Estudando Lurdez da Luz, uma MC fundamental do nosso rap acaba de lançar o EP Devastada.

Lurdez da Luz é um nome essencial para a história do rap nacional, dona de uma discografia fundamental a MC soltou um novo EP: Devastada.

Lurdez da Luz

 

Como bem disse a Lurdez da Luz abaixo na entrevista: “Tudo Está”. E certamente a sua obra, a sua trajetória de mais de 20 anos no rap nacional está colocada de um modo indelével na nossa história. Com o Mamelo Sound System, a Lurdez escreveu junto aos seus parceiros Rodrigo Brandão, Professor M.Stereo, entre outros, fundamentais contribuições ao rap underground alternativo que rompia ali no início dos anos 2000 com as 

escolas mais tradicionalistas.  

Impossível falar em jazz rap no Brasil sem mencionar o disco/projeto Ekundayo que contou com participações de Naná Vasconcelos e Rob Mazurek, além de uma pá de outros grandes músicos, e lá estava a Lurdez já bagaçando ao rimar sobre intolerância religiosa. Em sua carreira solo ajudou a contribuir com o que viria a ser tendência ao misturar o rap com o funk, com música eletrônica por exemplo, no já longínquo ano de 2014 (Gana pelo Bang) e construiu uma sólida discografia. No ano passado teve o seu disco de estréia prensado em vinil, o que para uma artista independente no Brasil, equivale sempre a um troféu de reconhecimento.

Este ano a Lurdez da Luz soltou o EP Devastada, um trabalho que apresenta 4 músicas que refletem dialeticamente devastação e reconstrução, tendo a luta política e o amor como forças motrizes para esse movimento, em escala micro e macro política! Entre canto e rima, a MC e cantora poetisa desejo, política e economia afetiva, criando doces, bonitas e irônicas imagens poéticas. Flow, grooves e melodias suaves e por isso mesmo impactantes, ao abrir mão de potentes ideias rompendo com sua singularidade própria e com a maturidade que carrega em sua subjetividade com ideias hoje em alta no mercado musical do rap. 

Diante de tudo isso, entendemos que seria importante recuar no tempo e buscar estudar minimamente a Lurdez da Luz, apresentando ao público leitor do Oganpazan, um pouco de sua trajetória e formação, de sua discografia e ideias. Conversamos com a artista e abaixo você confere a nossa entrevista, dá o play e segue nas ideias:

Oganpazan – Lurdez, um prazer falar com você. E quero começar te perguntando como rolou de você querer fazer rap, quais são suas lembranças mais antigas com relação ao seu ímpeto criativo?     

Lurdez da Luz – O prazer é meu e já começo dizendo que fiquei super honrada com o teor das perguntas e com esse título estudando Lurdez Da Luz! O ímpeto criativo em relação ao rap veio no começo da fase adulta, diferente do consumo do gênero que vem da adolescência, o Espaço Rap na 105 FM ou antes ainda Projeto Rap Brasil na rádio Metro FM, shows no Santana Samba… Até então eu curtia, mas não passava pela cabeça fazer. Eu nunca fui de pensar muito sobre o que eu vou ser quando crescer sabe? Eu só ia vivendo curiosamente a vida, colando em shows de rock, em campeonatos de skate… Sintonizada com as cenas da juventude naquele contexto de São Paulo dos anos 90. Tinha banda com minhas amigas, mas nunca pensava sobre ser profissional.

Foi depois de começar a trabalhar como estagiária em um estúdio de música e publicidade a YB  que é também selo musical de grandes trabalhos e vários artistas,  que vi o fazer artístico de perto que eu pensei: Quero isso pra mim!  Eu tive oportunidade de estar presente na gravação do primeiro disco do 509-E, Mano Brown ali direcionando o que eles conseguiam movimentar em termos energéticos pra fazer música, sabe? Tipo conseguir sair da cadeia pra gravar. Inclusive eu selecionei efeitos pra esse disco tipo o que está em oitavo anjo, eles me pediram: pega lá o som do passarinho da liberdade, eu soube qual era…

Foi então que o Mamelo veio gravar lá. Eu estava escrevendo na hora do almoço em cima de instrumentais gringas. Eu me baseava em movimentos que estavam rolando fora por conta da diversidade de estilos de escrita e produção, tinha Hip Hop instrumental com samples tipo DJ Shadow, tinha o Drum n’Bass com rimas  do Roni Size, tinham várias minas rimando em uns beats sinistros como Jean Grey e Bahamadia, os grupos de turntablism como X-ecutioners, Lyricist lounge com a ideia de spoken word. O negócio estava fervendo, eu fiquei obcecada pela cultura Hip Hop e não tinha outro caminho a não ser fazer, e vontade de trabalhar com palavras e minha voz invés de instrumentos ou fazer beat. Foi algo natural, fluiu pra mim. Parecia que eu faria isso bem, enfim mostrei pros caras do Mamelo meus esboços e automaticamente entrei pro grupo. Foi tudo muito rápido, me foi apresentado palcos e salas de gravação antes mesmo de eu entender o que eu estava fazendo. Fui entendo no processo. 

Lurdez da Luz
Lurdez da Luz com o Mamelo Sound System

Oganpazan – O Mamelo Soundsystem é um dos grupos mais importantes do rap mais underground né, e o Rodrigo Brandão disse em uma entrevista que você foi importantíssima para o desenvolvimento da identidade do grupo. Qual foi a importância desse rolê inicial em sua formação como MC e como artista?

Lurdez da Luz – Nossa que foda ele falar isso, porque ele foi essencial pra que eu me tornasse artista. Fora a minha visão e expressão que foi ele quem alimentou, é como o fundamento da casa as vigas do subsolo, tudo que eu aprendi nesses 10 anos de Mamelo.  Cara muita coisa que eu achava não tão importante hoje eu vejo como algo fantástico. Tipo vamos sair com o boombox pra uma praça em Osasco a noite pra escrever esse som? E eu dizia vamo fazer aqui mesmo no conforto da sua casa… Mas ele era a liderança indiscutivelmente nesse rolê, e esse lado analógico dele é precioso… Quando eu vejo a contra capa do vinil do velha guarda 22 , toda escrita à mão atrás de uma tela real pintada por um artista de rua foda que é o Nunca, e então fotografada para enfim virar o encarte do disco, na época CD, eu penso essa é minha escola! 

Isso me acompanha, escolher não que vai ser mais fácil, mas sim o que vai ser melhor pra aquele som pra aquela obra. 

Oganpazan – Aproveitando a deixa, me conta por que o Mamelo Soundsytem acabou? Existe alguma possibilidade do grupo se reunir novamente e lançar trampos novos?

Lurdez da Luz – Acho difícil voltar, mas vou lançar o slogan da Nike aqui: nada é impossível.   Acabou depois que lancei meu disco solo, o que era pra ser um tempo onde íamos trabalhar projetos individuais acabou virando divergências. Eu passei pela maternidade, vivi várias coisas bem diferentes do que qualquer homem viveria e então as ideias naquele momento já não batiam mais. Eu estava me construindo mulher e precisava dessa independência e os caras não iam acompanhar meu texto naquele momento. 

Oganpazan –  No ano passado, o seu disco de estreia solo ganhou uma edição em vinil pelo selo Made in Quebrada. Eu considero um dos grandes disco do underground nacional e fiquei positivamente espantado com esse lançamento, já que como muitas outras pérolas do nosso rap não é um disco comentado. Como foi a confecção deste trabalho a época e, quatro anos após o último disco do Mamelo? O que você vivia e planejava naquele momento?

Lurdez da Luz – Nossa, esse lançamento foi essencial! Eu precisava que isso acontecesse para ressignificar minha história. Foram dois selos o Pindorama e a Made in Quebrada e claro o meu também chamado Lati Ina, que a 12 anos tinha pago tudo pra a obra existir. 

Planejar era algo que eu ainda não fazia na época. Eu sempre fui uma sobrevivente. De alguns anos pra cá que penso mais no que eu quero e em como fazer e esse ano será sobre esse projeto, quando saiu a recepção foi ótima. 

Os meios de música Brasileira da época abraçaram. Eu fazia vários shows, sempre me mexi nesse sentido de bastidores também, me articular pra tocar nos lugares que queria, então o fluxo foi rolando.  

Mas minha realidade já era complexa: era mãe solteira de um filho pequeno. 

Outra coisa que me afastava do meio artístico era a questão de classe social, eu tinha algum acesso por conta da minha história até ali e do meu trabalho, mas não tinha dinheiro, nem a formação, nem sobrenome, aliás no caso da minha família nem estrutura emocional… Tipo um jornalista que disse pra mim uma vez em um restaurante classe média onde estava com outros artistas da música: “achei que vocês se conheciam da FAAP”! E eu que estudei no Orestes Quercia no Canindé, no Prudente de Morais na Luz… Porra! Entendi que ninguém estava sacando da onde eu vinha e que isso era sim importante. Apesar de ser muito mais importante o que você faz com isso e pra onde você vai, as pessoas viam um privilégio. Além do fato de eu ser branca (que já é bastante privilégio), mas viam um que na verdade eu não tinha. 

Ter estudado com beltrano e sicrano e por isso estar inserida em alguns contextos não era real, sabe? Quantas vezes voltei de trem depois de tocar nos maiores palcos de SP. Cozinhar os legumes da raspa da feira que eu ia no fim pra catar mais barato, criança pequena chorando no meu quarto e cozinhar depois de me hospedar em um hotel de luxo, comer num restaurante chique em outro estado e tocar num festival cheio… Era muita diversidade pra assimilar.  

Lurdez da Luz na época do lançamento do seu primeiro disco solo, em 2010. Foto por Luciana Faria

Oganpazan – Você participou de um dos discos mais importantes, senão o mais importante do Jazz Rap nacional com nomes como Naná Vasconcelos, Rob Mazurek e outros grandes músicos. Como se deu esse projeto e ao que você atribui que um trabalho tão emblemático, esteja aos poucos sendo esquecido?

Lurdez da Luz – Obrigada por isso, baita disco mesmo. E as letras são punk. Já falavam de intolerância religiosa, na época eu só simpatizava com Orixá ainda não tinha dentro de mim não era iniciada. Eu acho um experimentalismo muito louco, mas que deu certo. Bom encontrar com Naná e ainda fazer música com ele sem dúvida é uma das grandes bênçãos que recebi por estar nesse caminho.  

 Sobre esquecimento, tudo está! Sabe aquele lance de brasileiro não tem memória? Isso se aplica demais na música. 

Porém existe um movimento em repensar vinis, em buscar o lado B da música mundial por Djs e ouvintes que existe e é forte! 

Oganpazan – Ano que vem seu segundo disco solo Gana pelo Bang (2014) completa 10 anos e em nossa opinião é um trampo – mais um – pesado e inovador em sua carreira. Comente se possível os desafios para você como MC em um disco que caminhou entre o Funk, o Rap e o eletrônico? Ao mesmo tempo você ali abria uma caixa de ferramentas bem jamaicana. O disco é muito diverso na sonoridade… impressionante!

Lurdez da Luz – Foi o primeiro que fiz a direção artística. ele pode ser menos sólido que o primeiro por conta disso, mas eu acho muito importante, inovador e com várias faixas que são hits. Eu me arrisquei bastante e tem a ver com a busca por liberdade, por ir buscar na rua na vivência mais do que na pesquisa musical.  Como eu disse eu ando por muitos lugares, e as quebradas fazem parte disso. Minha fonte era o que estava sendo produzido nos guetos do mundo, tava ouvindo muito o que estavam fazendo na África atual e os rolês no Rio De Janeiro e Salvador foram fundamentais pra concepção do disco. Mas não imaginava que ia causar tanto estranhamento, tanto em público  quanto em mídia quanto nos contratantes… Enfim, mas pouco anos depois mostrei que meu protótipo estava coerente, o funk e o rap e o eletrônico se misturam de fato principalmente entre as pessoas LGBTQIA+  que é sempre quem traz as tendências e hoje a narrativa mais potente dentro o Rap embora os homens héteros continuem sendo muuuiiiitooooo mais ouvidos e considerados inclusive do que mulheres. 

Lurdez da Luz

Oganpazan – Sem nos determos muito mais na sua extensa discografia, Lurdez, conta um pouco como se deu o processo de composição de Devastada? Apesar do nome do EP, o disco é leve, transborda amor, tem uma perspectiva de luta mas não perde a doçura.

Lurdez da Luz – Sem perder la Ternura siempre!!! Foi longo o processo e não acabou inclusive… Tenho mais músicas pra lançar que são da mesma fase e completam o conceito desse EP.  Destrinchar o amor foi a forma de conseguir  se manter na trincheira que pessoas conscientes foram jogadas pra lutar nesse último governo assolado pela pandemia mundial! Os artistas então, tiveram que se repartir, se reinventar é pouco.  

A faixa que dá título ao trabalho foi a primeira que escrevi, refletindo como as estruturas sociais atravessam nossas relações pessoais, e percebi que é disso que eu falo o tempo todo, quanto sua história pessoal se mistura com a história coletiva e a noção de identidade passa pelo que o outro vê, por gênero, por classe e território. 

 Foi um disco construído por mim, pelo Quebrante (dupla formada pelo Dj Will Robson e o baixista Matthieu Hébrard) e pelo  guitarrista Allan Spirandelli, não tivemos a figura de um produtor musical, fomos nós que empiricamente fomos construindo a estética musical do disco. E alguns músicos fundamentais também como o Marcelo Cabral, Dudu Tsuda, Paulo Serau que escreveu os arranjos e voz e a linda Mariana Moreira nos backings.

Oganpazan – Lurdez, conta para gente como você tomou contato com o legado da grande Célia Sanchez, e como você vê a importância do acesso a essas histórias de mulheres fundamentais, que nos últimos anos tem crescido? Hoje é possível dizer que o grande público passa a ter acesso a livros, filmes de pensadoras e artistas que há 10, 15 anos não rolava como Angela Davis, Lélia Gonzalez, Grada Kilomba, Bessie Smith etc… 

Lurdez da Luz – Olha queria que fosse realmente um grande público, mas sim já é mais popular que antes, eu acredito que estamos evoluindo. As ideias dessas mulheres despertam tudo que foi silenciado nas demais, simbolizam todas as que lutaram, mas que ninguém sabe o nome.  A arte da Grada Kilomba me tocou nesse ponto da multidisciplinaridade e de pensar o que é decolonizar sua arte, é uma provocação necessária inclusive que se estenda pro dia a dia, entender por onde você caminha afinal. Vou dar um exemplo: conheci um homem, vivemos algo intenso, isso começa a ficar confuso depois a esfriar pergunto ao tarot com sua base de conhecimento europeu mesmo que não cristão, e veio a ideia de chamas gêmeas, que é algo como se nossas almas tivessem sido uma antes de se separar em duas nesse plano físico! Veja, essa ideia causava ansiedade, torna mais difícil de seguir em frente uma vez que obviamente o caso não tinha solução. Mas uma vez que eu vou pensar sobre a filosofia Yorubá da religião que eu entrei, esse conceito não existe, podemos ter questões de destinos que se cruzam, mas minha alma é minha sabe… Enfim divagações… Mas  ideias decoloniais aplicadas em nossas vidas pode direcionar uma transformação coletiva em um rumo muito positivo. 

Oganpazan – Vivemos um momento onde muitas letras de rap feitas por mulheres exaltam relações líquidas, meramente casuais e nada contra, mas em Sede de Sertão, parece-nos que uma outra perspectiva é levantada. Ao invés, da afirmação de uma independência que parece prever o desapego, nós temos uma construção desejante que consegue equilibrar independência e um outro cultivo da alteridade, estou errado?  

Lurdez da Luz – Então o lance da mulekada de coração gelado é muito compreensível.  Para as mulheres principalmente junto a isso focar mais em dinheiro, em poder do que em amor. Isso é uma revolução de gênero também.  É uma subversão da lógica imposta pra mulheres. 

Porém eu curto um romantismo, e se eu trouxer a crueldade pra minha cama como fica? Eu quero é beleza e poesia na minha vivência, a questão de compromisso já é outra história,  são acordos que podem ir se estabelecendo com o tempo. 

Sede de sertão fala também sobre a impossibilidade de viver fisicamente um encontro né, super a ver com a pandemia, viver telepaticamente,  e até como é difícil viajar o Brasil, fala desse Brasil continente que a pode ser mais barato ir pra Portugal se marcar, mas isso é só uma entrelinha do texto, o ponto principal aqui é o direito ao prazer mesmo quando a situação tá desfavorável. 

Oganpazan – Lurdez, para finalizar como você tem visto a recepção deste novo trabalho e como é estar há mais de 20 anos no rap, sendo mulher e conseguindo produzir tantos trabalhos com tanta qualidade? 

Lurdez da Luz – Poxa tô feliz com os elogios nas perguntas. Qualidade vem primeiro mesmo, principalmente soltar músicas inspiradas, aquelas que sobrevivem ao tempo esse é foco mais que quantidade. Quero muito soltar mais sons com mais frequência.  Foram anos loucos aí, então vamos focar no presente e imaginar o futuro.  Sem investidores a música não chega onde deveria chegar, a ilusão do viral não cabe pra trabalhos como meu nesse momento, se a uns anos já foi possível hoje não é mais, sem ads sem o jabazinho do Spotify (oooohhh tem isso?) Uhummm, publicidade que fala,  vira menos. Mas meu som tem força, é algo que tem mesmo, então sempre gera interesse em pessoas distintas e interessantes que trabalham em lugares que comunicam e propagam, em um público que precisa ser ampliado, mas que existe e que sou muito grata. Eu fico orgulhosa também pensando na coragem que tive de começar e continuar quando esses espaços musicais todos eram hostis a mulher e ao rap.

Ser mulher te deixa em desvantagem em tantos aspectos, mas como eu disse tá tudo em evolução e já foi muito pior em todos os gêneros musicais e óbvio na sociedade em geral. Os núcleos conservadores desesperados pela manutenção do poder estão gritando, mas por outro lado temos muitas e muitas vitórias diárias, então é nisso que vou colocar minha atenção. 

-Estudando Lurdez da Luz! MC fundamental do Rap Nacional está com o EP Devastada, na pista.

Por Danilo Cruz 

 

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