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A eterna reconstrução de Joy Sales – Premiere do clipe de “Dicção”

Confira o premiere do clipe de “Dicção” – faixa da Joy Sales em parceria com o Mistaluba – e conheça o trabalho da rapper/MC paulista.

Um artista é um ser criativo em eterna busca. A tal da batida perfeita, com o perdão do trocadilho. E essa batida perfeita pode ser de fato “o som”, mas não quer dizer que vai seguir essa linha pra sempre. Quer dizer que é a onda forte daquele momento. Só isso.

Semana que vem o mundo já é outro. Sei lá, o dito cujo pode encontrar um LP perdido num sebo e realmente descobrir algo que descentralize todo o processo.

A vida é o que acontece conforme a arte é externalizada, e é sempre muito interessante ouvir as histórias para poder conta-las com sensibilidade e entender como é que o groove chegou até lá.

Confesso que às vezes me pego pensando sobre o que os artistas pensam quando peço uma entrevista. Isso normalmente acontece com sons que ainda não consegui formar uma ideia concreta na minha cabeça à ponto de escrever com segurança. É uma forma de esclarecer e conseguir novas informações para dar voz a algo novo de maneira precisa e coerente.

E nesse processo ininterrupto de escuta, o último som que me fez entrar em contato com o criador foi a ácida cozinha da senhorita Joy Sales.

Conheci a Joy numa gig com o Átrio – trio de Jazz paulista formado por Rob Ashtoffen (baixo), Renato Pestana (bateria) e Gabriel Gaiardo (teclados) – grupo com o qual a senhorita está colaborando, já há algum tempo.

Fiquei bastante impressionado com a presença de palco e a eloquência das suas ideias. Pouco tempo antes, tinha tomado conhecimento de seu EP “Bam“, lançado em 2019, mas o que eu vi ao vivo já era outra Joy.

Além da carreira solo e de suas incursões jazzísticas com o Átrio, ela também estava arquitetando outro projeto com instrumentação orgânica, o Joy Sales & banda, ao lado da Beatriz Lima (baixo), Tamires Silveira (piano), Pri Hilário (bateria), Bianca Santos (guitarra), e Linda Leslie (DJ/backing vocal).

Mas aí veio a quarentena e com o isolamento, a necessidade de reorganização. Com isso, o trabalho audiovisual do EP “Bam” voltou à pauta para ilustrar cada uma das 5 faixas desse registro, uma ideia antiga da Joy e que voltou para os trilhos, por isso o premiere do clipe de “Dicção”, gravado na Lapa, em São Paulo.

Em entrevista ao Oganpazan, a cantora/MC fala da sua trajetória, dos corres – entre Rio e São Paulo – além de ajudar o jornalista e o público a entender as referências presentes em seu trabalho multidisciplinar.

Uma das maiores lições desse bate papo é entender um fato simples, mas que poucos refletem antes de escrever sobre música. É importante falar sobre o som, mas nunca de maneira definitiva. É necessário ter sensibilidade pra entender que amanhã é outro dia e nós não sabemos o que vai acontecer.

Como diria o Racionais: a vida é Loka.

Se liga no premiere do clipe de “Dicção”, logo abaixo, com exclusividade aqui no Oganpazan e confira a entrevista pra conhecer o som da Joy.

O som do R&B dos anos 90, aquela vibe meio Neo Soul / Soulquarians … Sua abordagem foi influenciada por isso e pelo Hip-Hop. Como você vê a nova geração (Jorja Smith, por exemplo) voltando aos anos 90 para construir essa ponte contemporânea? Qual sua opinião sobre isso e que mulheres você destacaria nesse cenário?

A Deusa do Neo Soul e a minha grande aposta nesse cenário é a Jéssica Gaspar. Uma potência inigualável e toda verdade converge no trabalho dela de forma concisa.

O som é forte, preciso e contemporânea. Oferece laços genuínos com a nossa ancestralidade. Eu amo a Jéssica, o mundo vai ouvir seu canto melodioso com um toque adocicado.

E sobre suas influências?

Algumas coisas são intuitivas pra mim. Eu sou de 1988 né. O Soul na quebrada, o charme e o black. O gospel já chegava em mim sem eu chamar… Eu vejo o som como uma busca orgânica, claro que tem resgate, o estudo, mas também existe uma energia de algo implantado nos seus ouvidos, que lhe é familiar.

As harmonias e as vozes, tudo pra mim veio dessa relação da minha infância com a musica. É bom essa textura que já nasce com a gente. Nessa cena atual existe uma outra narrativa e ela é contemporânea.

A memória afetiva da galera é mais curta né.

Sim, varia muito. Existe uma curva de absorção Eu gosto do Bill Withers, um dia vou samplear, por exemplo, Na minha música, sinto essa mistura nesse espaço de free-style intuitivo que eu faço na hora de criar Rap, Poesia, enfim…

Pra mim, você se garante vendo onde teu passo te leva. O que vai soando melhor com o que já tem dentro. Eu sou o Rap na minha poesia, sou melodia por prazer, por natureza, daí é possível extrair coisas genuínas, mas antes é importante fincar uma bandeira em alguns territórios musicais pra depois lapidar.

Sim, pra conseguir acoplar as suas ideias.

Exato, mas ela pode estar ali de uma forma mais subjetiva … No lugar de aparecer como uma rima mega elaborada e estruturada. Essa coisa do Neo Soul, a influência melódica e a banda… Essa experiência parece que deixa a música mais viva e isso me leva pra um ambiente onde me sinto bastante confortável.

Trabalhar com banda deve ser massa nesse sentido de expansão de ideias.

Até pela experiência de palco também. Eu estou em construção como todo mundo, em certos pontos você vê que está se experimentando – além da emergência que você sente em transmitir as coisas – e viver isso é muito daora, justamente por que eu posso acessar os instrumentos.

Quando comecei a escrever, já desejava cantar coisas de outras intérpretes e na primeira oportunidade de cantar, já me senti mais segura – sem aquele nervosismo todo – à vontade mesmo. Foi uma experiência de mundo que nem se compara com os desafios que tive, colando nas batalhas.

É um processo de cura muito gratificante e ter o Hip-Hop e o Jazz presentes nisso, junto comigo, é quase religioso. Uma cura da alma muito completa.

E sobre as minas que você escuta?

Eu gosto muito da Sampa The Great. Acho que ela consegue trazer referências. Tem a questão do afro futurismo e ao mesmo tempo é Pop, mas é cultura negra também. É uma bruxa contemporânea.

Legal essa questão da cultura Pop que você apontou.

E eu gosto bastante de falar disso. Gosto muito da Jorja Smith, da Lianne Las Havas também, e aqui no Brasil tem uma mana incrível, chamada Kynnie. Ela tem toda essa vibe do R&B e é legal ver essa construção acontecendo no Brasil também. Gosto do trabalho dela.

Tem a Tasha e Tracie também.

Sim, total. Eu ouço direto. Elas tem uma referência bem plural, no sentido de textura. Tem um gingado e um flow muito mais Hip-Hop do que Neo Soul, apesar da faixa “MPIF” trazer muito uma textura de Neo Soul, com a influência da Ashira.

É uma vibe mais anos 90 (Golden Era) – e eu estava tentando fazer referências com outras coisas – mas com certeza elas são expoentes no Brasil hoje e criaram uma linguagem que a quebrada amplifica, justamente por se identificar com o rolê.

Elas criaram a fermentação necessária pra um rap feminino com ataque, é o creme mesmo.

Como você analisa esse novo momento música negra, pensando principalmente no impacto dentro da cultura pop?

Eu acho que o impacto existe desde que a música negra começou a ser explorada comercialmente, acho que na visão de hoje – da cultura pop – é mais por conta de não sermos avaliados mais como artista negro, música negra, enfim.

É artista e ponto (até no quesito premiação, manja?! As premiações para artistas negros sempre foram algo à parte… Artista Pop, disco… Isso fez com que num momento de grande exploração, a gente competisse entre nós mesmos, dando a ideia errada do rolê todo.

Agora é um novo momento, estamos em mais quantidade – em termos de evidência no cenário – e mais conscientes de que não precisamos nos forçar pra caber num estilo.

Acho que todo artista possui esse desejo de se comunicar. Depende do berço que você nasce. Se for no Samba, são muitas informações que você vai ter sobre aquela cultura e isso vai além de um estilo.

Você acaba falando sobre si e as vezes quando você fala de si, misturando suas referências, você acaba criando esse monstro individual que é único.

É esse conjunto de vivências, além da passagem do tempo e evolução musical que está criando o Pop que nós ouvimos hoje em dia. Cada trabalho de um artista é o RG dessa pessoa.

Joy, como você vê a relação entre longevidade versus a importância de colaborar com novos artistas, até para manter as coisas frescas e sempre olhando para frente? Digo isso por que seu trampo tem caminhado do Rap ao Jazz e parece que essas conexões abrem muitas possibilidades para o seu próprio trabalho.

Eu tenho usado meu trabalho como ferramenta de cura. É sobre isso que o EP (“Bam”) trata. Na época do single “Força de Dandara” (2018) eu estava me desenvolvendo como uma pessoa que queria fazer Rap pra se expressar artisticamente e se bancar.

Agora, eu sigo compondo, mas em função da quarentena algumas coisas precisaram parar, principalmente os trabalhos com banda. Mas essa troca é essencial e as coisas que estou conseguindo desenvolver é o que estou pra lançar agora (do audiovisual do EP Bam).

Eu morro de vontade de estar em estúdio, mais ainda não é o momento.

Sigo numa arte de guerrilha e de sobrevivência. Ter a oportunidade de poder viver e poder passar pelos processos que trazem a poesia é muito gratificante. Acabei de fazer “Dicção” com o Mistaluba e agora vai sair o clipe que nós gravamos.

Foi um desafio foda por que foi registado na quarentena, mas foi muito divertido poder eternizar esse trabalho. Acho que pra nós, artistas independentes, é muito difícil dar continuidade nos projetos, tá ligado? Fazer alianças importantes.

É sobre isso também mano. A gente está num momento de rever muita coisa sobre a nossa existência. Não só pelo COVID, mas toda essa intensidade do isolamento aumentou a nossa reflexão.

Existe um passo antes do processo artístico que é viver. É é algo que está sendo crucial nesse momento. Está me atravessando entre a espiritualidade e os instrumentos. Eu tô na rua com frequência, levantando meu corre e sigo as minhas propostas de criação artística – como todo músico independente – e vejo como esse corre é essencial.

Até pra manutenção da mente né.

Exatamente, é importante se ouvir e saber o que você gosta. Poder fazer isso é uma lição. Todo mundo está trocando e se comunicando e poder fazer um trabalho como esse e narrar sua história é lindo.

Como mulher negra, Joy, como você vê o cenário do som testando sua fé num rolê predominantemente masculino, pensando desde o início da sua carreira, até agora?

Eu gosto de me descobrir na música, além do Hip-Hop. Existe uma expectativa de definição por isso. Só que eu quero trampar com mais ritmos e existe essa pluralidade. Eu vou no flow da liberdade pra me descobrir musicalmente e poder transitar nos projetos e nas experiências da vida.

Mesmo que você esteja fazendo a sua ideia, com seu beat, é possível viver essas coisas e isso é muito enriquecedor. Com certeza é algo que estou ansiosa pra voltar a viver, depois do fim do isolamento.

Sobre a questão do gênero, acho que esse espaço está sendo reavaliado. As minas podendo se enxergar mais nesse papel (de mulheres que são referências), já ajuda a desconstruir muita coisa… Mas não só as minas de fora, manja?! Tipo a Missy Elliott, por exemplo.

E existe um outro lado também que é o das minas produtoras. Hoje você vê mais mulheres fazendo, digo isso no sentido de estar presente e com voz ativa no âmbito geral da música, participando de toda a cadeia produtiva e criativa. Nem sempre foi assim. Isso foi cerceado, ainda é, mas agora menos. É toda uma classe que também está sendo preenchida por mulheres.

Falta ser mais seletivo também. Normalmente quando você fala de uma MC mulher, os homens principalmente… Eles são excessivamente críticos.

De uma forma que eles não seriam se fosse um homem.

E essa predominância que você falou acaba chegando no que você consome e tu nem percebe. Tudo que os homens fazem está na frente, pensando no sentido do espaço e do quanto ganham, onde será colocado…

A gente está mudando as coisas muito rápido, estamos inserindo um espaço, mas é importante ressaltar que não são só as artistas, são as produtoras e toda uma rede que precisa ser amplificada.

Sim, esse networking é essencial.

Nesse tempo de RJ, mesmo com a pandemia, o que você pode dizer sobre a cena local e as produções que andam rolando?

Eu vim para o Rio durante esse período de isolamento, mais pra ter um espaço pra construir coisas e esperar esse momento passar pra poder colocar pra fora.

Acho que as conexões na rua agora são totalmente inviáveis, por isso tenho buscado trabalhar à distância. Foi um momento de pausa que eu tenho vivido, buscando o mínimo de contato com o externo.

Tá sendo foda, tô morando em Botafogo, quando passo na rua ouço músicas dentro da casa da galera. Tô com os picos chave pra fazer os canais e estabelecer contato, mas ainda não tô alastrando por que o atual momento não permite.

Quando a situação estiver segura, pode crer que eu vou surfar essa onda. Tô com umas produções com o Mistaluba e já que a gente começou a parceria, vamos engrossar esse caldo ainda mais. Vai ter coisa nova, eu só preciso de grana e produção pra fazer as coisas caminharem juntas, por isso é importante me manter fazendo meu corre na rua. Minha cabeça só funciona pra fazer arte.

Tem coisas que estão sendo desenvolvidas à distância, material que tenho criado com pessoas do Rio, Porto Alegre, enfim. O que eu tenho vivido aqui é mais da interferência cultural e o networking tem sido feito online.

É o rolê de descentralizar o meio físico.

Total, para o artista é essencial estar em movimento pra fazer as coisas girarem. Muito do que mexe comigo aqui são alguns histórias e pessoas inusitadas que tem aparecido na minha vida. Tô morando num hostel e vivendo uma realidade ímpar de me permitir não só a música, mas outras narrativas dentro da minha arte.

Tenho pirado muito em audiovisual. Em 2019 a ideia era lançar o EP “Bam” com audiovisual completo e agora eu estou conseguindo materializar isso. É importante experimentar e pensar na minha música através do vídeo.

Você é assim também?

Eu vi muito clipe, escuto muita coisa, mas sinto falta de ver o complemento quando tenho tempo. A intersecção dos 2 (som e imagem) é muito foda.

Sim, a comunicação é mais completa, eu sinto muito isso.

Você lançou um vídeo com outro projeto com banda antes da quarentena, tocando só com minas. Como que tá essa gig?

Sim, o Joy Sales & Banda. Era um projeto que eu tinha em paralelo né, esse e o Átrio. Esse em específico, surgiu na expectativa de montar um show para o EP “Bam”, mas em função da pandemia, tivemos que parar. Ainda estamos esperando o melhor momento pra conseguir voltar a trampar e fomentar o projeto novamente.

A gente estava numa fase inicial, o som estava foda, mas no meio da quarentena a gente mudou a prioridade dos trampos que já estavam rolando. Cada mulher que trampa ali comigo no projeto do show de “Bam”, todas elas são muito competentes no que fazem, e a ideia era criar essa rede também.

Agora tem sido um momento diferente, por que todo mundo está tentando entender como é possível trabalhar nesse momento. Eu voltei a gravar só recentemente, com a galera do Jazz na Kombi, na edição 2021 do Favela Jazz Festival, com o Átrio.

E nós como artistas independentes, sem orçamento… É importante repensar os projetos e continuar adequando as coisas dentro da sua própria realidade.

Precisa de um cenário favorável pra isso.

Sim, com certeza.

Pra fechar, Joy, queria que você falasse sobre os seus próximos passos depois do clipe e sobre a difícil tarefa de criar um trampo interdisciplinar, pensando na responsa do artista independente.

Então, dia 19 sai o vídeo com o clipe de “Dicção”. Com os meus corres entre Rio e São Paulo, precisei mudar algumas coisas, mas a ideia é dar prosseguimento ao audiovisual do EP “Bam”.

Agora não existe segurança pra fazer coisas compartilhadas, então eu sigo criando, mas de uma forma onde eu consiga trabalhar a composição, pra quando aparecer uma janela segura, estar com tudo pronto pra fazer a parada e lançar.

Eu não tenho estúdio e estou me coçando pra soltar material, mas acho que depois do lançamento do clipe, a primeira coisa que eu quero focar são os singles. Digo isso por que às vezes você absorve muita música e você muda… E eu me sinto muito diferente já.

É essencial pensar e planejar pra conseguir disponibilizar as coisas da melhor forma, ativar as parcerias e começar a fazer o som rodar. Mas o que tem deixado meu dias mais leves é a dança, sem dúvida alguma, e eu tenho preparado outros roteiros também, além de estar praticado novos instrumentos. Acho que é isso.

É pokas.

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