Asfáltico, EP lançado pela dupla Jamés Ventura e Jota Ghetto, traz participações de KL Jay e Dory de Oliveira, em 4 faixas “pesadamente ruestres”.
Pleonasmo dizer que o EP Asfáltico dos amigos e parceiros de música Jamés Ventura e Jota Ghetto ganhou as ruas. Lançado pela gravadora KLmúsica, do renomado DJ KL Jay (Racionais MC’s), o disquinho – que merecia uma versão em compacto de vinil, “fede” às ruas, retira de lá sua potência e exprime desde os primeiros segundos, um rap sujo. E tudo isso é apenas 5 faixas e pouco mais de 14 minutos.
Se é verdade que não é possível definir com 100% de acerto o que seria o tal do real Hip-Hop – como podemos ler na apresentação do trabalho no site da gravadora – arrisco-me a dizer que pelo menos 95% dá. Afinal, nossa subjetividade deve estar o máximo possível assentada em vetores objetivos, e por mais que nossas experiências sejam diversas, partilhamos algo/muito em comum.
Como cultura urbana, o Hip-Hop se desenvolveu ao longo das últimas décadas em jogos perigosos com a indústria cultural supremacista branca. Obviamente, da matriz da cultura para esta nossa sucursal – como infelizmente o rap nacional não deixou de ser – existem diversos fatores que diferenciam o estabelecimento do Hip-Hop em nossas terras. Da ausência de uma mídia profissional, de uma indústria própria e chegando na xenofobia, nem se sabe direito definir o que seja o rap nacional, para além das figuras nacionalmente conhecidas do eixo Rio-SP.
Não há uma história coletiva que abranja o país em suas diferentes expressões históricas na cultura Hip-Hop, e mais detidamente no rap, que seja de conhecimento público e esteja passando através das gerações. Nem mesmo a história do rap paulista – entendido como estado da federação – e da mesma sorte a do rap carioca, o famigerado eixo, se faz de conhecimento público.
No entanto, ainda assim possuímos um ponto em comum em toda a produção no país ao longo da história, o Hip-Hop é uma cultura de rua, negra e periférica. Neste sentido, o adjetivo Asfáltico que nomeia o EP é bastante relevante, pois nomeia uma objeto artístico da cultura que se insere na tradição e esclarece algumas questões presentes nas bobagens fabricadas por “rappers/influencers” de internet. Vivência, arte e conduta talvez sejam três pilares que diferenciam e podem ser sentidos e observados quando se fala em real Hip-Hop.
Enquanto MC’s, Jamés Ventura & Jota Ghetto já acumulam milhagens voando abaixo do radar da maioria do público branco de classe média do rap nacional. Sem vomitar groselha na internet e engrandecendo a arte e a cultura com o trinômio acima mencionado: Vivência, arte e conduta. A faixa que abre o trabalho, apresenta-nos isso de modo inequívoco, caminhada e aprendizagem de rua exalam através das rimas e do beat “nojento”, daqueles de fazer bico e virar a cara, do Avila Beatz.
-Leia o artigo que publicamos sobre o disco de estreia do Jamés Ventura, clicando aqui
Se o rap é um jogo, “Pé na Porta” já chega mostrando que bons jogadores percebemos no “arriar da mala”, como dizia meu finado avô Tourinho. E não estamos falando de jogadores novos, em teste, e sim de MC’s experimentados. Jamés Ventura possui uma ampla discografia que dispensa comentários e o Jota Ghetto já foi de grupos de rap em São Carlos – SP como o Zero16, possui uma mixtape solo: Dinamikrophonia (2011), além de excelentes EP’s lançados mais recentemente. Os dois também são do elemento pictórico da cultura, seja no grafite ou na pixação.
A não ser que o ouvinte já esteja embotado pelos algoritmos do que seja o rap no século XXI, os primeiros 15 segundos da faixa de abertura: “Pé na Porta” já vai fisgar o seu pescocinho. O beat do Avila Beatz com um espertíssimo e lisérgico sample dos pernambucanos do Ave Sangria, seguido do refrão do Jamés é para arrombar sua percepção de modo irreversível. A quilometragem gasta das memórias e as pavimentações pelas quais passou, as tretas, as doideiras, mas sobretudo a postura de rua, marcam muito bem essa faixa de abertura.
Nomeando a segunda música como “Kool Herc”, evocando a “história e a ética” ruestre iniciada pelo mestre jamaicano, os caras conceituam em cima de um drumless o que lhes formou, quando ainda não era moda. E quando falamos de moda, não estamos renegando a popularização, mas com certeza, como e de que forma ela está ocorrendo. Como muito bem rima o Jamés: “O Hip-Hop é um bairro rude, nós te respeita, mas se for preciso te enforça”. Essa ambiguidade, que fazia a manifestação cultural através das suas artes ser algo “perigoso” para quem era de fora, vem se perdendo a cada dia mais.
Sabemos que existem infinitas possibilidades na “negritude”, e com certeza a arte precisa ser livre na acepção mais radical da palavra. O problema é que o Capitalismo e a Indústria Cultural utilizam essas ideias para a mera diluição das expressões do Hip-Hop, ao mesmo tempo em que o Estado Brasileiro, governado pela branquitude, busca matar a rua. E nesse movimento, obviamente Hip-Hop se torna apenas mais um “branding” na mão dos senhores de engenho que comandam o mercado.
Com “Downtown” os caras trazem o mestre KL Jay riscando e colando em mais um beat do Avila Beatz – que assina todos diga-se de passagem – e como rima muito bem o Jota Ghetto: “Vamos observar a rua, tipo um cine”. Sim, porque não é através de dogmas que se faz um cultura proliferar mas sim através da manutenção e da inovação dos modos de fazer. E nessa hora da música a genialidade de KL Jay cola o verso do Ice Blue: “As ruas tem suas leis, não são minhas, eu não inventei, eu me adaptei”.
-Leia a resenha sobre o polêmico disco Cores & Valores do Racionais MC’s no site, clicando aqui
Das transformações ocorridas do Tribunal das Ruas para o tribunal da internet, a produção da ignorância predomina, assim como a gourmetização, e o desconhecimento da cultura Hip-Hop é muito bem aproveitado e nesse sentido é função dos seus atores produzir peças de Agnotologia. Os falsos problemas como o Trap não é Rap, ou as falsas concepções, rap sujo é cantar putaria, florescem e é pode combater isso – se é que é possível – é a produção artística e de conhecimento de dentro da cultura Hip-Hop.
Uma cultura que tem suas bases produzidas na Diáspora Negra jamais utilizaria a noção judaico cristã de que sexo é algo sujo, apesar dos moralistas de plantão. Rap Sujo possui uma outra história e está muito mais associada a aspectos agressivos e contraculturais, que foram construídos como um louvor ao fato de estar à margem, de ser cultura marginal. Para nossa sorte, a faixa “Gangue de Metrô” nos fornece um excelente exemplar.
Com as rimas de Jamés Ventura, Jota Ghetto e a participação visceral de Dory Oliveira, “Gangue de Metrô” é para mim desde já um clássico instantâneo. Não tem invenção da roda aqui, mas a forma como os artistas atualizam um modo de fazer consagrado do ganguismo nessa faixa, a torna muito especial. A primeira coisa ouvindo ela que me veio à mente foi The Warriors (1979) e a sua fuga alucinante pelos metrôs de Nova Iorque, mas ouvindo a faixa é a noção de incorporação do coletivo do povo preto e periférico que assume, Can You Dig It, Sucka? (Tradução por Matéria Prima: Você Tá Ligado, Trouxa?)
Vivemos um tempo onde o utilitarismo neoliberal formou a subjetividade de muitos dos atores destacados que utilizam a cultura hip-hop como sua vitrine para pregar absurdos. Pregando que quem está no tráfico produza marmitas para sair dele. Assumindo uma ética estúpida do tipo: “águia, voa com águia”. Sem nenhuma noção de economia política que os faz propagar que o enriquecimento individual é sinal de distinção vitoriosa do coletivo, ou criticar os impostos e não a aplicação destes. Chegando a extremos de rapper fechado com polícia e mais uma pá de outras patifarias já costumeiras, como xenofobia, homofobia e machismo.
-Leia o artigo sobre o disco da Dory de Oliveira no site, clicando aqui
É preciso lembrar desses absurdos para reafirmar que isso não faz parte da cultura Hip-Hop, se está presente nela é como reflexo da sociedade e obviamente, pela falta de cobranças exemplares e de controle do público. A cultura Hip-Hop luta pelo coletivo, logo é óbvio que não é fácil de estabelecer, mas facilmente perceptível, quaisquer ideias que sejam maléficas para o COLETIVO, excluem seus portadores ou os deveria levar a repensar. “Cuidado com o deixa escrito, pra não deixar ficar estreito”, nos canta o refrão de “Gangue de Metrô”.
E a força poética que nos lembra a busca coletivista e revolucionária de rua e preta do Cyrus está lá também: “O certo é que quando eu rimo eu tenho meu bairro de backing vocal” e complementando “Muito flow mocado nesse bando de preto”. São dois exemplos de postura e uma vivência que evoca vivos e não vivos, a ancestralidade, família, amizade, coletividade preta, junto com os nomes de referências de pretos e pretas na Diáspora como Hendrix ou Billie Holiday, mas também com as não menos importantes PsicoPretas.
A produção do Avila Beatz já ganhou o selinho RPW de um dos melhores bate cabeças da nossa rica história, Boombapzeira nelvosa demais, e a vontade real é de que esses manos em algum momento apareçam aqui em Salvador para ver isso ao vivo. Mas, sonho de pobre dura pouco – apesar de ser persistente – e chegamos a faixa final com “Dívidas e Reis”, música que desacelera como um bom Lemon Haze mas nos eleva.
Para muitos, talvez essa faixa passe batida, mas o liricismo que ela carrega é uma aula final da potência das ruas que a substância “Asfáltica” presentes na Rua, impregnou em Jamés Ventura e no Jota Ghetto. Em um beat cadenciado os caras dão aulas de referências truncadas, imagens poéticas e um flow maloqueiro de “levada densa”.
Enquanto Jamés investe a poesia em uma meditação sobre a ética, apontando desde as armadilhas do “sistema” (que também são políticas) para o enfraquecimento da postura (ethos) até o reforço do seu papel de cada dia na “liga da lira”. Jota Ghetto ataca mais os aspectos políticos que nos encaminham nesse mesmo sistema a viver uma vida medíocre, o conformismo. Mas, encontrando em Jorge Ben a luz polarizada para aliviar as dores no amor e seguir na luta.
Asfáltico é real Hip-Hop, alguns dados objetivos foram apontados acima, outros poderiam ser trazidos, mas já fui longe demais para os padrões de leitura do público médio e também não quero cansar por mais tempo quem até aqui chegou. Mas não posso deixar de registrar que a capa do EP é uma produção do Julio Souza aka @bic_cineia aka Jota Ghetto, pois além de tudo mencionado acima, é também um artista plástico gigante….
É aquilo né, a rua guarda Reis e Rainhas e milhões de deuses com contas no fim do mês!
-Jamés Ventura & Jota Ghetto em Asfáltico e a potência estética das ruas.
Por Danilo Cruz