Kinema-Underismo, visões de jovens pretos na luta em uma cidade que quer enterrar corpos negros, eles seguem experimentalmente mais vivos!!!
A força artística e política do cenário do hip hop em Salvador possui diversas causas, que poderíamos resumir a alguns fatores que nos parecem determinantes. Há nessa cidade predominantemente preta, a mais preta fora de mãe África, uma força ancestral/musical que se desenvolve ao longo dos séculos de modo ininterrupto. E ao mesmo tempo estamos hoje, pós-escravidão da população negra em nosso país, em um dos estados da república onde pretos são mortos como moscas, e a cada dia de modo mais explícito.
Com um aumento exponencial do extermínio da juventude negra num governo de esquerda, o espaço de movimentação para essa mesma juventude fica mais estreito. Diante de dificuldades dessa ordem, acrescentando-se aí uma das capitais com a maior taxa de desemprego do país, os jovens mais saudáveis entre o todo de nossa cidade caminham para caminhos menos óbvios. Hoje o hip hop é um desses caminhos, que já foi mais forte no samba, na música popular, no samba reggae, no rock, mas que hoje encontra no Rap um volume maior de aderência.
Quando nós falamos de um grupo ou de artistas, sempre buscamos mostrar o quanto esses exemplares singulares são necessáriamente frutos de uma história coletiva. Sendo assim, não possuímos o mal hábito de eleger estrelas, e pensamos que com o Underismo o buraco é sempre um pouco mais embaixo. Enquanto uma constelação de singularidades, esses jovens negros conseguiram algo muito raro em grupos de rap no Brasil. Eles comungam do mesmo objetivo, mas são liricamente muito distintos entre si, e muitas vezes caminham por sendas muito diferentes. Lembrando o famoso grupo carioca Quinto Andar. Porém, o que os unifica é que a luta deles é a do domínio de sua arte, e nesse processo eles não tem medo de experimentar.
Em um mercado musical que recentemente segue buscando incorporar o rap, esses jovens fazem cursos técnicos, faculdade, trabalham, ao mesmo tempo em que batem o pé em um trabalho que apresenta uma estética sem par no Brasil. Em sua força expressiva comunga luta antiracista e humor, construções poéticas vigorosas e um charmoso desleixo, e a experimentação anda lado a lado com a assimilação e transformação de linguagens populares.
Esse dado nos parece muito relevante, pois não se trata aqui de justificar algum nível de superioridade acadêmica, ou da posse de um capital simbólico elitista. Não se trata nunca disso, quando falamos da cultura hip hop, que é fruto das ruas, de onde ela emana sempre com mais vigor. No entanto, isso nos demonstra uma coisa que nos parece também fundamental para entendermos o trabalho do Underismo, mesmo “se despindo de suas roupas e vestindo as calçadas”, eles buscam outros níveis de melhoria para suas vidas. Não estão de bombeira!
No hip hop em Salvador, e na Bahia de modo geral, existem excelentes iniciativas de renovação de linguagens. Artistas que sempre apresentam trabalhos muito bons, mesmo diante de uma invisibilidade já programada pelo eixo, e que agora inclusive tem sido prospectado, para melhor manter o coletivo invisível. No caso da Underismo existe um aspecto que pode ser viagem minha, mas que sempre me toca profundamente como uma espécie de projeção.
Eu vejo o Underismo como uma sala de espelhos do que pode ser a juventude negra baiana. Ela pode ser gastona, bonita, orgulhosa de si mesma e sobretudo politicamente muito bem constituída. Pretos e Pretas Chaves. Para além da lacração é possível e mais do que desejado que essa juventude negra caminhe para um desenvolvimento mais autônomo, pois como vimos acima entre o DEM e o PT, os corpos negros na Bahia, seguem sendo a carne mais barata do mercado.
Hoje formado por Alfa, Ares, Senpai, Kolx, Vulgo Moura e Nobru, esse coletivo passou por um 2019 morno de lançamentos, tendo soltado o hit Pretxs Chave em uma collab com a marca DuGueto e recentemente o clipe das faixas Peças/Drift, com produção do Bruno Zambelli, um dos melhores audiovisuais do rap nacional no ano. Vindo do EP Resíduos (2018) e a Demotape lançada no natal do mesmo ano. E como dizia o grande poeta Zizo: “Até a Anarquia precisa manter a tradição”, no filme Febre do Rato do diretor Claudio Assis, e o meninos sabem disso.
Nos entregam agora esse filme, essa experiência audio visual também no natal, porque a tradição precisa se manter. E essa produção nos remete para uma outra conquista do grupo, pois se nos parece um fato que ainda sem lançar um disco que os fixe como um dos melhores grupos nacionais da nova geração, já nos parece certo que o público baiano e alguns expectadores mais atentos ao longo do país, já os tomam por essa conta. Ora, os manos lançam um produto audiovisual que os coloca no rumo de buscar um domínio na produção das imagens. aqui registrando a breve mas intensa história do coletivo.
O chapeleiro maluco, esse sorriso sem gato que é o torajjjosu (leia-se ratosujjjo) é o responsável criativo pela obra. Uma obra que se mostra já de saída marcante, por apresentar uma estética própria e constituída dos olhares de profissionais do audiovisual baiano assim como de registros de fãs e dos próprios caras. O que as imagens nos dão a ver ao longo do curta metragem, é uma resignificação dos olhares lançados ao coletivo, ao mesmo tempo em que registra-se de modo documental os rolês e os corres, assim como o processo criativo dos caras. Produzindo uma memória que reflete sobre si mesma, uma memória que não é apenas registro burocrático de uma sucessão de imagens, mas que se insere dentro de uma memória coletiva.
Aquela juventude que se perdeu das armadilhas, que fugiu para criar, que se encontra para fazer música, fumar maconha e gastar com amizade e irreverência em doses cavalares. Os shows explosivos que são os bailes da Under, um duplo perfeito e preto, de bailinhos caretas, onde a beleza jovem de pretos e pretas de Salcity se encontram e se reconhecem. Partes infinitesimais de uma mesma história, de um devir negro que é recortado e remontado com inteligencia e um senso estético-cinematografico que nos lembra muito os registros do russo Dziga Vertov, no começo do século.
Esse Kinema-Underismo não se trata apenas deles, é novamente um espelho de possibilidades, reflexo de imagens de uma juventude combativa, alegre, e muito bem informada/direcionada contra o sistema. Um pensar audiovisual contra a produção de opiniões preconceituosas e justificadoras do genocídio da juventude negra, feitas pelos nossos comunicadores de massa, aqui exemplificados por Adelson Carvalho e Varela. Cameras portáteis que registram a escola da rua, transmitida pelo instagram numa sessão de freestyle com Ponci e Senpai. O culto da Under filmado por fãs do coletivo. Os registros dos belíssimos clipes Prxto Chave e Drift/Peças, pelos artistas Ramires AX, Bruno Zambelli e Lucas Raion, respectivamente. A maior parte das imagens são do meliante Gabriel Nogueira, o homo imagens do Underismo! Assim como Felipe Correria também tem colaboração nas imagens.
Através da montagem desses recortes e da boa utilização das novas tecnologias, o filme: DVD UNDR: Juventude Perdida (2019) até na escolha do nome acerta. Como tentamos mostrar acima, o Underismo é uma das possibilidades da nossa juventude, que é sempre vista como perdida, ao assumirem os signos que lhes são mais próprios enquanto pretos periféricos. É também a juventude que tenta ser “recuperada” pelas câmeras de tv dos programas sensacionalistas. É por outro lado, a juvente perdida para o extermínio genocida do estado brasileiro.
É uma juventude que perde seus referenciais muito cedo e desconhece a nossa história como desconhece o grande Zózimo Bulbul que ilustra a capa dessa matéria, ou que como baianos desconhece o nosso grande Mario Gusmão. Dois grandes referenciais quando se fala em cinema negro e brasileiro. O fato é que a Underismo é um facção e vem se constituíndo pouco a pouco em uma referência para os seus iguais, e para as próximas gerações.
Postura, Criatividade, Combatividade e Orgulho, assistam esse filme e aprendam!