Capitão sem tripulação, Jeff Ferreira o homem à frente do Submundo do Som trocou uma idéia sobre suas mil camadas e produções!
O importante trabalho desenvolvido nos bastidores do Hip Hop muitas vezes é realizado por aqueles e aquelas que pouco ou quase nunca aparecem, mas que sempre estiveram e estão ali. A Cultura Hip Hop, bem como as suas ações são promovidas por diversos atores e atrizes que muitas vezes não aparecem e o que se chega para quem consome é o produto final, a “arte” pronta. O que contribui para um grande apagamento e desvalorização do importante trabalho dos que impulsionam, registram e que legitimam os nossos artistas.
E é com um desses grandes escribas do Hip Hop brasileiro que iremos falar. E aqui, cabe uma correção – não só do Hip Hop. Trocamos uma ideia com Jeff Ferreira – que talvez você não conheça, e esse é um dos motivos dessa entrevista a qual agora você lê.
Nascido na ensolarada cidade paranaense de Umuarama, cidade com pouco mais de 110 mil habitantes e considerada a segunda melhor cidade do Paraná para se viver e entre as 50 melhores cidades do nosso continente Brasil. Logo cedo o paranaense Jefferson Ferreira despertou seu interesse pela música. Ao discorrer por essas linhas que seguem, você irá conhecer um pouco da vida e das obras desse polivalente palmeirense. Um incansável operário a serviço do Hip Hop e da cultura brasileira.
Oganpazan: Salvê, Jeff! Antes de mais nada, agradeço pela sua disponibilidade em trocar essa ideia com o Oganpazan. Então, Jeff! Conta aí pra nós, quem é Jeff Ferreira e como começou seu envolvimento com a música e a Cultura Hip Hop?
Jeff Ferreira – Mano, o Jeff, ou Jeffão, como também fiquei conhecido no underground, é um cara simples que gosta mais de ouvir e aprender! Nasci no final dos anos 80, no ano que foi lançado o Hip Hop Cultura de Rua, sou casado com o amor da minha vida, a Jusciane, e somos felizes. Gosto de cultura, seja ela em discos, filmes, teatro, livros ou quadrinhos, sou um preservacionista e sempre vou defender a cultura, principalmente a marginal.
Meu corre começa na infância pelas fitas cassete, ouvia muito Raul Seixas e rock anos 80. Depois veio o skate e junto o rap, isso no começo dos anos 2000. Porém antes disso veio o graffite, minha porta de entrada para o Hip Hip, sempre fui de desenhar, curtia criar meus quadrinhos, inventar meus personagens, ou replicar poster de quadrinistas famosos como Jim Lee ou Todd McFarlane, copiava os traços desses gênios, e depois fui fazendo algo mais a ver com a cultura de rua, um mano de calça larga, um skatista, ou algo do tipo. Já cheguei a rabiscar muros, mas sempre fui mais de fazer as paradas no papel. Cresci em um bairro de periferia, não chega a ser uma favela, mas um lugar onde os meninos da minha idade tinham uma situação familiar e financeira parecida com a minha, isso gerava identificação, a falta de grana para um vídeo game, montar uma bicicleta com peças velhas, as vaquinhas pra comprar um refri num sábado de sol e os furtos nos mercadinhos da cidade fazem parte desse aprendizado e crescimento, e ai vem o rap, que é como um pai, que educa, dá conselhos e até uns tapas. Ouvir rap, e sobretudo entendê-lo, foi crucial para mudar algumas atitudes na vida.
Como diz a celebre frase da 4P “Para de se enganar, o sistema não gosta de você”, então restava enfrentar o sistema, aqui cabe Facção, “o seu estudo breca o cano do PM”, e GOG: “O estudo é o escudo” e aí fui estudar, primeiro um técnico na área de logística, depois na área de informática e aí, através do PROUNI, me formei engenheiro de automação, depois um MBA em gestão de projetos, e o currículo aqui não é pra me gabar, mas pra dizer que todo o estudo foi bom e importante, mas também que nenhum título desse te traz reconhecimento nas ruas e sim o corre que se faz em prol de alguém que tem sonhos. Tocar um artista “pequeno” pela primeira vez no rádio não tem preço!
Oganpazan: Quando é que você ativou esse gatilho e despertou o interesse em escrever e resenhar sobre música?
Jeff Ferreira – Na escola eu gostava de afrontar, sair do senso comum, a professora de artes pedia um desenho feito a partir do contorno do rosto, as pessoas viam nos altos e baixos formados pelo nariz, lábios e queixo uma montanha, eu via papagaios em diversas árvores. A professora de português pedia para resenhar uma matéria de jornal, meus colegas entregavam meia folha de texto sobre o recorte, eu entregava oito páginas, queria afrontar mesmo. Mas essa visão de ver algo diferente do que a primeira camada apresenta me gabaritou, digamos assim.
E a música, principalmente com conteúdo e poesia, me fez ver essas demais camadas, então às vezes é como um quebra-cabeças, uma construção musical fala sobre o amor entre homem e mulher, mas nas entrelinhas traz inúmeros outros temas, como por exemplo “Tú Es o MDC de Minha Vida”, do Raul. Ou no rap, apesar do gangsta dos 90 ser mais explícito e não fazer tantos rodeios, mesmo assim havia muita coisa: “Subúrbio para morrer vou dizer…” ou “dá licença truta, aqui é o rap não o crime…”.
Com o tempo o rap ficou mais lírico e passou a ter mais necessidade de alguém fazer a interpretação e dixavar trechos como “insisto e recuso “istas” / sismo e rechaço “ismos”…”, isso é louco. Também tem a questão das “histórias de bastidores”, acontecimentos por detrás de uma música, disco ou artista e que seria massa ser levado a um grande público. Essas coisas que penso quando vou escrever, o que eu gostaria de ler quando estou diante de um texto? Além das informações básicas o quem, como, quando e onde, quero levar um aprendizado dali, quero me alimentar de alguma curiosidade ou informação não tão “na cara” que a obra oferece.
Oganpazan: Você é natural de Umuarama, interior do Paraná. Como se deu essa sua migração do Paraná para o interior paulista?
Jeff Ferreira – Mano, na primeira metade dos anos 90 viemos pra São Paulo. Meus quatro avós são de lá (o avô paterno já falecido), então toda minha raiz é em Umuarama. Primeiro veio um tio para o estado de SP, em busca de oportunidade de emprego, veio morar com uma tia dele, irmã do meu vô materno. Depois veio outra tia, depois meu pai e por fim a gente, todos a procura de emprego na promissora região metropolitana de Campinas, na bem desenvolvida, porém provinciana e conservadora, cidade de Jaguariúna. Isso foi em 1995, então já são 25 anos forçando o “erre”, sou mais um caipira da cena 019.
Oganpazan: Já há alguns anos vemos que a internet nos dispõe de farta quantidade de sites, blogs e outras plataformas que ajudam a difundir o Rap Nacional. Porém, muitas delas, se propõem a apenas replicar releases dos artistas e notícias de outros sites. Já o trabalho do Submundo do Som é mais conceitual e traz um aprofundamento maior sobre as obras as quais resenha. Como você enxerga a importância desse diferencial?
Jeff Ferreira – Os sites, sejam eles voltados para o Hip Hop ou qualquer outro estilo de música de resistência, são de suma importância para contar a história da nossa música. Eu como pesquisador, fui salvo várias vezes por algum blog. Sempre tem uma matéria, uma entrevista ou uma nota em algum site, blog ou portal. Os manos que administram sites precisam saber da importância que têm e ao mesmo tempo cuidar dos seus veículos, como quem cuida de um filho, pois eles estão contando a história da música e cultura brasileira. E por isso precisam ser reconhecidos e merecem respeito.
Os sites no Brasil têm características diferentes, cada um dá mais holofotes a uma cena ou segmento, e isso é da hora, pois um site complementa o outro e nós temos sempre uma boa relação e contribuição mútua, a exemplo dessa entrevista. No meio dessa diversidade de sites, temos os ruins também, aqueles que fazem fofoca 24h e os que tem rap de menos, e que preferem as tretas, porém eles existem porque tem público que consome freneticamente. No Submundo do Som o trabalho é aquele de formiga solitária, com objetivo de escrever direcionando o conteúdo para quem gosta de ler sobre música, de enxergar pautas incomuns e trazê-las para a discussão.
Acaba sendo um trampo direcionado para um nicho muito específico, pois em 2021, no auge da correria cotidiana, em meio as multitarefas, os desserviços dos memes e resistir ao desgoverno patético, corrupto e fascista, quem tem tempo para ler um texto longo, assimilar e ainda discutir sobre? Acabo escrevendo para loucos, a notícia boa é que cada vez mais encontro um desses, e eles passam a ser amigos para além da música. O lado ruim, é que um texto conceitual carece de pesquisa e tempo, então as publicações no site acabam ficando espaçadas, mas há sempre uma resenha de disco, um fato musical ou uma entrevista. Seguimos!
Oganpazan: As suas primeiras ações envolvendo a música e mais especificamente o Rap foram através do site Submundo do Som? Fale-nos um pouco sobre a plataforma e quantas pessoas trabalham com você?
Jeff Ferreira – Na minha vida a música se manteve presente por dois canais, as fitas cassete e o rádio, e muitas vezes gravando na cassete coisas do rádio. Hoje é comum o termo podcast, mas lá em meados dos anos 2000, eu gravava meus programas de rádio, fazia locuções e apresentava músicas e curiosidade. Tudo de forma caseira e sem pretensão, mas aquilo era um embrião do que viria a ser meus projetos de hoje. Nas periferias, é incontestável a importância de Racionais Mc’s, RZO, Face da Morte, Consciência Humana, De Menos Crimes ou Conexão do Morro, grupos que sou devoto, os álbuns desses artistas chegavam fácil na mão de qualquer mano, porém não chegava os trabalhos de Parteum, Black Alien e Speed, Rua de Baixo ou Ciência Rimática que apresentavam outras formas de construção artística, então quando tive acesso ao download, a ideia era compartilhar esses “undergrounds” do já subterrâneo rap nacional, daí o nome Submundo do Som.
Em uma sociedade onde o sertanejo, pop e funk são os ritmos predominantes, você falar de uma banda de rock ou reggae, seja ela grande ou pequena, você está falando do submundo, pois são gêneros que ficaram específicos a um perfil de ouvinte. O rap já tem uma característica diferente, apesar de ser o estilo mais ouvido, ele é muito invadido por pessoas de fora. O rap que toca na rádio não é o que o gueto ouve e vice-versa, falando de um modo geral, e dentro do universo do rap temos o mainstream, midiastream e o underground, e dentro do underground temos muitas cenas, muita gente querendo “chegar”, querendo “virar”, ou seja, sair do submundo, outros fazendo por amor independente de status e outros tentando se achar.
O ponto de ignição do Submundo do Som foi em 2014, e se deu através do álbum Sangueaudiência, da banda O F.UR.T.O., do saudoso e eterno Marcelo Yuka. Depois de ouvir exaustivamente o álbum, e estar excitado com a obra, quis escrever um texto e queria que todos escutassem o disco e sentissem o que senti, o texto propaganda seria enviado por e-mail para os amigos, mas aí veio a ideia de subir em um blog, que se chamaria “ManiFiestaSom”. Anos antes, fui a um show do Charlie Brown Jr, e Chorão trouxe um repertório de Chico Science, aquelas músicas mexeram comigo ao ponto de eu pesquisar intensamente sobre a cena do manguebit, e até a fazer uma entrevista com o Gilmar Bolla 8, o bate papo seria meu segundo conteúdo para o blog, e pensei em fazer novas entrevistas e resenhas de discos, mas desses trabalhos que fogem do senso comum brasileiro e mesmo dentro de um segmento, ir no submundo daquele som, aí a inspiração para o nome. Da pesquisa sobre o manguebit, junto com a entrevista com Bolla 8, nasceu o livro Manguebit- A Revolução da Lama.
No Submundo do Som eu sou sozinho, já tive muita ajuda, manos e minas que mantiveram por algum tempo uma coluna, mas que devido a correria do dia a dia tiveram que se ausentar da página. Sigo só em relação as pautas, manutenção do site, edição, gastos, falar com artistas e assessoria etc., mas acompanhado daqueles que gostam de ler sobre música e que através de um gostei, uma compartilhada ou um comentário do mais simples, me dizem: “tamo junto Jeff”. E o site segue de portas abertas para quem quer colaborar com uma visão, somar de alguma forma. Não sendo facho ou de ideia torta, de resto é tudo nosso.
Oganpazan: Atualmente vivemos no Brasil um período político muito delicado em que pautas da ultradireitista sobrepõe toda uma conjuntura de conquistas e demandas democráticas. E dentro desse contexto, nota-se que a linha editorial do Submundo do Som é de uma página que se posiciona. Qual a importância de um veículo de mídia se posicionar num momento como esse e não somente difundir conteúdo informativo sobre a cultura?
Jeff Ferreira – Importante se posicionar, apesar que quem não se posiciona, posicionado está, ou parafraseando Gustavo Black Alien: “Para o mal triunfar, basta que os bons não façam nada”, onde ele cita o pensamento de Edmund Burke. Falo com todas as letras; sou de esquerda, socialista e essa é minha essência, e o Submundo do Som sou eu. Então a página segue essa linha. Muitos têm a pachorra de dizer “nem de esquerda, nem de direita, pra dentro, ou pra frente…”, mas se chamar o VAR vemos que esses caras são de direita. Aqui eu cito outro monstro, o professor GOG, recentemente ele fez um vídeo sobre o tema, e ter que explicar para seguidor seu e amantes do rap o que é ser de esquerda é osso.
Teoricamente não precisava dessas explicações, mas também temos que fazer um mea culpa, pois se um moleque de 20 anos está confuso, talvez nós erramos em não explicar direito os delírios da direita. Então é aquilo, esquerda olha o coletivo, direita o individual. O rap não é união? Não é coletividade? E a política precisa ser encarada para além dos partidos políticos, essas agremiações são formadas por pessoas e pessoas erram, participam de acordos etc. Muita gente é de esquerda, mas não sabe que é, acaba sendo avesso ao termo devido as presepadas dos partidos. Outros acham que a esquerda é uma pessoa ou é tudo aquilo que não é e que o bozo diz que é, mas esses aí são os minions que não sabem o que dizem.
O Submundo do Som sempre vai se posicionar, sempre vai ser oposição a nazi e fascista, sempre vai estar ao lado do nosso povo e contra o capitalismo que visa produtos descartáveis. Aproveito para convidar o leitor a acompanhar o site Hip Hop Sem Maquiagem, um blog que fala muito do tema com a linguagem do rap, capitaneado pelo Allison Tiago e que agora ganhou reforço com o Thiago Augusto, dois manos que precisam ser ouvidos.
Jeff Ferreira – Além do site, apresento o Programa Consciência Brasileira, desde 2017 na Rádio Estrela FM, em Jaguariúna, um atrativo semanal com 1 hora de música nacional, dentro dos estilos que o Submundo do Som atua. com o Consciência Brasileira foram lançadas 3 coletâneas: Interior, Mas Não Inferior (2018), Retratos do Brasil (2020) e Prata da Casa – O Rap de Jaguariúna. Na Mutante Rádio tenho dois programas, o Desgovernadoz Rap, um playlist de 60 minutos, e o Punkada, um programa de punk rock e hardcore que também toca ska, metal, reggae, ragga e rap, e tem uma linguagem mais escrachada, humorada e repleto de críticas sociais. há também o podcast do Submundo Do Som Entrevistas, com bate papos no formato de áudio.
Também produzo lyrics video sob o pseudônimo de Lyric Way e tenho o orgulho de dizer que componho o projeto Bas-Fond, onde o produtor Mario Ribeiro, aliado a algum artista que cede sua voz, traz obras do não muito explorado (em solo brasileiro) Trip Hop e downtempo, sempre mesclando com algo, seja reggae, pop, industrial ou rap, e nesse projeto eu assumi o posto de lyric maker, já lançamos seis canções, também fiz o lyric da estreia de outro projeto do Mario, o Ocean Key, onde ele tem companhia da francesa Nova Claret.
Escrever e pesquisar é o que curto, então tem os livros também, Manguebit – A Revolução da Lama, Submundo do Som Entrevistas – Ano Um e 30 Anos do Disco Hip Hop Cultura de Rua (e a versão em espanhol El Primer Disco Clásico del Hip Hop Brasileño).
Oganpazan: Jeff, sabemos que você tem um grande hobby, que é colecionar vinil. Como surgiu essa sua paixão pelas bolachas? E tendo em vista que muitos artistas tem lançado (e relançado) seus trabalhos nesse formato, como ver a retomada dessa mídia pelo mercado fonográfico em tempos de streaming?
Jeff Ferreira – É curioso, eu tinha várias fitas K7 do meu pai, fitas de sertanejo dos anos 90, e gravava rock e rap por cima delas, era o que se tinha para poder armazenar música. Ficava namorando os CDs nas lojas, pois o CD tem o lance do encarte, de poder ler informações técnicas, os agradecimentos. Acho isso importante. Mas essa era uma mídia cara e eu ficava só nas fitas. Quando comprei meu primeiro CD, Bocas Ordinárias (Charlie Brown Jr – 2002), eu não tinha onde tocar CDs.
Depois a mídia se popularizou, teve os piratas também, aí eu olhava apaixonado para os vinis, a arte da capa era maior, tinha a bolacha também, aquilo fascinava, sem contar que o disco é matéria prima para o Hip Hop. No entanto, nunca me aventurei a comprar um disco, achava caro também, até o dia que dois amigos de um antigo trabalho que eu tinha, o Jhonny e o Rodrigo Braga, me presentearam com o Afrociberdelia, do Chico Science e Nação Zumbi, aquilo me emocionou. Não tinha onde tocar, mas corri atrás e comprei uma vitrola e com o tempo fui comprando LPs, alguns novos outros em sebos. Sempre fui um rato de sebo também, colava em vários para descolar HQs e livros, e depois desse dia vinis também.
E sabe o que é louco? Hoje conseguimos colocar uma música nos streamings, conseguimos colocar uma música em um CD, conseguimos colocar em uma fita K7, mas não conseguimos colocar no vinil, e essa tecnologia apareceu primeiro que as demais, mas ainda não é popular ao ponto de um artista pequeno do underground colocar sua voz lá, pelo menos sem arcar com um caminhão de dinheiro.
A diferença do vinil e CD para o streaming é que são formas diferentes, pensadas para pessoas diferentes, no geral, quem usa apenas as plataformas digitais, não preza pelo conceito e sim pela diversão momentânea, tem estudos que dizem que a média é de 30 a 40 segundos que as pessoas ouvem, e descartam os outros 3 minutos da canção, mas mesmo ouvindo inteiro, não se tem a preocupação de saber mais sobre aquele artista, buscar ficha técnica.
Quem ouve vinil ou CD é mais seletivo, gastar R$ 100,00 em um LP tem que gostar e degustar da bolacha, colocar para rodar e escutar da primeira à última faixa, e com isso se conhece o artista melhor, não só pelo hit comercial. Então são públicos diferentes, quem gosta de música de verdade e quem gosta apenas da moda, do hype, mas o universo é gigante e tem espaço para todas as mídias. Aproveito a ideia para falar para artistas independentes, apostem nas mídias físicas, principalmente o CD que é viável, pois serve como um cartão de visitas, se alguém pede pra eu procurar o som no Spotify ou YouTube, provavelmente eu não vou lembrar de fazer, mas se me entregam um CDzinho, com certeza vou dar play!
Oganpazan: Jeff, você além de gerenciar todas as atividades acima mencionadas, também é escritor e possui obras relevantes em seu currículo. Mas gostaríamos de falar especificamente do seu livro: 30 Anos do Disco Hip Hop Cultura Rua, uma obra dedicada ao disco que é considerado um registro primaz do Hip Hop brasileiro. Conte-nos um pouco sobre essa obra. Como foram as pesquisas. Você teve a colaboração dos artistas do disco? Quanto tempo levou para ficar pronto? Fala aí um pouco sobre o do livro.
Jeff Ferreira – Mano, fazia tempo que estava afim de fazer uma pesquisa sobre nossa música e trazer os resultados para a comunidade, queria mergulhar em algo nesse sentido. Um dia estava garimpando em um sebo, e peguei nas mãos o LP Hip Hop Cultura de Rua, e me bateu um pensamento do quão importante é esse disco, seja porque ele tem 30 anos de história, seja porque dali surgiu Thaíde e DJ Hum ou por ser um dos primeiros do nosso Hip Hop, porém pouco se fala dessa obra ou de qualquer coisa dessa época.
No meu íntimo, esse disco merecia um pedestal, mas pelo contrário é uma obra que foi escanteada pela massa dentro do rap. Então pensei em escrever minha pesquisa sobre esse álbum, mas antes de falar do disco, artistas e músicas que o compõe, foi necessário falar da Estação São Bento, onde tudo começou, da cena em São Paulo, da chegada do Hip Hop no Brasil, do desenvolvimento da cultura do Bronx e de seu embrião na Jamaica. Resumindo, esse é um livro que fala sobre Hip Hop e sua genealogia.
Muita gente fica brada e discorda, mas realmente há a polêmica envolvendo o título de “primeiro disco de Hip Hop do Brasil”, e veja bem que não falei o primeiro de rap, e sim de Hip Hop, o LP foi lançado em 1988, antes disso temos registros de rap feito no país, como por exemplo o Ousadia Rap, da Kaskata’s, de 1987. O fato é que o título se dá por realmente ser um disco de Hip Hop, no sentido de ter 4 Elementos, é um disco formado pelas crews de b.boys e grafiteiros, as quatro maiores gangs de São Paulo, inimigos mortais, tiveram que se unir para construir o disco, Crazy Crew, Back Spin, Street Warriors e Nação Zulu se uniram e colocaram fim em suas diferenças.
E nessas crews havia os DJs e MC’s, Thaíde, DJ Hum, DJ Ninja, MC Jack, O Credo e Código 13 foram os protagonistas dessa empreitada. Outro ponto interessante é a respeito da produção, quem produziu o disco foi a galera do rock, Thaíde, DJ Hum foram produzidos por Nasí e André Jung, vocalista e baterista da banda Ira!, as músicas do MC Jack e Código 13 foram produzidas por Dudu Marote, quem mais tarde fez sucesso como produtor da banda Skank, e O Credo foi produzido por Akira S, que na época tinha uma banda que mesclava eletrônico e punk, o Garotas Que Erram. Dessa galera, conversei com membros do Código 13, com o Kaseone, grafiteiro e escritor da crew que O Credo fazia parte, com o André Jung e o AG Naja, que integrava o MC Jack, além de pessoas que viveram a época, os bailes, a Estação São Bento etc.
Esse livro acredito que levou aproximadamente dois anos para ficar pronto, um pouco menos na verdade. Comecei a escrever em 2017 no primeiro semestre, a ideia era lançar em 2018, para pegar a exata data de 30 anos do disco, no decorrer desse fatídico ano fui tendo entraves para concluí-lo, mas a medida que ia avançando na pesquisa surgiu a ideia e possibilidade de lançá-lo em 02 de novembro, dia de finados e também dia que o Hip Hop Cultura de Rua foi originalmente lançado, em 1988.
Oganpazan: Então, mano. Ainda falando sobre o HHCR, no final de 2020, a obra ganhou uma bela versão em espanhol. Como é que foi esse processo de fazer essa obra tão importante para a história do Hip Hop brasileiro chegar nas mãos dos nossos hermanos?
Jeff Ferreira – Tudo começou quando estava pesquisando para o próprio livro e percebi o quão rica era a história do Hip Hop no nosso país, e me chamou atenção: “como nasceu o Hip Hop nos países vizinhos?”. Comecei a pesquisar sobre o tema e fazer algumas matérias a respeito para o Submundo do Som. Um dia em um grupo do Facebook sobre o Hip Hop argentino me deparei com um post sobre o livro “Rap de Acá – La História del Rap en Argentina”, do Martín Biaggini.
Procurei o autor para saber mais e nos tornamos amigos, inclusive ele me presenteou com um exemplar da obra. Pouco tempo depois, Martín fazia um post dizendo que o livro estava à venda na livraria portenha Malungo Libros, esse nome me chamou atenção e passei a segui-lo no Facebook e suas postagens eram sempre sobre livros ligados à cultura negra. Passei a conversar com o Roberto Sena, proprietário da Malungo Libros, um afro-argentino, e passamos a trocar figurinhas sobre vários temas, mas principalmente a música, ele me falava dos livros que vendia e eu falava dos que eu havia escrito, ele queria muito uma cópia e a princípio mandei o PDF do 30 Anos do Disco Hip Hop Cultura de Rua, mas seria importante que ele lesse e compreendesse a história do nosso Hip Hop.
Da mesma forma com Martín, queria retribuir o presente que ele me deu, e queria lhe dar um exemplar de minha obra, mas queria que ele lesse e entendesse. Aí foi o momento que pensei que o livro tinha que ser traduzido, pois havia demanda. No meio desse processo e através dessas pessoas, conhece o DJ e MC Ralph, um argentino que vive no Brasil, ele me falava do quão importante o Hip Hop brasileiro foi para a cena argentina. O Hip Hop começou junto nos dois países (e demais da América Latina), através do breaking e do filme Beat Street, isso em meados dos anos 80, mas no Brasil se desenvolveu mais rápido, por dois motivos; um deles a abertura do país pós ditatura militar, aqui aconteceu mais rápido do que na Argentina, com isso as pessoas iam para os EUA atrás das novidades ainda nos anos 80, e nossos hermanos foram fazer isso só em meados dos 90.
Outro fator, é que o Brasil sempre teve uma cena da música black, do samba, samba rock, funk e soul, e nossos vizinhos não tinha essa cultura, essa fase pré-Hip Hop, com bailes de salão e equipes de baile, lá o rap era o underground do underground. Porém nos 90, chegou a tocar nas rádios argentinas nomes como Gabriel, O Pensador e Marcelo D2, e para as comunidades que já ouviam música brasileira dos 70 e 80, foi natural que alguém aparecesse com trabalhos de Thaíde e DJ Hum e Racionais MC’s. Através do documentário “Hijos de Nadie: Una Película Sobre Los Adolfos Rap”, filme sobre um dos primeiros grupos da Argentina, conheci Jazzy Mel, um uruguaio que é um dos pioneiros do Hip Hop argentino e que veio ao Brasil para beber da fonte e viver as experiências daqui que era a Nova Iorque latina, como ele mesmo diz.
Essa história era fascinante, eu precisava saber mais, através do Ralph consegui contato com Jazzy Mel, que me contou que gravou dois discos no Brasil, em 1989 e 1990, depois com o desgoverno Collor se viu obrigado a voltar e gravou seu primeiro disco em espanhol e explodiu na Argentina, convidei ele para contar essa sua história no Brasil, já que ele foi um contemporâneo do Hip Hop Cultura de Rua, e Jazzy Mel assina o prólogo da versão em espanhol. A tradução foi feita por mim e corrigida por ele.
Oganpazan: Ainda no campo literário. Nós do Oganpazan ficamos sabendo que você também está trabalhando em um outro livro, uma espécie de biografia de um gigante do Rap nacional. Poderia nos confirmar essa informação? E quem seria esse grupo?
Jeff Ferreira – Mano, não somente um grupo, mas dois! Serão dois livros! Estou trabalhando com o Face da Morte, lendário grupo do interior de São Paulo e que em 2020 completaram 25 anos de caminhada e seguem na ativa lançando músicas, depois de uma pausa que deram. O Erlei e o Ed Carlos, o Aliado G e Mano Ed, contam suas histórias baseado em uma entrevista que fiz com eles, então o livro além de falar da obra fala bastante sobre os bastidores.
Estamos em desenvolvimento, mas está bem avançado, como teve a pandemia e o Face da Morte priorizou os lançamentos musicais do grupo, pra firmar esse retorno deles na cena, acabamos desacelerando um pouco o ritmo, mas falta pouquíssima coisa para finalizarmos, e posso afirmar que tá bem massa. Pra quem gosta de rap de verdade, é um prato cheio.
O outro é a história do RZO, um gigante do nosso Hip Hop, banca que formou grandes artistas, como Negra Li, DBS e Sabotage, capitaneado pelo Helião, Sandrão e DJ Cia, além de vários outros nomes que passaram pela Família. Esse projeto está pronto, o livro está passando por revisões, feitas pelo grande Gagui IDV, mas já está finalizado. E para ser viabilizado, vamos iniciar em breve o Financiamento Coletivo para captar recursos e fazer a pré-venda. Esse trabalho é uma homenagem ao grupo e seu legado, e também ao seu público que sente carência de um registro desde tipo. É um trabalho de fã para fã!
Oganpazan: A duras penas, passamos pelo fatídico ano de 2020 (ou não?!), quais são suas projeções para o ano de 2021? O que podemos esperar do polivalente Jeff Ferreira nesse ano que se inicia?
Jeff Ferreira – Para 2021, quero lançar livros, colocar ideias nas ruas. Quero dar uma atenção ao Submundo do Som, me dedicar mais ao site, estreitar ainda mais a relação com artistas, quero chamar pessoas para entrevistas, para podcast. Quero atuar no audiovisual, hoje, sob o nome de Lyric Way, faço lyric videos para o pessoal do underground, mas gostaria muito de rodar um documentário um dia, quem sabe não rola em 2021?
Também penso em lançar uma revista de cultura, chama Squatters, onde vamos falar de tudo; futebol, vídeo game velhão, culinária, moda, Jaspion, quadrinhos, livros, cinema e muita música, com colaboração de todo globo.
Também passo a assinar uma coluna na revista argentina Página Negra, editada por um afro-argentino e militante do movimento negro no país vizinho, o Malungo, veículo de extrema importância para a discussão atual. Quero falar de HQ também, principalmente aquelas que mexem com o social, fazem críticas e nos tira da zona de conforto. Quem sabe não começo um site ou podcast?
Outra novidade é que alguns contos que escrevi vão ser lançados em antologias, influenciado e incentivado pelo meu mano Mario Sergio Ribeiro, o rapper Siloque, autor do livro O Que Terá Acontecido ao Rato Herman (leiam!). A princípio dois contos saírãp no primeiro semestre, um pela editora Diário Macabro (uma das maiores do segmento) e outro pela EHS, ambos na pegada do terror/crítica social, vale muita a pena conferir.
Oganpazan: Jeff, meu mano. Novamente, obrigado pela sua disponibilidade em trocar essa ideia com o Oganpazan. O espaço é seu, mano. Fica vontade pra fazer suas considerações finais e acrescentar o que você quiser, irmão. Deixa também seus contatos pra quem quiser conhecer um pouco mais sobre o seu trabalho.
Jeff Ferreira – Mano eu que agradeço, agradeço a ti Paulo pelo convite e pela troca de ideia, e ao Danilo que é um cara fantástico e sempre me apoia e abre as portas para minhas ideias. Agradeço também uma pessoa mais que especial, minha esposa Jusciane, sem ela não sou nada e para tocar tantos projetos ela que acaba sofrendo um pouco com minha ausência e dedicação a outras assuntos que não ela, mas fica registrado aqui que eu amo minha princesa! No mais, peço a galera mais nova que estude, leia, escute música, assistam filmes, acumule bagagem e dê valor a quem veio antes.
Para os caras mais velhos, não sejam chatos, abram a cabeça para o novo e não queiram ser os donos da razão cagando regras ou corrigindo os outros a todo instante em redes sociais, só para serem os sabichões da parada. Cuidem do planeta, não compactuem com fascistas e exercitem o corpo e a mente, o futuro agradece.
Atualmente não é incomum vermos teses e mais teses de faculdades ancorados no tema do Hip Hop, algo que seria quase inacreditável de se pensar até 20 anos atrás. Com a virada dos anos 1990 para à primeira década dos anos 2000, surgiu dentro do Hip Hip nacional o “boom” dos Saraus e a redescoberta que ficou conhecida como a nova Literatura Marginal e/ou Divergente. Porém, com o declínio do protagonismo marginal, e com a consolidação do Hip Hop como parte da Cultura brasileira, surgem as inúmeras teses acadêmicas sobre o tema. O que tem sua importância sim, porém, pouca (ou nenhuma aplicabilidade) para o Hip Hop propriamente.
E é em importante que surjam obras de escritores orgânicos autênticos como as de Jeff Ferreira e a de outros tantos engajados nessa trincheira, que vemos surgir um novo levante de escritores. Exemplos inspiradores que oxigenam a luta pela retomada de nossas narrativas e de registros genuínos dos que de fato amam, vivem e militam, cada um ao seu modo pela cultura Hip Hop…
“Conhecer o passado e respeitar quem o escreveu é um dever e uma sábia decisão de quem pretende viver o verdadeiro Hip-Hop ou falar em nome dele”. (Site: Breakin World).
Afinal… “Se a história é nossa, deixa que noiz escreve” (Renan Inquérito).
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-Jeff Ferreira e a mil camadas do seu Submundo do Som – Entrevist
Por Paulo Brasil
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