A Jam Delas deixou claro a presença marcante das mulheres na atual cena instrumental baiana durante show realizado no dia 10 de setembro no Teatro Vila Velha.
Antes da Jam Delas tocar a primeira música da sua apresentação no palco da sala principal do Teatro Vila Velha, no último dia do Festival Eletrobras Chesf Arte e Natureza, a clarinetista Daniela Nátali apresentou a banda e fez questão de deixar claro: todas ali tocam como mulheres.
Quem tem uma vivência mínima entre pessoas interessadas na música instrumental, principalmente no jazz, sabe ter sido “naturalizado” comentários do tipo “ela toca tão bem, parece até um homem” como sendo um “elogio” à mulheres instrumentistas dedicadas a instrumentos comumente associados aos homens.
Contudo, nada mais é que o velho machismo fazendo suas conexões em mentes e falas por ele estruturadas. Por isso a fala inicial da clarinetista é tão importante, pois, chama atenção para o apagamento das mulheres instrumentistas dentro da cena musical.
Talvez você esteja pensando: “Ah, mas a maioria dos instrumentos musicais são em sua maioria são mais comumente tocados por homens”. Muitas vezes esse juízo é apresentado como justificativa para aquele aparente “elogio”
Durante todo século XX a presença de mulheres na música instrumental pareceu ser quase inexistente. Precisamos, muitas vezes, fazer uma investigação cuidadosa para encontrar nomes como o da saxofonista sueca Cecília Wennerström, líder da banda de fusion Salamander, composta por 4 integrantes mulheres e 1 homem.
Assim como não é fácil encontrar informações sobre o The Kansas City Womenn’s Jazz Festival, festival de jazz cujo line up trazia apenas bandas compostas ou lideradas por artistas mulheres. O festival foi realizado entre os anos de 1978 e 1985 e você pode se informar melhor sobre ele clicando aqui.
Existe também um livro sobre o mesmo, o nome é Changing the Tune: The Kansas City Women’s Jazz Festival, 1978-1985, escrito por Carolyn Glenn Brewer. Infelizmente o livro não foi traduzido para o português. Outra importante obra sobre o tema é Madame Jazz: Contemporary Women Instrumentalists da pesquisadora Leslie Gourse. Neste livro ela traz uma farta lista com nome de grandes instrumentistas mulheres que viveram e fizeram música ao longo de todo século XX.
Certamente você deve estar se perguntando porque estou fazendo esse preambulo e não falando logo sobre o show da Jam Delas. Achei importante começar destruindo o senso comum já consolidado segundo o qual é raro casos de mulheres instrumentistas.
Isso é falso e os fatos citados acima provam isso. Apesar de toda dificuldade imposta às mulheres pela estrutura patriarcal sob a qual as relações sociais são estabelecidas, que tentam enquadrá-las em funções predeterminadas, que satisfaçam os interesses dos arquitetos dessa estrutura, elas conseguem romper os grilhões e realizar sua potencia criadora como melhor lhes aprouver. Por exemplo, fazendo música instrumental.
Portanto, sempre houve mulheres fazendo esse tipo de música. Os livros acima provam, os line ups das oito edições do The Kansas City Womenn’s Jazz Festival provam isso. Podemos concluir que se trata de apagamento da presença dessas mulheres na cena da música instrumental.
Porque poucos livros são feitos, poucos espaços foram abertos em gravadoras, durante a maior parte do século XX, portas foram fechadas para instrumentistas dificultando a formação de bandas de mulheres, o destaque de mulheres band leaders e por aí vai.
Nas últimas décadas houve uma mudança nesse cenário. Grande nomes do jazz entre as mulheres ganharam espaço e protagonismo como Speranza Spalding, Hiromi Uehara e mais recentemente Nubya Garcia, Emma-Jean Thackray, Lakecia Benjamin … felizmente a lista é gigantesca, vou ficar só com esses nomes vindos à mente de imediato.
Ah, mas não deixemos a ocasião passar e citemos algumas grandes instrumentistas brasileiras, entre as quais Rosinha de Valença, Badi Assad, Clara Sverne a big band formada apenas por integrantes mulheres, a Jazzmines e a banda de afrobeat Funmilayo , integrada em sua totalidade por mulheres negras.
Desse modo, a fala de Daniele abrindo o show da Jam Delas desperta nossas mentes, moldadas pelo machismo, para o fato de mulheres fazendo música instrumental com excelência sempre existiram aos montes. E estávamos ali para presenciar isso através do show da Jam Delas.
Daniela ainda nos diz ser a Jam Delas algo para além de um projeto musical das oito amigas ali presentes no palco. A Jam Delas é um coletivo, e as oito estavam ali representando um número muito maior de instrumentistas baianas, dezenas delas.
Essa informação mostra a consciência política destas minas relacionadas às pautas que as une como mulheres e instrumentistas. Apenas se articulando politicamente enquanto categoria poderiam conseguir a visibilidade a qual lhes é merecida. Visibilidade para quem faz música instrumental não é algo fácil, mas a depender do seu gênero, a coisa fica pior.
A Jam Delas, portanto, constitui-se num movimento de resistência e ajuda mútua entre as instrumentistas baianas.
Apresentações tem ocorrido periodicamente no espaço Colaboraê (@colaborae!) no Rio Vermelho, quando a Jam Delas ocorre no evento chamado Jazz na Casinha. Mais informações estão disponíveis no IG da banda no instaram @jamdelas.
Vamos ao show propriamente dito. O repertório apresentado enfatizou a música afro-baiana, nordestina, trouxe uma composição autoral de uma das componentes da Jam Delas e um clássico da música instrumental brasileira composta por uma mulher ainda no século XIX.
A música escolhida para abrir o show foi Coisa no. 01 do genial maestro pernambucano Moacir Santos. Elas adotam a dinâmica das jam sessions, executando o tema principal, nessa música a cargo dos sopros, para então seguirem-se o revezamento dos improvisos.
Vale ressaltar ser próprio das jam sessions a alternância do protagonismo durante a execução de uma música entre as participantes. Sem falar na exigência de um senso de coletividade entre as participantes na construção da música a cada instante.
Esse elemento acaba representando de forma bastante contundente aquilo em torno do qual se organizam as instrumentistas da Jam Delas, qual seja, conquistar seu espaço na cena musical soteropolitana e baiana.
Reforça a aquisição da consciência da necessidade de união para dar força à sua voz, ao som dos seus instrumentos, para usar uma imagem mais apropriada.
Em seguida tocam um clássico da música instrumental brasileira, Gaúcho (O Corta-Jaca) da compositora e pianista Chiquinha Gonzaga. Lindo arranjo com o tema tocado suavemente no xilofone.
Seguem com Floresta Azul do saudoso mestre das sonoridades afro-baianas Leitieres Leite. Daniela Nátali se emocionou ao anunciar a música, composição daquele que foi seu maestro nos tempos de Rumpilezinho (conheça o projeto clicando aqui), quando iniciava seu processo de formação musical.
Seguiu-se o samba choro Jacaré, composição da clarinetista Daniela Nátali, composta durante o período da pandemia. O título, vocês concluem, trata-se de ser uma referência à fala do Bolsonaro, quando alucinadamente chegou a declarar ser possível pessoas se transformarem jacarés caso tomassem a vacina contra a covid 19.
Caminhando para o encerramento da apresentação, tocam Eu só quero um xodó, música que se tornou um hino da música nordestina. Composta por Anastácia e Dominguinhos, esta música ficou conhecida por todo país e tá na ponta da língua de todes.
Prova disso está no momento em que Rosa Denise, trombonista e tecladista, convida o público a participar da música. Não poderia ser uma participação melhor, pois, a plateia se mostrou inteirada com o arranjo, parecia ensaiado. Todo mundo afinadinho com os instrumentos. Faltou apenas o convite para a plateia descer e arrastar o pé diante do palco.
Fechou o ciclo da apresentação uma outra música do Leitieres Leite, que confesso a vocês não ter entendido o nome, portanto, vou ficar devendo essa.
A Jam Delas se apresentou com Rosa Denise (teclados e trombone), Daniela Nátali (clarineta), Damile Levek (guitarra), Carla Suzart (baixo), Berta Pitangueira (flauta), Nana Oliveira (Percussão), Érica Sá (bateria e percussão) e Larissa Braga (percussão).