JOCA, Ujima Gang e Akoma: Três Faces do Risco, uma conversa com o rapper, seus projetos, seus processos de criacção, existência e disco novo
Recentemente JOCA lançou seu mais recente trabalho intitulado “A Salvação é Pelo Risco: O Show do JOCA”. O álbum tem uma leveza que se equilibra muito bem com o peso das letras. Os arranjos e as mixagens são de uma sensibilidade incrível fazendo com que o ouvinte fique imerso na enorme profundidade do trampo. JOCA se vê como uma junção de fragmentos em looping numa reprogramação constante e essa visão está perfeitamente impressa em suas músicas. Resolvemos trocar uma ideia com ele para entender melhor o que se passa em sua vida e assim entendermos melhor como foi produzido essa obra.
Douglas (Oganpazan): Bom dia campeão, Bom dia João Caetano, Tudo bem? Como vai?
Joca: Bom dia!! Eu tô bem. Como é que tá? A Salvação é Pelo Risco.
Douglas (Oganpazan): Tá tudo firme. Você tem um vídeo cantando parte da faixa “Katara” em 2018. Li uns posts seus falando sobre ficar sem pc pra produzir e de juntar moedas pra comer e conseguir se movimentar dentro da cidade. Quanto tempo você já tinha essas músicas? Que contexto inspirou elas? Quais foram as dificuldades para conseguir por esse álbum na rua?
Joca: É difícil dizer ao certo há quanto tempo eu tinha as músicas porque o meu processo parte da intemporalidade. Escritos, registros sonoros, gravações de campo… Até mesmo os elementos presentes nos beats. Nessa perspectiva de contar minha própria história através de samples, os diferentes espaços por onde transito e os atravessamentos que cada território apresenta são traduzidos pouco a pouco em forma de palavras e timbres, como fragmentos de um todo, que reorganizo na hora de construir as músicas. Inclusive, os versos que canto no vídeo são os mesmos versos de Katara, mas se trata de uma música do AKÖMA que sampleei uma parte pra usar nesse interlúdio. Sem dúvida, as maiores dificuldades pra colocar esse trabalho na rua foram as limitações impostas pela dinâmica de sociedade e território que a gente é obrigado a seguir. Escassez de recurso e dificuldade de locomoção, principalmente. Já fiquei muito tempo sem computador pra produzir, o que tenho hoje veio da sucata eletrônica de diversos amigos que me deram seus aparelhos fora de uso e fui garimpando as peças doadas. Em vários momentos a gente precisa dedicar nosso tempo também a funções que trazem um retorno mais rápido, já perdi shows, ensaios, gravações importantes por estar atolado em outro trabalho, e nem sempre coube no meu orçamento o investimento para me locomover pela cidade e trabalhar com a frequência que gostaria na música. Mas isso faz parte.
Douglas (Oganpazan): O que você queria comunicar com esse trabalho? Como você espera ser visto?
Joca: Minha ideia com esse álbum foi falar sobre memória. Nós que somos a margem, precisamos ser donos da nossa própria história e encontrar nossos próprios meios de contá-las. Eu encontrei nos caminhos uma linguagem dentro da qual me senti confortável pra me comunicar abertamente com o mundo/universo, contar do meu jeito uma parte da minha história. E através dessas histórias individuais, onde contextualizo lugares por onde passei e pessoas que encontrei, convido cada um que escuta a fazer esse exercício de olhar pra trás e tentar entender qual de suas histórias quer contar. Espero ser visto como alguém que faz música sincera, com cuidado e respeito pela música e pela cultura.
Douglas (Oganpazan): Como é ser músico em Niterói? Porque e em qual momento você decidiu sair da sua cidade para ir pra Niterói?
Joca: Pra mim foi bem doido. Uma oportunidade de me descobrir musicalmente, fazer amigos e parceiros de trabalho, poder também circular pelo Rio de Janeiro e São Gonçalo e ter acesso a várias referências de dentro e fora da música. Eu saí da casa dos meus pais com 17 anos, em 2014 pra entender o que eu faria da vida depois da escola. Fui visitar um amigo do colégio que tinha entrado pra UFF, coloquei no SISU e passei. Como eu pesquisava muito a cena de rap de Niterói, do Rio e São Gonçalo, me senti ambientado de certa forma e comecei a buscar o meu rolé. Trabalhei numa xerox da faculdade nesse primeiro ano, enquanto fazia faculdade e começava a movimentar algumas experimentações sonoras com uns amigos. Nos anos seguintes, entre idas e vindas da faculdade, tentei buscar esse equilíbrio estagiando e trabalhando em outros lugares, desenvolvendo os projetos musicais ao mesmo tempo. 2019 é o primeiro ano que tô conseguindo sustentar só com a música, mesmo que fique ali no limite, em vários momentos sendo salvo pelos amigos e família. Em agosto eu montei um estúdio/quarto na Lapa, e vim pra cá pra facilitar acesso a alguns corres que tô fazendo em torno do lançamento desse álbum. Mas morar em Niterói durante esses 5 anos foi crucial pra tudo isso que tô fazendo, onde vivi histórias e aprendi muitas coisas, já trampei em restaurante, museu, escola pública, fazendo som no metrô, trilha sonora pra cinema e teatro… Tudo isso só foi possível através da liberdade que me dei pra encontrar meu caminho. Em Niterói, firmei um ponto de estabilidade que me permitiu experienciar essas trocas e movimentações. E o resto é história
Douglas (Oganpazan): Você estuda o que na UFF? Porque escolheu esse curso? Como é ser negro lá?
Joca: Ciências Sociais, mas desde o primeiro período faço minha grade de acordo com o que me interessa dentro do curso e fora dele. Já circulei por alguns outros departamentos fazendo disciplinas ligadas à arte, produção cultural e mídia, e em vários momentos precisei trancar o semestre pra dar um gás na música ou em outro trabalho. Por algum tempo, tinha essas 3 atividades como compromissos distintos que acabavam se anulando. Vivi momentos só de trabalho formal/faculdade, ou trabalho formal/música, ou bolsa da faculdade/música. Em poucos semestres consegui conciliar tudo. Agora que a música tem se tornado meu trabalho formal, talvez eu consiga dar continuidade à minha formação. E acho que grande parte disso passa pela experiência de ser negro e pobre na universidade, nem sempre temos acesso a permanência, assistência estudantil e é comum que se estenda o tempo da graduação nessa tentativa de conciliar as prioridades da vida. A lógica do racismo estrutural permite o acesso das minorias ao espaço, mas não garante as condições pra que se frequente e usufrua do espaço da mesma forma que os grupos sociais privilegiados. Escolhi ciências sociais interessado nos estudos sobre a cultura, relações sociais e etnografia. Aos poucos fui entendendo que se pode construir esse tipo de conhecimento de outra forma, através da vivência e o conhecimento passado através da fala, e percebi que no contexto onde cresci eu vivi experiências que fizeram minha formação intelectual muito antes de qualquer sala de aula. Por causa da relação dos meus interesses intelectuais com meu fazer artístico, consegui ter um parâmetro das duas formas de se comunicar e descrever a sociedade, essencial pra que não se tenha uma visão estagnada dos fatos.
Douglas (Oganpazan): A UJIMA GANG tem uma movimentação incrível com o Baile da UG. Notei que algumas pessoas da banca estão no álbum. Inclusive a fala do Alceu na faixa 5 é engraçada demais. Como vocês se conheceram e decidiram formar o grupo pra fazer uma bagunça?
Joca: Meu compadre Alceu, o brabo. Nos conhecemos em meados de 2016, a maioria da Ujima se conheceu nessa época. Tínhamos diversas referências em comum e alguns de nós estudávamos na UFF, que foi um ponto de encontro pra gente que vinha de vários lugares diferentes. Além das referências, a identificação e a vontade de fazer essa bagunça, movimentar a cidade culturalmente, à nossa maneira. Em 2016 na ocupação da UFF participamos do primeiro encontro de poesia preta, onde apresentamos alguns de nossos trabalhos pela primeira vez. A partir daí, começamos a bolar projetos juntos e pensar o que fazer com a vontade de fazer arte. Na virada de 2016 pra 2017, o 2Mec nosso fechamento mandou pra todo mundo um texto falando sobre o Kwanzaa, celebração afro-americana de passagem de ano, onde um dos princípios é Ujima: trabalho coletivo e responsabilidade. Falei pra ele na hora: UJIMA GANG. A UG nasceu assim, em 2017 começamos a ocupar a praça da cantareira com a Invasão Sonora, que se tornou o Baile da UG. No mesmo período começamos a produzir e compor juntos, fazer alguns shows pela cidade e estudar formas de produzir conteúdo e aprimorar nosso trabalho.
Douglas (Oganpazan): Vi fotos e vídeos de você tocando bateria e percussão, você toca outros instrumentos? Como isso contribuiu na sua formação como produtor, arranjador e mc?
Joca: Basicamente toco percussão, estudei dos 7 aos 13 anos numa escola pública de música em Rio das Ostras. Além de percussão tive algumas aulas de teoria, percepção, história da música e prática de conjunto. Por causa da diversidade de conhecimento que eu tinha acesso nessa escola, acabei aprendendo um pouco de baixo e bateria depois, pesquisando por mim mesmo. Arranho algumas coisas no violão, mas nada demais rs. Ter estudado música na infância contribuiu fortemente na minha formação como produtor, arranjador e mc, porque desde novo pude ter acesso a determinadas noções e linguagens que foram cruciais pra que eu entendesse música da maneira que entendo. Depois disso, pude buscar minha própria forma de criar e aprender através de uma dinâmica cíclica, coletiva, percussiva. Assim funcionou também meu processo de aprendizagem da bateria e o processo do álbum.
Douglas (Oganpazan): Já que seu sonho deixou de ser tocar com o Exaltasamba, qual é o seu sonho hoje?
Joca: Meu sonho no momento é não ter que me preocupar com nada (risos). Conseguir me estabelecer profissionalmente dentro da música, ter estrutura pra criar e dividir com pessoas que também querem e precisam criar, respeitando a liberdade criativa e a individualidade. Viajar, conhecer lugares através da música e aumentar a proporção dos trabalhos que já estão em andamento, pra geral ficar tranquilo.
Douglas (Oganpazan): Esse ano Itamar Assumpção faria 70 anos, qual a influência dele na sua vida e na sua música? qual é a sua música e álbum favoritos dele?
Joca: Itamar foi um ponto chave na minha vida e na minha música. Conheci o som dele aos 18 anos e tudo me fascinava muito. A maneira descentralizada de pensar a música, ao mesmo tempo que tudo soa muito sólido, enraizado, firme no chão. É leve e grave, me remete a um objeto/líquido que flutua perto do chão, sem cair mas sem dissipar. O que me chamou muita atenção também foi a construção do sujeito no trabalho dele, e isso me abriu os olhos a essas diferentes formas de se retratar e contar sua própria história. Brincar com o limiar entre ficção e história “real”, o cotidiano e o absurdo, o personagem que é autor da própria narrativa. Minha favorita é Prezadíssimos Ouvintes, primeira faixa do Sampa Midnight (1983), que é meu álbum favorito dele e um dos álbuns mais importantes pra construção da narrativa de “A Salvação é Pelo Risco“.
Douglas (Oganpazan): Você postou que o Bruno é um parceiro muito importante pra você, vocês dois formam o AKÖMA, você pode explicar pro leitor o significado do nome do grupo e quais são as coisas que vocês se complementam e se diferenciam? quando vem os próximos lançamentos?
Joca: Bruno é meu irmão de vida e de correria. Começamos o AKÖMA em 2016, é um adinkra que significa paciência e tolerância. Temos formas diferentes de rimar e performar e devido a essa diferença, conseguimos diversificar os flows e as frequências de energia que trabalhamos, apresentando e criando. O Bruno tem uma visão bem técnica da composição, já eu trabalho mais no campo da instabilidade e da experimentação rítmica. Essas duas formas de compor são complementares à medida que seguem uma dinâmica linguística percussiva, portanto matemática. No princípio era o número. Os próximos lançamentos do AKÖMA vem em 2020. #trancado
Douglas: A identidade visual do AKÖMA foi feita pelo brilhante Mulambo. O que você mais gosta no trampo dele?
Joca: Gosto das histórias que o Mulambo conta, da relação que ele estabelece entre memória e imagem. Sua forma de comunicar é profunda, funciona em diversas camadas da realidade, intervenção, memória, ficção (em ciclos e não necessariamente nessa ordem), ao mesmo tempo que é bem resolvida esteticamente, entregando a mensagem rapidamente, então por mais que se observe por pouco tempo, as imagens que ele cria se mantém frescas na mente pra que quem observa faça suas próprias associações.
Douglas (Oganpazan): Os efeitos do racismo na sua vida é uma parada muito presente nas suas músicas. Como o colorismo ferra a sua sanidade mental e auto estima? Qual é o caminho para a mudança na sua opinião?
Joca: Bom, acho que é importante entender de que colorismo estamos falando pra entender os efeitos gerados por ele em cada indivíduo. O que ferra minha sanidade mental e autoestima é o racismo, e a partir dele existem desdobramentos que me afetam enquanto indivíduo. Em um momento da minha vida, eu entendi que diversas das minhas experiências enquanto homem negro eram atravessadas pelo fato de ter a pele mais clara. Por mais que não se trate apenas de passabilidade, a política de embranquecimento imposta no Brasil desde sempre, cria uma noção de escala gradual, onde quanto mais escura for a pele, mais escancarada é a condição de exposição aos efeitos do racismo. Dentro da minha experiência como homem negro de pele clara, foi difícil pra mim no meu processo de construção entender o sentimento de não-pertencimento a qual meu corpo foi condicionado. Na mesma medida em que sofria e identificava o racismo no meu cotidiano, as pessoas brancas que produziam este racismo usavam o fato da minha pele ser mais clara pra dizer que não era racismo o que estavam fazendo. E isso leva a um sentimento de ocupar um não-lugar, pois à medida que questiono e identifico o motivo de uma atitude de indivíduos do meio social, sou questionado sobre a legitimidade do meu questionamento
Douglas (Oganpazan): Tanto AKÖMA como UJIMA são palavras e conceitos africanos. Sabemos que a cultura brasileira é muito influenciada pela cultura africana, mas você busca referências lá? tem nomes pra indicar? o que você mais se identifica?
Joca: Sem dúvida. Pesquiso referências do mundo todo, felizmente o continente africano é muito rico em linguagens e ritmos que interferiram no encontro de diversos povos na diáspora e mesmo antes dela, através das movimentações pelo Oriente Médio e Península Ibérica. Pesquisar a música africana ancestral e contemporânea me ensina a pensar música, corpo, dança, de acordo com a individualidade da cultura do grupo social e inserção da arte no modo de vida. Fela Kuti, Tony Allen, Ali Farka Touré, Ata Kak, Sona Jobarteh e Mayra Andrade. Tenho me identificado no momento com a música do oeste africano, principalmente da região que hoje se conhece como Nigéria.
A dinâmica dos djembês e dunduns, raiz de diversas células rítmicas e referencial das primeiras tecnologias pra construção de tambores.
A relação dos griôts com a comunidade e o entendimento do corpo e da dança. Uma das minhas buscas como MC e produtor cultural é manter essa cultura viva, acreditando que a palavra, o som, a dança e a coletividade salvam vidas.
Ouça o excelente álbum “A Salvação é Pelo Risco: O Show do JOCA”:
Assista o “Toda Memória é um Sample”, um mini doc sobre o processo do álbum: