A elogiada série da HBO Lovecraft Country encerrou sua primeira temporada a pouco, neste texto fazemos algumas observações sobre a música!
A bem sucedida série Lovecraft Country recentemente encerrou sua primeira temporada e certamente agradou a todos que se interessam por produções negras na tv e no cinema. Produções essas que tem crescido bastante nos últimos anos, com uma variedade cada vez maior em termos das perspectivas adotadas. E esse é o caso de Lovecraft Country, criação da Misha Green e baseada no livro homônimo do escritor Matt Ruff. e como o título já referencia com uma forte influência da obra do escritor H.P. Lovecraft.
No entanto, a atmosfera lovecraftiana é o ambiente “fantástico” para o rico desenvolvimento de um drama que é coletivo e que coloca em xeque não apenas os personagens principais e periféricos como todo o conjunto da população negra e de outras minorias, na diáspora africana. Logo no primeiro episódio uma referência visual nos chamou atenção, pois utilizada de modo certeiro é uma excelente instrumento para intersecção de problemas que a série aborda.
Se trata de uma fotografia famosa da fotojornalista pioneira Margaret Bourke White, uma mulher que rompeu barreiras em sua carreira registrando fatos históricos. Primeira mulher a ter permissão de fotografar na União Soviética nos anos 30, ela cobriu a segunda guerra no front e fez ensaios notáveis ao longo de sua carreira, como seu trabalho durante a Grande Depressão. E foi através de uma fotografia clássica retirada durante o período da grande depressão americana e deslocando-a 13 anos (a série se passa em meados da década de 1950) à frente que já no primeiro episódio somos levados a pensar sobre as desigualdades tão presentes antes, como hoje, na américa não branca!
Ao nos deparamos com essa referência visual, lembramos imediatamente da capa do disco There’s No Place Like America Today (1975), álbum emblemático do cantor, compositor e instrumentista americano Curtis Mayfield. Curtis utilizou a mesma fotografia neste que é sem dúvida alguma um dos seus melhores trabalhos, apesar de sua ampla discografia. Um disco que aborda certas questões discutidas na série, como a questão da fé, a importância do amor entre o povo negro, a violência no gueto, entre outros temas. Lovecraft Country junto aos monstros, a magia, às sociedades secretas, a ficção científica, apresenta um retrato cru e em movimento do grande vilão da situação que cerca homens e mulheres negras em diáspora: A branquitude.
Mas não se engane, não há panfletarismo algum, tudo decorre a partir do contexto em que a população negra viveu e que de certo modo se vive, ainda hoje nos EUA, e em outros países da diáspora africana. Não estamos diante de uma série de denúncia do racismo americano, o que torna tudo mais impactante. Há um choque durante toda a série, que se dá entre o campo do fantástico e do terror, e uma certa normalidade – não menos aterrorizante – presente no cotidiano dos personagens negros e protagonistas da série.
Um dado curioso é o fato de a série se passar nos anos 50, e mesmo assim com a inserção de músicas atuais, não haver uma anacrônia das cenas, como é o caso de raps e traps. Há certamente uma permanência histórica, que a série evidencia, quando se trata dos racismos estruturais, que infelizmente faz funcionar músicas de eras diferentes como se ali pertencessem. Mas não apenas pelo conteúdo de suas letras, senão também através do ritmo e da força com que a música da diaspóra consegue retratar a experiência negra nas américas.
Um exemplo notável desta relação se dá durante uma blockparty (festas de rua) da época onde temos a inclusão de uma música Tierra Whack cai como uma luva… Porém na sequência vemos uma referência visual a grande Sister Rosetta Thorpe, no personagem de Ruby que se apresenta na mesma festa, e tudo tá bem resolvido. Não há uma defasagem entre o passado e o presente, antes há essa continuidade natural, talvez fruto da permanência ancestral naquilo que de mais novo e autêntico é produzido na diáspora!
Essas relações também encontram correlação no roteiro que fala muito de ficção cientifica da época, fazendo referências a escritores desse gênero literário que eram sucesso na época. É como se o contexto racial e social da época retratada entrasse em um buraco de minhoca e se teletransportasse inteiro em sua essência para os tempos atuais. E ao sermos colocados diante daqueles monstros fantásticos, já reconhecéssemos o terror de onde provém: da branquitude. E nesse sentido entre os xerifes da KKK e os animais selvagens e fabulosos, há uma diferença primordial: os segundos não escolhem vítimas. Da mesma sorte, como essa diferença se mantém com maior rigor quando somos defrontados durante a série, com o assassinato brutal do jovem Emett Till.
Da mesma sorte, as questões de gênero e de sexualidade que são abordadas pela série, batem firme nos cernes da desigualdade e da opressão: a estrutura em que são geradas. Seja no caso do casamento que encerra a mulher num papel social definido pelo patriarcado branco e reproduzido dentro das comunidades negras. Seja da mesma forma, a homofobia reproduzida por homens negros levados quase sempre a serem vistos como animais, agressivos e hipersexualizados.
Obviamente, diversas mudanças ocorreram nas últimas décadas desde a metade do século XX, porém boa parte dessa força e da ausência de surpresa com relação a como o contexto é apresentado, se dá pelas permanências que vivenciamos ainda hoje. Misha Green teve bastante astúcia em adaptar o livro que serviu de material base e criar uma narrativa impactante, colocar referências históricas inconfundíveis e precisas, e ao mesmo tempo ancorar seu trabalho, sua história no presente. Estamos longe, infinitamente longe de nos situarmos em sua sérue num passado mítico ou numa história fantasiosa de terror e ficção.
Muito pelo contrário, aqui em Lovecraft Country os gêneros literários transpostos para o audiovisual são utilizados para reforçar o que poderíamos chamar de “realismo histórico”. E isso também quando se refere a “música do futuro”, utilizada aqui. Uma outra referência que pode parecer datada, é a utilização da clássica “Whitey in The Moon” do grande mestre Gill Scott-Heron. já no segundo episódio, a faixa é utilizada em narração durante um momento onde um dos episódios se finaliza e é deslocado de seu contexto real para o aspecto talvez mais ficcional da série, a relação com sociedades secretas.
Nesse caso uma sociedade secreta que visa “reestabelecer”, o paraíso perdido. Ora, esse apelo de busca da pureza perdida não poderia ser mais atual né.? Mais real, quando se trata de fascismo, nazismos e discursos supremacistas. Aqui, a série apresenta de modo clandestino o cerne epistemológico, através do qual a Alemanha do final do século XIX e começo do século XX principalmente, forjou para si um passado de pureza racial, heróico e grandioso, que foi fundamental para a construção das bases do Nazismo.
Essa inserção em relação direta com os tempos em que vivemos nos mostra o quanto estamos perdidos em “pautas” que muitas vezes nos remete ao fato histórico fantástico do branco ter ido a lua (Whitey on the moon), hoje discutido com cores de seriedade, sobre sua veracidade. Enquanto o supremacismo branco norte-americano, o racismo mais escancarado no Brasil e o seu projeto genocida, eclodem de vento em popa.
Em tempos de terraplanismo, fakenews, negacionismos e discussões vazias na internet, somos confrontados com o delírio mágico da branquitutde tendo a existência, o corpo de um homem negro como veículo, Isso deveria nos dar algo a pensar, não? E dá, com bastante força, Lovecraft Country encerra nessa primeira primeira temporada algumas linhas de força que são fundamentais e que tem no chamado a se reapossar da “magia” dos nossos antepassados, talvez um dos seus pontos chave.
O que na série poderemos ver ao longo dos 10 primeiros episódios, tem haver bastante com o conhecimento da história e de nossa própria história, dos nossos antepassados e de suas lutas, de nossas origens. Pórem, não como a branquitude que delira com o paraíso perdido, mas para toda a abertura de criação de outros possíveis modos de ser que a aproximação com quaisquer que sejam os elementos civilizacionais do continente Africano pré colonialisno, pode nos ofertar. Elementos esses guardados e de certo modo atomizados nessa diáspora africana em que vivemos.
Daí, que nos parece fundamental essa utilização feita na série das músicas da “ancestral” e da “atual” música negra americana. Mas o mesmo pode ser transpassado para outras experiências em diáspora. A música guarda sempre algo de muito profundo, guarda sempre algo que resiste a morte e a escravidão, que persiste para além da violência e do sofrimento. E nos parece aqui, um excelente exemplo mágico. Se apropriar de BB King, Frank Ocean, de Gill Scott-Heron, Tierra Wack, Nina Simone, é fundamental, pois em sua arte estes guardam uma força que vem sendo transmitida a muito. E isso, obviamente vale para os nossos artistas também…
De resto, a série é rica em possíveis debates, já quenos abre muitas perspectivas. É uma excelente peça que vai muito além do entretenimento, para alcançar o cerne, o coração e o espírito do racismo e da braquitude.
-Lovecraft Country e a magia música negra!
Por Danilo Cruz