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Karen Santana Poderes de Évora (2018) Poesia como Pharmakon!

Karen Santana lança Poderes de Évora (2018) trabalhando dentro de uma perspectiva onde as palavras organizadas de modo correto podem currar. 

 

Foi Platão quem definiu primeiramente a linguagem como Pharmakon, contendo três sentidos possíveis: remédio, veneno e cosmético. A rapper de Mogi das Cruzes, no estado de São Paulo, Karen Santana lança seu primeiro disco Poderes de Évora (2018) trabalhando com seu ritmo e poesia no sentido de produzir através da linguagem, um remédio potente para curar uma série de problemas por ela eleitos.

No grupo As Lavadeiras junto a Sarah Key, a artista vinha já construindo um outro trampo musical misturando o rap a outras expressões musicais e a cultura popular do nosso país. Aqui,a mc paulista investe apenas no rap e no trap, com produções excelentes de autores distintos como Andrés CamargoRaul Ronde (Jacareí), HisashiNandes Castro, RobHood e Gilponês. Contando com tantos produtores distintos nos beats, o disco alcança uma sonoridade bem diversa do Trap ao Boombap Jazz e incorpora também a sua maneira, a cultura nordestina.

Contando com 8 faixas, Poderes de Évora (2018) parece se aliar liricamente a certa tradição recente de parte do interior de São Paulo, o Vale, que conta com Inglês, Síntese e Nego Max como seus maiores representantes. Apesar de artistas diferentes entre si e com perspectivas musicais um tanto distintas, se unem em torno de uma lírica que propõe desenvolvimento espiritual visando crescimento coletivo em torno da cultura hip hop.

Ao invés de focarem suas punchlines e mensagem prioritariamente contra instituições e contra o sistema, seus esforços se fazem mais presentes no regar outras posturas diante de um desenvolvimento tecnológico alienante, em busca de “vivências” mais verdadeiras e atuais. Seria interessante uma tipologia utilizando a determinação da linguagem tal qual pensou Platão, no rap atual, quais artistas que pretendem a cura com pequenas doses de veneno, quais pretendem produzir remédios e quais decidem-se pela linha de produção de cosméticos.

Foto: Larissa Rocha

O fato é que Karen Santana busca inspiração na figura de uma bruxa europeia (Évora) que possui sua existência histórica de difícil localização mas que ao que parece, foi tão importante que se tornou um arquétipo dessas mulheres que tiravam seus poderes do conhecimento e da sabedoria antigas. Conhecimento que se transforma em força e potência de ação, algo certamente não tolerado numa sociedade estruturada sobre o poder Patriarcal.

O trampo gravado no Studio 1204, busca nessas forças ancestrais o modelo de resistência e micro politica capaz de encampar uma luta que é bastante atual. Um resgate do feminino como abertura a várias outras forças sociais, como ponto de partida para uma diversidade de posições luminosas como as estrelas, as Plêiades no céu. 

Em sua lírica a mc de Mogi das Cruzes ataca violentamente o nosso problema educacional, o nosso analfabetismo funcional ou não, que entre outras coisas é um entrave para a compreensão mutua e para uma “leitura da vida” mais qualificada. Em um beat jazzy boombap, “Penumbra” que tem produção de Raul Ronde, Karen amassa demais ao tratar de diversos temas inclusive abordando a psicanalise para falar de problemas fantasmáticos que atingem algumas mulheres. 

A utilização de um sample da Bethânia pareceu-nos muito adequado na medida em que o disco versa sobre problemas vividos por mulheres, mas não só, e não assume uma bandeira feminista do modo como estamos acostumados a ouvir. Mas afeito, o disco, a pincelar a força do feminino sobre os problemas de uma sociedade machista. Exemplo disso, é a busca pela força feminina ancestral na homônima “Poderes de Évora“, onde além de tudo mais, ela chama atenção para uma postura de independência por parte da mulheres, tal qual a personagem conceitual envolvida na feitura do disco.

Uma forte qualidade presente no disco é a mescla promovida pela artista entre o flow e o canto, o que nos traz cores muito bonitas e fortes ao longo de todo disco. “Educando a Herança” traz essa mescla até o esplendor, “produça” de Nandes Castro com um tecladinho maneiro, faz a cama por onde Karen além de apresentar a mescla acima citada, consegue expressar poeticamente a necessidade de reescrevermos a história.

A Mc alemã Alice Dee com o mestre Sandrão (RZO)

Entre o passado e o presente, um combate para trazer os vencidos a frente da narrativa historiográfica, ao mesmo tempo, que enquanto indivíduos precisamos aprender a navegar nesse mar bravio que é a luta por resgatar as heranças resistentes. E assim sua poética vai no caminho de construir uma serie de pequenas pílulas ou beberagens da linguagem que se tornam portas para a cura daqueles que se abrem pra receber suas mensagens em forma de ritmo e poesia.

É o caso por exemplo de “Copos de Elixir“, boom bap nervoso de raiz (Andrés Camargo), música como entidade abstrata capaz de trazer a luz diversas forças inesperadas, ou insuspeitas. Start para outros modos de vida, para agenciamentos coletivos e devires propiciados por encontros alegres que aumentam nossa potência de agir, não sendo outra a função real do hip hop, aqui apresentado em sua expressão musical. 

Poesia feita pharmakon, lírica de contra efetivação dos poderes que subjugam a nossa sociedade através de uma falsa plêiade de engôdos. O ruído como impedimento de uma sociedade mais compreensiva é o tema de I Tech feat Alice Dee, onde as minas esculacham a vida virtual feita de falsidade em redes sociais. A necessidade de selecionar aquilo que vemos, lemos, é a mensagem principal dessa faixa que propoe uma cegueira diante dessas expressões da vulgaridade, a fim de construirmos nossa subjetividade sem o lixo que muitas vezes inundam timelines

Em contraposição e ainda no registro do ancestral a cultura nordestina que é parte da origem da rapper é evocada na faixa “Zé Cuã e Vô Bertim” uma recitação no melhor estilo poesia e sabedoria popular. “Viagem” com produção de Gilponês de timbres cacos cerebrais eletrônicos, batida evocando o reggae, tem a participação do Mc Rodrigo Goes

O disco fecha com a acalentadora “Lua Minguante“, temperada e cozinhada como sopa quente para uma noite fria, onde a compreensão e o cuidado são fundamentais, e é isso que nos é ofertado aqui. Faixa de tom reflexivo, buscando uma visão de vida comunitária onde as trocas sejam germinadas através da compreensão.

Karen Santana estreia com um disco muito sólido e principalmente, aliando técnica e mensagem, flow, batida e discurso de modo bastante extra ordinário. Um disquinho que em pouco mais de 25 minutos demonstra com facilidade estar fora da curva. 

Um disco que pretende pensar os males contemporâneos de modo bastante singular, e que ao buscar inspiração nos velhos caldeirões das bruxas termina por produzir através da linguagem um remédio (Pharmakon) para combater os problemas levantados. Amor próprio, comunidade, arte e cultura, educação, conhecimento histórico, música e poesia, tá tudo aqui. 

Escute com bastante atenção:

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