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Lheo Zotto & Sumidade em uma “Biografia da Sujeira”, unindo gerações do Rap Nacional!

Lheo Zotto & Sumidade

Lheo Zotto & Sumidade lançaram um EP lindo em sua manufatura, do que de melhor se pode extrair de sujeira no Rap Nacional!

Foto por @renata_reis

Se há algo bonito de se observar criticamente em uma cultura é perceber as trocas horizontais entre atores da mesma, apesar de serem de gerações diferentes. Podemos sentir nessas trocas a perpetuação da cultura, um diálogo assimétrico em termos de experiência musical mas que se resolve no ponto da criação, onde uma geração insufla a outra em termos de continuidade mas também de ruptura. E é sobre isso, principalmente, que nos tocou nesse EP delicioso chamado Biografia da Sujeira.

O MC mineiro Lheo Zotto, uma das figuras primordiais a se conhecer quando se trata da história do nosso hip-hop e obviamente da história da cultura mineira de gênero rap, se uniu ao jovem produtor Sumidade e o resultado ficou excelente. A lírica extremamente experimentada de Lheo Zotto se unindo às produções tortas do Sumidade nos apresentou realmente uma escrita embebida de vida em uma sonoridade lamacenta, suja, e por isso mesmo prenhe de vida. 

-Leia sobre o Lheo Zotto no Oganpazan 

Composto por apenas 5 faixas, “Biografia da Sujeira” se apresenta como um trabalho direto e criticamente leve, pois afirmativo de um modo que onde não há tempo de olhar para fora, para indústria cultural e seus pop raps feitos por “fake artists”. Aqui, o “game” é a vera e a dupla polui a subjetividade de quem escuta, nada limpinho e clichê como muitas vezes pulula no rap nacional, embebido em “conceitos”. Não há desperdício e o concentrado é realmente um “chorume” da excelência de beats e rimas, de flows, timbres e samples muito bem utilizados. 

-Leia sobre o Sumidade no Oganpazan

Um projeto que nasce com gostinho de quero mais, pois tão bem alinhavado rítmica e sonoramente, que remete inconscientemente há todo um universo em expansão. Por aqui, a primeira audição não consegue saciar a forte impressão recebida após o play e ao fim da última faixa, o repeat é obrigatório. A narrativa que subjaz ao longo da audição, nos mostra um trabalho que utiliza o adjetivo “sujo” como um verbo no modo infinitivo. Sujar aqui é a lei e o ethos de uma dupla que leva bastante a sério a posição alcançada e as intenções dos seus trabalhos. 

Com décadas de serviços prestados à cultura Hip-Hop, o MC e produtor Lheo Zotto é um raro exemplo de um artista que oriundo da década de 90 se mantém relevante e atuante como poucos. Já o Sumidade é um novo valor que tem agregado uma forma de produção muito única ao rap nacional. Ainda com poucos trabalhos na pista, já demonstra ser um dos nomes mais interessantes a surgir nos últimos anos e em especial dentro da estética do boombap/drumless, neste século XXI. 

E é nesse encontro de gerações, onde nossa cultura só tem a ganhar, que o verbo Sujar se faz criador de um modo que interpõe a ação não de modo reativo, mas ativamente. Como um modo de ser da música rap ligada a cultura Hip-Hop que em nosso país segue sendo atacada pela indústria cultural, ávida a transformar tudo em mero pastiche, mercadoria vazia de repetição infinita de clichês e discursos ideologicamente contrários à cultura Hip-Hop. Uma recusa ao fazer pop que em si mesmo não carrega problema algum, mas que se tornou a única mercadoria aceita pelo mercado cultural. 

Sumidade é um dos beatmakers mais interessante surgido nos últimos anos.

O Boombap nacional – e obviamente as “batidas” drumless – se tornaram nos últimos 3 ou 4 anos, uma reação similar ao que foi feito no jazz durante o auge do Swing das grandes orquestras. Contrapondo-se às construções mais frenéticas e cadenciadas do Trap, ao discurso de cunho neoliberal, meritocrático, a misoginia e as linhas que parecem ser escritas por uma completa ausência de técnica e qualidade poética, o boombap feito no Brasil, se inspirou muito no sucesso de nomes como a turma da Griselda, de Roc Marciano entre outros. 

E como tudo, quando se trata de um “transplante” cultural, vem desenhando um outro cenário possível, com muitíssimos nomes produzindo um som mais reflexivo, inventivo de narrativas, agressivo em alguns casos, mas sobretudo em plena oposição estética e ideológica ao sucesso hegemônico do Trap. E é neste contexto, que a “Biografia da Sujeira” se insere, como uma escrita feita a partir das vidas dos autores mas também doadora de vida ao beber da sujeira vital que as ruas imprimem a arte negra e periférica fruto da cultura Hip-Hop.

A track que abre o trabalho já nos dá uma bela introdução das fontes e das intenções presentes em “Biografia da Sujeira”, em um loop ricamente ornado pelo Sumidade, o MC Lheo Zotto em poucos versos cospe esse “Mergulho no Limbo” como espaço criativo. Longe, mas muito longe de fazer qualquer tipo de apologia da precariedade, Lheo se coloca nesta apneia poética em um espaço onde o próprio artista se reconhece à margem, e de lá retira forças para continuar. 

Na sequência, esse processo continua com a faixa homônima ao trabalho, numa batida seca, tocada pelo Sumidade que acrescenta no processo, de modo analógico um loop, tornando a simplicidade potente do beat de “Biografia da Sujeira” uma verdadeira carta de intenções. Lheo Zotto emula enguios, ao produzir os versos capazes de colher todo um jardim do lixão de sua caneta. 

Não se trata de mera metáfora, mas do entendimento das próprias raízes da cultura Hip-Hop, nascida das baixas tecnologias inventivas da Jamaica, dos escombros e da guerra social promovida contra negros e latinos em Nova Iorque, nos Estados Unidos da America. Na faixa em questão, Lheo começa a desenhar um mitologia que muito encontra eco nos clássicos do quadrinho “O Monstro do Pântano”, criação da dupla Lein Wein e Bernie Wrightson do início dos anos 70 e que recebeu um reboot revolucionário nos anos 80 por parte de Alan Moore. 

Faço essa aproximação porque, a ideia de uma “escrita viva da sujeira” presente no EP, tem diversas analogias com pedaços da história em quadrinhos, acima referida. Seja com a ideia de mergulho no limbo e ou com a noção de que algo sujo é bom, vivo e capaz de manter a vitalidade de uma cultura. Nos quadrinhos do Monstro do Pantano, o personagem de Alec Holland é alguém que desenvolve um fórmula capaz de fazer a vida vegetal nascer mesmo em desertos e é morto por antagonistas que desejam esta fórmula, se transformando assim é um “Elemental” nos pântanos da Louisiana nos EUA. 

É neste sentido, inicialmente que ouvindo o EP antes do lançamento identificamos esses paralelos presentes entre o disco e a mitologia dos quadrinhos do Monstro do Pantano. E sendo algo que percorre o disco como uma possível senão inspiração, como um paralelo criativo. Na faixa “Biografia da Sujeira”, a certa altura tal qual o “Monstro do Pantano” Lheo Zotto nos canta: “Esconjuro a maldição do Caramujo, também tenho coração tipo o dito cujo”, numa reivindicação de humanidade similar ao herói dos quadrinho, mas que retira a referência da obra do De Leve no grupo Quinto Andar. 

Porém, os deuses que regem o Orí de Lheo Zotto são africanos e recebem o nome de Orixás, e Exu é referenciado na faixa dupla “Mais Asé, Mais Fé”. Que recebe o complemento da sequência com “Amuleto”, uma música em homenagem a amada, sim, esse monstro dos pântanos de Uberaba também possui uma amada! É talvez aquilo que chamam inconsciente coletivo, pois a criação das faixas presentes neste primeiro volume de “Biografia da Sujeira” não possuíam uma inspiração calcada na história em quadrinhos, mas na nossa forma de ver está lá, como uma potente simulacro.   

E a nossa prova “cabal” dessa aproximação é exatamente a faixa Elementais – conceito criado por Alan Moore no seu reboot da história – que como um excelente simulacro atualiza dentro do espectro da Cultura Hip-Hop, seus elementos como forças ancestrais. Colocando em jogo o “parlamento” da cultura na forma dos Breakings, DJ’s e MC’s, Lheo Zotto desfila com elegância no beat cadenciado do Sumidade, em uma das músicas mais bonitas em homenagem ao Hip-Hop no nosso país. 

O pequeno EP – seu primeiro volume – se encerra com a música “O Dono da Escolha” uma pesada afirmação de tudo dito acima, “não me embrulho e nem encalho na bolha, de frente pro espelho, o Dono da Escolha”. Apesar de econômico nas linhas, Lheo Zotto é certeiro demais nas miras, preenchendo a faixa com a certeza do que escolheu para si, enquanto MC. Sem chororô de injustiçado, o artista que tem construído uma obra realmente gigantesca – no ano passado foram 12 EP’s no projeto Escambo – segue como um anti-herói diante de um mercado que não valoriza a cultura. 

Apesar dos milhões de motivos para desistir, Lheo Zotto segue renascendo nos pântanos sonoros do boombap, ao longo de mais de 30 anos de atuação ininterrupta na cultura hip-hop, desta vez com a produção do Sumidade. Esperamos, a parte dois desse projeto, que é uma aula viva de uma sujeira imortal. 

 -Lheo Zotto & Sumidade em uma “Biografia da Sujeira”, unindo gerações do Rap Nacional!

Por Danilo Cruz 

 

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