Karol de Souza é uma verdadeira Vênus no Rap Nacional, e lançou um disco onde suas lutas são a expressão musical de uma subjetividade plena!
É muito bom perceber que existem excelentes caminhos sendo trilhados pelas guerreiras do rap. Ser mulher deve ser sinistro, ser mulher no rap nacional então é bagulho só pra quem tá no nível mais alto da resistência. O ano de 2019 tem sido excelente para quem entende o quanto os trabalhos produzidos por mulheres são essenciais na construção da cultura hip hop.
Perspectivas fundamentais como o feminismo, e temas como a gordofobia, a desigualdade de oportunidades, a espinhosa questão da birracialidade e do colorismo, a incessante busca pela liberdade sexual e a sororidade necessária para a luta contra o patriarcado, são apenas algumas mostras do quanto mulheres são essenciais para a cultura hip-hop. Isso, se essa cultura se pretende permanecer pertinente e atualizada com uma visão interseccional das lutas em voga nesse início de século louco.
A Mc curitibana Karol de Souza, um dos nomes mais relevantes no rap nacional, tanto pela qualidade artística quanto pelas bandeiras que encampa, lançou recentemente um disco que coaduna com essa visão das lutas femininas que ora apresentamos. Grande! (2019) é o primeiro disco de carreira da Karol, sucendendo a mixtape Rap Até o Fim (2013), disquinho que nós ouvimos incessantemente naquela altura. São bons anos de caminhada, mais de 10 de batalha já, e nesse ponto aqui percebemos o quanto é dificil para as mulheres do rap nacional produzirem seu trabalho. Um mc “machohop” com trinta por cento da capacidade técnica e lírica, e do tempo de estrada da Karol já teria ampla discografia.
O título do disco, assim como a Intro (Prod. Mayra Maldjian), já abre os trabalhos dentro de uma ambiguidade muito interessante, e de saída explicitam uma parte importante do que a artista conseguiu transmitir no álbum de estreia com a competência já conhecida, e mais importante: “Daquilo que ela é e se tornou com muita luta”. Karol de Souza não se encaixa nos padrões corporais que são aqueles valorizados no seio da nossa cultura ocidental e globalizada. E daí, o seu “Grande” remete-nos inicialmente para essa questão, o enorme combate que a Mc trava desde a infância por estar fora dos padrões e ao mesmo tempo estar saudável, no sentido amplo do conceito.
Sabe-se das pressões psicológicas que a sociedade impõe a qualquer fuga das normas e dos padrões instituídos. E sabe-se ou deveríamos saber o quanto a nossa sociedade adoece. As sociedades ocidentais (mas não apenas) conseguiram a proeza de estabelecer diversas formas de marginalizar pessoas, desde a infração de leis instituidas no código penal até a não adequação a qualquer que seja o costume, hábito, ou padrão ideal, instituído cultural e aleatoriamente. Entre a Vênus de Milo e aquela que foi por milhares de anos o padrão de beleza e saúde: a Vênus de Willendorf, há um abismo e uma escala qualitativa.
Porém, o mais importante é que Karol de Souza estruturou sua existência abrindo mão de entender-se pelos olhos de outro que não os de si mesma. Isso já era notório para gente ao escrevemos esse artigo. Em Grande! (2019) essa estética da existência é ampliada às diversas dimensões da sua, mas também das nossas vidas, pois o todo do álbum é exemplificação, através de sua própria vida, de como essa obra de arte, possui uma força a qual nós nos rendemos prontamente. Sim, Karol utiliza todo o seu sex appeal e a audiçâo cuidadosa disso mostrará ao ouvinte como Grande! (2019) é um notório exemplo de sua musjcalidade e força nas rimas, pois não estamos aqui falando de mero discurso, todas as ideias aqui apresentadas derivam da fruição atenta da música.
A única crítica que fazemos é a mesma de sempre para discos atuais dos quais gostamos, e esse é caso aqui, ele é curto. Sempre trabalhamos as nossas criticas a partir daquilo que nos é apresentado, não daquilo que poderia ter sido a obra. Mas nesse caso, gostaríamos muito de ver um disco com 18 faixas, grande também em quantidade, quem sabe numa próxima. O fato é que uma série de nove faixas nos presenteia com um bom misto de Beat, linhas e depoimentos, que abordam algumas interfaces dessas formas de marginalização e como a própria Karol às enfrentou, são bragaddocios necessários. E ao contrário de outros discos de luta não vemos nenhum traço de ódio descontrolado. Como se diz, a Karol bate tranquilamente sem descer do salto.
O seu disco de estréia é uma plena expressão de mente e corpo sãos, o que na primeira música do disco “Fé Pra Tudo“, já está demonstrado na serenidade agressiva contra o olho gordo, o recalque, a inveja, Pussy Purple Power. A segunda música “Nem Sou Eu” é um Trap construído em cima de um sample de aceleração de uma moto de motor potente. A excelente produção emula o ruído de comunicação entre duas mulheres envolvidas num triângulo amoroso, através da narrativa presente na música por um storytelling e punchlines nervosos. A necessidade da sororidade fica evidente e presente na postura da amante desavisada por parte da Karol. “Beijo no Pescoço” com a participação da Taliana desacelera trabalhada no amor e no prazer. Uma lovesong calma e que nos transmite aquela serenidade onipresente no álbum.
O “Interlúdio” (Prod. Léo Grijo) é uma excelente declaração da correira que acima ressaltamos. Ser sempre será diferente de ter, e nesse quesito a Karol de Souza, faz alguns anos, tem nos inspirado com seu trabalho. Agora, com esses relatos, a coisa muda de figura. A sequência perfeita para a fala anterior vem a seguir em “Me Deixa Viver“, é importante romper em todas as esferas do capitalismo para ser, realmente ser, viver e não apenas resistir, se bastar. Tá tudo aqui, uma das forças do disco da Karol está necessariamente ligado ao fato de que ela comunica que os rompimentos lhe custa $ algo, mas ainda assim ela é. O flow em em “Rajada” é de ver o cano fumaçando, a curitibana mete linha com peso contra os “fakespeares” e possui a ajuda de uma das maiores da cena e sua parceira de Rimas e Melodias: Stephanie. Que mulher senhores, a preta chega com um flow chapado e diversas punchline que encontra na parte final uma alfinetada com os dois dedos em riste para a opinião do rapper carioca Aori.
O disco traz uma pegada essencialmente Trap, e tem a direção musical do Léo Grijo, com a Mayra Maldjian responsável pela direção artística. O álbum ainda conta com produções dos beatmakers Cabes, Nauak e Grou, e esse músicos todos juntos a Karol de Souza conseguem criar uma obra que combina e respalda musicalmente as intenções e conteúdos líricos presentes ao longo das faixas!
Karol conduz um disco que infelizmente não está na boca do povo mas que merece muito ser escutado e ampliado. “Mens Sana in Corpore Sano” é a última faixa que resume tudo dito acima, e eleva às criticas todas ao seu enraizamento na cultura hip hop. Ela não cede, como diz o refrão: “Bateu de Frente, Eu Sou Tiro, Porrada e Bomba.” ou seja, não bata de frente não. Mas isso não é uma mera declaração para assustar, é uma tomada de posição, diante de todas as fomras de opressão e sobretudo como Mc, parte integrada e relevante da cultura hip hop.
O disco conclui com um breve audio onde o clássico A República do filosofo grego Platão é citado. Ora, é dito ali que Platão alertava para o perigo que a música representa, sim, é verdade, porém advinha quem o díscipulo de Sócrates queria expulso da sua república ideal? Sim, os Poetas! Um salve a Karol de Souza…