Kelefeeling: Verso Livre do Don L nos tira do Jejum com uma taça de vinho modesto e encorpado, novo lançamento do mestre cearense
Sexta-feira, cinco do seis, eclipse lunar em sagitário. No céu, cenário intense, muita gente grande reunida na conjunção de planetas quentes discutindo em faíscas marcianas os futuros ruptores da galáxia. Na terra, eu – que acredito em astrologia e na força do materialismo exótico – frita de um dia frito de trabalho e sensações de intensidades eclipsares, recebo na caixa de entrada do instagram o verso livre do Don pra dar minhas impressões digitais no site do Oganpazan.
Ouço a primeira atenta e dura. A segunda, atenta e crua. Começo a escrita por volta da décima segunda escuta e Kelefeeling: entrei no feeling. Danço e digito – dígito do algo-ritmo do Dom-L bate sempre certo – tenho dito. Difícil escrever sem rasgar, pois Don é mestre. Mas a maestria também traz um peso: ouvidos vampiros sedentos por mais uma taça do sommelier das rimas tão sofisticadas quanto de verdade. Rimas que marcam um brinde entre as marquises de Fortal e os Arranhas-Céus de São Paulo. Rimas que são encontro marcado na cama entre a vontade de fazer sexo e a necessidade de fazer luta.
Mas isso é o Don L de sempre. A que veio Kelefeeling? Reafirmar a capacidade do Gabriel fazer mais do mesmo: raps geniais. Sim, o maior desafio da maestria é se manter mestre e por aqui está cumprido. Longe de ser uma entusiasta do novo, como boa capricorniana que sou e me orgulho, gosto muito mais do velho e bom ‘bem feito’. E é o que o também capricorniano – mas nem com tanto orgulho assim – Don L faz em Kelefeeling – o bem feito com o já feito. E feito por quem? por ele mesmo. O bom de ser original também é isso, ainda que o cara repita a fórmula, continua sendo original, porque o bagulho é dele.
É dele o estilo de fazer das figuras de linguagem um parque de diversão, onde se sente muito à vontade para jogar o jogo das palavras. A começar pelo título, que vem de um neologismo que é uma das marcas do Don em sua presença nas redes sociais – kelafé – referência à música mais conhecida do seu segundo disco (Roteiro pra Ainouz V.3) – Aquela Fé. A fonética chama essa junção de duas palavras num terceiro de cacofonia – nome feio da porra pra uma palavra maldita. Mas o Don subverte a gramática e transforma os vícios de linguagem em virtude literária – apesar de adorar a fama de maldito. Seus versos, ao contrário, são bem ditos.
Com aliterações ele ganha impulso pros versos livres de rima e cheios de ritmo: “quero programar, não sei/ quero aquele feeling vil/ quero aquele feeling, viu?/ quero aquele feeling foda tipo é minha história eu posso jogar fora o que não importa nada que me enforca enquanto empilha os dólar/ ow, na estrada uma brisa boa é tipo minha cota, ow”. E ainda diz que não sabe programar, Don? rs
Antes de falar do clipe, que é uma belezura, quero falar das imagens do som, que são muitas e multiversas. Kelefeeling é sinestésica em essência, como a maioria dos sons do cara. Tem cor de uma manhã em tons de ouro mas também de uma noite vermelha como em Doce Dose, tem cheiro de café passado misturado com perfume de um amor futuro, tem consistência de vento na cara pra fora do teto solar do opala. A música de Don é uma nave e nestes tempos árduos eu recomendo uma telepassagem. Tem ainda as firulas eruditas. Gosto de chamar de firulas porque o próprio Don já me disse que não se sente assim, como um erudito. Acho que ele faz ainda melhor, pega a matéria-prima da erudição e junta com as fé-ferramentas do dia a dia, palavras comuns e vulgares, para fazer uma obra útil para desafiar lugares múltiplos – em nossa cabeça, é claro. É aí que quando ele invoca Sófocles e Shakespeare, eu só penso em um espetáculo de deboche com os irmão duro em cana no Poço da Draga. São os épicos à serviço da rua e não o contrário: armadilha pros otários. Afinal, Don é rodado, sádico das ilusões. Banditismo por uma questão de idade.
O clipe está à altura do som: muito com muito pouco. Um rolê de carro, um studio, luz de fim de tarde (rs), um nebulizador, uns mato e uma câmera retrô – muita criatividade. O feeling é oxigênio, flow insano que devolve o ar que faltou em Morra bem, Viva Rápido, só que dessa vez sem contagem; flow insano que repete o ‘bom dia’ de ‘Me Faz Acreditar’, mas sem ‘muito obrigado’, pois ele não é obrigado. Sombra e luz, concretudes e animações, o bucólico e a malícia de mãos dadas numa estrada de Santos ou num apartamento claustrofóbico.
O som conta com produção de Nave e pós-produção do Luiz Café. O beat – simples e envolvente – de Deryck Cabrera amarra uma certa linearidade à anárquica bricolage das palavras. A ousada direção de arte do clipe fica por conta de duas mulheres, a Aisha Mbikila e a Marina Deeh, que também esteve na produção executiva do bagulho. A Aisha Mbikila também dividiu a direção com o Helder Fruteira, que por sua vez, assumiu a belíssima direção de fotografia.Tem outras figuras fodas que tão na ficha técnica logo logo, aqui embaixo, mas é importante dizer que se o clipe tá foda é porque o time também entrou no feeling ilusionista de Kelefeeling.
Acho que falar mais é dar spoiler das sensações que a esperada taça do Don nos presenteia nesse momento tão difícil. Don L atualiza seu compromisso com a transgressão sedutora de seu português-inglês e seu RAP de máximo respeito. Sou suspeita pra falar, dono do meu coração, zerou meu game. Kelefeeling é vinho do bom e o melhor, não é preciso vender um ou dois rins pra ouvir. Mas não esqueçam do engov. Tá de sacanagem ou não?
-Kelefeeling: Verso Livre do Don L nos tira do Jejum com uma taça de vinho modesto e encorpado
Por Bruna Rocha