta, muita música brasileira, literatura, rolês chapados, algum hedonismo, inconformismo e teremos um poeta fazendo rap em alto nível. Não tivemos aqui, a intenção de fechar as possíveis interpretações que os versos cifrados de Makalister nos trazem, mas antes tentar propor uma direção mais concreta para tais tentativas.

Recentemente como ressaltado no inicio do texto, suas linhas tem provocando muitas reflexões, interpretações, porém a maior parte delas cai no erro de tentar psicologizar o porque do uso de determinadas frases. O que ao nosso ver é um erro, pois descola-se uma enunciação de uma obra que segue se fazendo de modo coerente e através de um procedimento “visível”. Afinal como tentamos apontar com essas linhas pífias, o rapper  continua a recorrer a um procedimento formal que vem se repetindo e evoluindo também. O reflexo muda certamente diante do enquadramento que se dá, sendo assim é preciso capta-lo em sua origem e não no seu resultado final.

Escutem a televisiva kkkkkkkkk Laura Miller Mixtape:

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