Jup do Bairro e o nosso encontro com um Corpo sem Juízo (2020), uma resenha sobre o EP que estréia a necessidade de lutar pela vida!
Sempre se trata de estar primeiro a espreita e em seguida em pensar sobre os afetos que os mais diferentes corpos nos causam. Dentro do universo musical, os blocos de afetos, as percepções, as ideias musicais, os beats, harmonias e melodias às quais nos expomos nos encontram e nos impulsionam a pensar. Esse é o movimento através do qual nos construímos, encetamos devires, somos rachados ao meio, colocados no chão, e por fim transformamos isso em texto, tentando contaminar outros.
Não à toa, e muito menos por acaso, assistimos na semana passada o documentário Bixa Travesty (2018) dos diretores Kiko Goifman e Claudia Priscilla, onde podemos conhecer um pouco mais e melhor a trajetória da Linn da Quebrada, e consequentemente de sua parceira de via Jup do Bairro. Curiosamente a Jup do Bairro lançou no dia seguinte o seu EP, e de lá pra cá estamos ouvindo as sete faixas que compõem a obra e curtindo e matutando sobre o que seria, o que é esse corpo sem juízo!
O tempo histórico em que estamos mergulhados com fascismo, com a peste, com a falência completa e absoluta do pensamento liberal e muito mais, reconfigura e potencializa a necessidade dessa constatação que foi feita inicialmente pelo filósofo Espinosa: Ainda não sabemos o que pode um corpo. Em meio a crise mundial do Covid, às manifestações nos EUA por conta da morte de George Floyd, aqui no Brasil também manifestações entre antiracismo e antifascismo, esse corpo sem juízo que a Jup do Bairro nos apresenta, se nos mostra o quanto é necessário para compreendermos melhor o tempo em que vivemos.
Saúde mental e afetiva, econômica e consequentemente social e política, atravessam o disco e nos mostra a importância dessas três ecologias em meio a nossa entrada no Antropoceno. A razão ocidental nos trouxe até aqui, da mesma forma que o juízo judaico cristão nos auxiliou na organização da realidade, julgando quais os corpos merecem ou não viver, ter dignidade, florescer. A mesma ordem valorativa moral que estruturou o racismo como condição do capitalismo, já existia e florescia como patriarcado e consequentemente organizado para mandar para o inferno todos os corpos desviantes da norma.
Fogueiras que hoje queimam de outras tantas formas corpos pretos, gordos, trans são aqui apagadas com a força das palavras, com o poder de emissão, com o humor, o rir sobre si mesma, com as suas memórias, com as experiências refletidas, com uma consciência de si como projeto e como potência. Esse Corpo Sem Juízo (2020) que faz de si mesma um devir sempre outro, inclassificável, incontrolável, inapreensível em sua complexidade, está aqui recortado em 7 faixas musicais, onde podemos ter acesso a um pouco da riqueza que a vida e a caminhada da Jup proporcionou.
O disco que tem a produção da Bad Sista, e conta com as participações da Linn da Quebrada, Mulambo, Deize Tigrona e Rico Dalasam é um extended play or life. Uma extensão estética de um corpo político transgressivo das normas que nos são inculcadas a ferro e fogo numa política de controle do que podemos ser e do que pode nos afetar. Já na primeira faixa há o pedido para que a deixe voar, em tom atmosférico mas comovente, onde se fala sobre as angústias e temores dos tremores causados pelas transformações, e pelos obstáculos enfrentados quando tomamos consciência da necessidade de nos desenvolvermos. “Transgressão” também é afirmação dessa mesma consciência de si que transgride exatamente por criar as condições de uma vida liberta das amarras impostas de fora.
A escolha da Deize Tigrona, lenda do nosso funk é fundamental para posicionarmos o apelo estético no qual o EP se coloca, hoje não incensada pelas figuras do mainstream do funk que fazem muita grana em um território desbravado por ela. “Pelo Amor de Deize”, vem num metal estilizado, e nos convida a pensarmos sobre saúde mental e no quanto é necessária a parceria real para nos fortalecermos. A lúbrica All You Need Is Love segue num funkzinho maroto com a participação de Linn da Quebrada e Rico Dalasam, com o trio embalando aquela transa que se torna memorável. Sabores, cheiros, sons e sensações, referências são utilizadas pelo trio para construir e descrever as possibilidades, desejos e afins!
Nossa faixa preferida, “O Corre”, é composta por uma série de linhas que tomam o amor fati nietzschiano – Ama aquilo que te acontece – como pressuposto para entendermos o que chegou até nós: o corpo que recebemos em um recorte musical, as correrias, os perrengues, as inadequações de uma vivência periférica que se fortaleceu com tudo que não ceifou sua vida. Junto com Mulambo, Jup do Bairro constrói uma música que é outro petardo para a esquerda branca cirandeira goodvibes, para os aproveitadores de pautas de toda ordem, que se comprazem por mais uma bandeira – vida – morta pela política genocida do estado brasileiro. “Luta por Mim” vai na direção de mostrar-nos a necessidade da luta ser de preservação e não de modo reativo.
Em “Corpo sem Juízo (Acapella)” e “o que pode um corpo sem juízo?” são, em nosso modo de ver, faixas complementares e que conversam entre si. A segunda e a última faixa são, digamos, o corpo teórico musical do EP. Mudar o destino sem se importar com o paraíso, assumindo-se movimento, tendo o seu corpo como potência capaz de subverter a cultura e a natureza como não determinantes, mas como espaços de invenção e de erupção de outras possibilidades de vida, de ser, num corpo que se desorganiza abrindo mão do juízo que o determina, que o encerra em formas pré-estabelecidas.
Celebramos com o vinho da desindividualização de Dionísio esse Corpo sem Juízo, nossa hóstia musical em tempos de fascismo bolsonarista.
Amém, Jup do Bairro!
-Jup do Bairro e o nosso encontro com um Corpo sem Juízo (2020)
Por Danilo Cruz