Jef Rodriguez lança seu primeiro trabalho solo, o EP Spiritual (2021) e traz a produção do grande RDD, além vários convidados
“Palavra dita e murro dado não tem como voltar”
A variação de beats, a qualidade das participações, imprimem a Spiritual (2021) uma força que não poderia ser outra em se tratando de uma estréia de um MC, DJ e professor de filosofia que é parte de uma das maiores bandas da história do rap nacional. O arco das músicas apresentadas nos remete inevitavelmente ao fazer poético que toma primeiro a si mesmo como matéria espiritual que necessita estar com o coração e a mente em harmonia, para que se possa transmitir em forma de arte ideias que alcançam o transcendental.
Nesse sentido, certa sisudez, o discurso mais seco, o flow e o beat que remete a golden era, é a abertura necessária para que se possa fazer um diagnóstico lúcido de como está o nosso mundo hoje. Questões de ordem ética, políticas e raciais, são a tônica da faixa “Como o Mundo Gira”, música que abre o trabalho quase como um prefácio que será desdobrado ao longo do “extended play”. A track conta com a participação do Thiago Trad e apresenta a primeira produção que pode surpreender alguns que estão acostumados a ouvir o groove do RDD (ATTOOXXA) mais voltado ao “trap pagodão”.
O sample da voz de “uma mais velha”, acrescentado ao beat em looping, assim como os graves espaçados e dobrados, traz uma cadência torta e uma abertura que nos lembra dias de sol nas quebradas. As tias gritando os minino, rindo alto, os novinhos e as novinhas se embelezando, pegando fogo pelas ruas subindo e descendo, os coroa jogando dominó com a carne queimando, cerveja gelada. É o clima de paz e boas ondas que a faixa “Irradie” busca emanar e o faz bem com Jef Rodriguez recebendo Áurea Semiséria, Nelson Costa (Ilhéus) e Cajazeiras (Salvador), partilhando com muito talento similaridades e diferenças, em plena harmonia. Cultura underground, periférica, baile de favela baiana para qualquer ouvinte se sentir pra cima.
“Quando a porta fechou e o passo desandou, vivi a sentença”
Um das grandes qualidades presentes nessa estréia se dá não apenas pelo nome de Jef Rodriguez como MC do OQuadro, mas sobretudo na atualidade, na grande qualidade musical de um artista que não dorme em berço esplêndido e não cultiva nostalgias mortas no tempo. Spiritual, palavra grafada em inglês, pode nos remeter ao gênero musical e religioso norte-americano, porém aqui é atualizado e polissemicamente transformado numa espécie de aforismo de uma trajetória neste momento – do EP – se apresentando de modo solo. Ao longo desses anos, enquanto pesquisador e músico, é importante notar como Jef não se prende a estilos, buscando apurar flows diversos e uma lírica que com sutileza apresenta faces de sua vivência.
Um trabalho auto reflexivo e que de certa forma divide e gera um sentido forte ao disco, a música “Cabeça no Lugar” é ao mesmo tempo, um falar a si mesmo. Não é incomum ouvir dizer que processo de mudança necessitam de um auto convencimento. E talvez daí, possa ter vindo a inspiração para essa faixa que fala de dores e cura, da necessidade que todos nós sempre tivemos de conquistar uma consciência plena de si mesmo. Uma auto exegese que nos leva a pensar a nós mesmos, uma fronteira também dentro do próprio EP, o verdadeiro momento: “parar pra acertar”!
E por mais clichê que seja, só se pode estar bem com outro quando se está bem consigo, e quase que dialogando fortemente com a faixa anterior, surge a radiofônica e quase jorgebenjorniana: “Plano de Amor”. Com a participação da voz de Nêgamanda, a faixa como óbvio traça planos de amor capaz de gerar paz para o coração cariri de Jef Rodriguez, apresentando uma outra dimensão mais “aquietada” do homem e ao mesmo tempo do EP, que aqui encontra seu momento mais pop, sem se fazer menor.E aqui também em todo o resto do trabalho, o nome de RDD e suas mãos mágicas se fazem presentes sem deixar a música cair em maneirismo, com uma “cuiquinha” safada…
As origens interioranas de Jef Rodriguez são trazidas à baila com a faixa “Aboio”, pois nem somente de solipsismo e amores viverá o MC. Penúltima música do disco, traz as participações de CT (niteroiense do grupo Caixa Baixa e ex-1Kilo) e Rone Dumdum Afolabi (Opanijé), que dividem a função de pastorear e buscar esclarecer o coletivo e ao mesmo tempo denunciar o gado fascista. Da falta de empatia de uma burguesia provinciana, com as desgraças próximas que estamos vivendo hoje (CT), passando pela ignorância e a reprodução de uma alienação contaminante no rap atual como espelho da sociedade (Jef Rodriguez, e fechando com os trocadilhos muito bem construídos na relação gado/mito (Rone Dumdum) a faixa é um petardo sobre nossa atual situação política.
“ Se fores espancado por um branco, não se queixe aos brancos”
Quem não revida rasteja, e Spiritual (2021) fecha os trabalhos fazendo um levantamento incrível da nossa herança negra, reconquistando uma memória de nossas lutas em plena sintonia Bahia / África. Abrindo mão de um beat afrobeat do RDD e com a participação de Tiganá Santana no refrão acima mencionado, “Revide” situa todas as questões anteriormente levantadas dentro de uma perspectiva epistemologicamente afrodiaspórica. Com menções a revolta do Cabula, ao “Fela”, ao mestre Moa do Katendê brutalmente assassinado pelo fascismo nacional de última hora vomitado publicamente, é um final digno do nosso povo e da obra como um todo.
Ao final e ao cabo, temos uma estréia solo de um Jef Rodriguez ainda por ser descoberto em outras dimensões, diferentes daquelas que até aqui com seu trabalho no OQuadro foi tornada pública. A capa que traz o jovem Jef com sua mãe, nos dá sinais de uma reconquista mesmo de toda sua mente, logo de seu corpo, acerca de sua vida. Aquela mesma, a qual nos referimos, sobre uma autoconsciência mais plena de si e que como poeta e filósofo formado o arremessa no ethos de conquistar. Sorte a nossa, que podemos receber isso em forma de música, em forma de rap, um trabalho que agrega sem dúvida ao rico cenário do hip hop baiano. Está aí, coloca Spiritual pra rolar…
-Jef Rodriguez: “Um coração Cariri, botando as peças no lugar”
Por Danilo Cruz