Oganpazan
Destaque, Discos, Música

Agogô – Ivan Motosserra Surf & Trash

Ivan Motosserra Surf & Trash lança neste sábado, 25 de agosto, Agogô, seu novo álbum, que surpreende por sua ousadia em explorar novas possibilidades sonoras.

Não exagero ao afirmar que feita a menção do gênero musical surf music, a mente do amante da música será remetida a mais cute de todas as bandas do rock´n roll, os Beach Boys. Primeiramente pelo fato de os Beach Boys terem sido muito bem sucedidos comercialmente, tornando-se populares em todo mundo ao longo da década de 60. Fato que não apenas sedimentou o sucesso da banda, mas também levou à popularização da surf music.

A qualidade das composições da banda atesta a legitimidade de sua popularidade, bem como a tese defendida de serem os Beach Boys a resposta americana aos Beatles. Contudo, isso levou à associação da surf music exclusivamente ao som feito pelos Beach Boys. Claro, estamos aqui para demolir esse lugar comum.

Wouldn’t It Be Nice, Surfin USA, Good Vibrations são exemplos de composições dos Beach Boys responsáveis por elevar o som que faziam ao status de fofinho. Soma-se a isso a imagem de “bons moços” projetada pelos seus membros durante boa parte do tempo de duração da banda. O resultado alcançado é a consideração da surf music como um gênero musical comportadinho, calminho, ideal para se ouvir em momentos de relaxamento ou momentos de felicidade pré-moldados tão comuns nos desprezíveis filmes de comédia romântica. 

Poderíamos citar inúmeras bandas, inclusive contemporâneas aos Beach Boys, para desconstruir tal imagem, porém fiquemos apenas naquela que nos interessa nesta resenha, a Ivan Motosserra Surf & Trash. Trata-se de uma banda antagônica aos Beach Boys em tudo, ao ponto de terem seu som classificado como surf-trash, podendo ser considerado um subgênero da própria surf music. A banda dá marretadas firmes para desconstruir o rótulo que reveste a surf music.

A Ivan Motosserra Surf & Trash funde à surf music elementos do garage rock, punk, pscobilly, acrescentando algumas pitadas de psicodelia, cujo resultado é uma sonoridade densa, agressiva e bastante barulhenta. Certamente “as pessoas da sala de jantar” jamais desfrutariam de momentos inspiradores ao modo dos comerciais de margarina ao som de Catacumbas de Paris ou Tsu (Ouça essas músicas clicando aqui).

A banda ficou marcada pela forte pegada punk/garage de seu Ep Surf & Trash, cuja tônica foi manter o núcleo rítmico próprios desses subgêneros do rock. Essa primeira incursão da banda no estúdio para gravar e produzir seu trabalho de estreia, focou na crueza sonora, o que caracterizou a sonoridade do Ep como um todo e acabou sendo associado à identidade sonora da banda. 

Entretanto, em suas performances ao vivo, nos shows, a banda apontava para outras paragens. Sempre acrescentavam ritmos caribenhos entre uma música e outra, contando com as coreografias e passos estilizados do dançarino oficial da banda, Ivan Motosserra Pamponet, muso inspirador da banda, que o homenageou a batizando com seu nome. Outra característica da banda é o humor, por vezes ácido.

Em seu primeiro álbum, Agogô, a Ivan Motosserra explora novas sonoridades que vão desde a adoção de ritmos e estruturas característicos de gêneros musicais caribenhos, quanto o uso de instrumentos musicais outros, que não o da clássica formação guitarra, baixo e bateria.

Essa guinada incomodou algumas pessoas, consideraram que a banda perdera sua identidade ao buscar fundir novos elementos à sua sonoridade. Há outras, entretanto, coloco-me entre elas, que também sofreram um impacto profundo, contudo tendo uma percepção e recepção positiva dessa experiência da Ivan Motosserra.

Salsalitre, faixa de abertura é a minha música preferida do álbum. Dentre as muitas coisas que tenho ouvido nos últimos anos, considero ser a composição mais bem elaborada em termos de arranjo e diversidade sonora que ouvi nesse espaço de tempo. Temos em Salsalitre o que pra mim é o centro nevrálgico do Agogô, acredito ser a faixa que exprime em todos os contornos a nova sonoridade alcançada pela Ivan Motosserra.

Essa nova sonoridade busca a heterogeneidade e rompe em certa medida com a homogeneidade presente no Ep. O incomodo de algumas pessoas com o Agogô, mencionado acima,  reside justamente na construção dessa sonoridade heterogênea. Isso porque a sonoridade homogênea anterior é uma característica marcante dos gêneros rockers mais crus como o punk e o garage, que no Suf & Trash foi a tônica sonora adota pela banda.

Salsalitre nos leva por diversas ambientações através das mudanças rítmicas, das diferentes ornamentações usadas pelo conjunto instrumental, pelas inúmeras camadas sonoras presentes ao longo dos pouco mais de 4 minutos de sua duração. Toda essa diversidade de elementos poderia levar de fato a certa bagunça, porém a banda foi certeira na elaboração dos arranjos, na costura desses elementos e na dosagem de seu uso. 

Existe ainda outra característica fundamental para entender toda potência dessa música, o cuidado dispensado à expressividade. O uso bem feito das dinâmicas de modo a criar efeitos sonoros em diferentes partes da música, a meu ver, contribui para que Salsalitre ganhasse esse grau de excelência. Vamos dirigir nossa análise da música a partir do uso dos efeitos dinâmicos ao longo de sua duração.

Na introdução Rogério usa o que alguns guitarristas chamam de pica pau, que consiste no dedilhado pontual das cordas fazendo as notas soarem secas. Ouve-se apenas a guitarra, cujo dedilhado vai explorando diferentes alturas das notas gerando uma tensão no ouvinte, que passa a ter aquela sensação de que algo irá acontecer.

Sem frustrações, a sensação é confirmada, algo acontece, ouvimos o toque dos timbales feito por Rodrigo, despertando de imediato o swing da salsa, logo dissipado pela marcação forte do baixo e da batera que constroem a base de fundo para que a guitarra realize suas funções melódicas. Destaque para a participação de Tadeu Mascararenhas que explora bem o timbre sombrio do órgão Palmer X22, construindo arpejos ao fundo, imprimindo diferentes intensidades a esta parte da música. O uso de um efeito, que me parece algo próximo ao chorus, enfatiza certas passagens, dando caráter dramático à música.

A repetição dessa primeira parte da música, feita com mais ênfase, funciona como uma preparação que nos leva a uma ambientação mais leve, com ritmo mais cadenciado e dedilhados explorando notas esparsas, resultando na leveza que precede o turbilhão prestes a estourar.

Baixo e bateria assumem o protagonismo e uma onda de graves toma conta da música, sendo entrecortada por arpejos rápidos da guitarra e os acordes longos do órgão. Após esse interlúdio, tocam uma vez mais a parte da marcação e aí chegamos à explosão orgástica dessa música.

De repente o som abre, a sensação que dá é de chegarmos em um lugar descampado, aberto, onde há liberdade para se movimentar, e é isso que ocorre, pois entra o solo do órgão que fica livre pra se locomover pelos espaços gerados pelo campo ritmo/ harmônico gerado pela guitarra, baixo e bateria. A banda vai aumentando a intensidade dessa sonoridade a cada segundo vencido. Ao fim do solo do órgão, a guitarra entra numa selvageria absurda, desembolando um solo cheio de bends e licks bem acentuados, que se dissipa repentinamente e chegamos ao momento sublime.

Aos poucos a suavidade vai dando lugar ao swing e de repente estamos sob os movimentos sensuais de uma salsa quentíssima, cujo balanço contagia nos fazendo um verdadeiro convite ao prazer. Precisamos ressaltar a importância do uso das congas e timbales nesse trecho. Suas acentuações rítmicas enfatizam a sonoridade caribenha, deixando marcante sua presença, fazendo o contraponto com a guitarra, órgão e baixo.

Se você conseguiu superar minha necessidade de explorar nos mínimos detalhes a primeira faixa do álbum e chegou até aqui, posso considerar ter cumprido meu papel de não entendia-lo ao extremo. Sigamos até a Misteriosa Lagoa do Abaeté. O título nos entrega exatamente o que nos promete em seu título, uma atmosfera densa, fortemente misteriosa.

Novamente Rogério e seus arpejos envenenados de reverb e trêmulos ecoam expansivamente dando início à música. Essa execução inicial desperta fortemente a sensação de suspense. Escutamos as baquetas marcarem a contagem para a entrada do riff principal, que nos envolver através de uma pegada mais rocker, intensificada pelas incursões da mão esquerda entre uma extremidade e outra do braço da guitarra.

Voltamos ao riff principal que é alternado com andamentos cadenciados e a pegada rocker aos poucos vai sendo suavizada até que chegamos num luau havaiano, com a calorosa recepção de Morotó Slim deslizando sua mão esquerda pelas cordas de sua guitarra havaiana, fazendo uma dobradinha com a guitarra de Rogério, que em determinado momento segue sozinho numa pequena marcha até outro ponto de intensidade onde a guitarra slide havaiana de Morotó protagoniza melodias cristalinas, que ganham corpo com a introdução do theremin dando um clima psicodélico ao final da música.

A terceira música se ancora nas raízes sonoras da Ivan Motosserra, o nome nos diz tudo, Crampson! Filhos musicais dos Cramps, a banda segue por encadeamentos sonoros cristalinos inicialmente, mas com marcação pesada do baixo e da batera, desembocando em bends rasgados ligados a pequenos licks próprios do punk.

Porém, a meu ver, o que torna essa música uma homenagem flagrante aos Cramps é a atmosfera sombria da música e seus pequenos momentos mais sujos. Percebam que o mesmo riff cristalino do início, aparece mais sujo no final, amparado numa batida mais pesada da batera.

Kamboyá, música fortemente nutrida pela velha escola punk ramonica, logo identificada na levada produzida pela bateria assim que as sucessões de power chords da guitarra sessam. Temos um início frenético numa onda bem alucinada “cola de sapateiro”. Início pesado pra caralho, suavizado em doses homeopáticas em determinados pontos em que os arpejos trêmulos dão a tônica surfer, só pra nos lembrar que temos nossos pés enterrados nas areias da praia. Contudo a intenção nessa faixa é soltar o peso … bom, até um determinado ponto.

Pela primeira vez a guitarra usa distorção para temperar melodias caribenhas, gerando um efeito bem surpreendente. Sem que percebamos, caímos numa zona de forte cadência rítmica, entrecortada pela forte pulsação de congas e timbales. A diferença do toque caribenho nesta faixa está na intensidade da execução, aqui muito mais forte do que em Salsalitre e Misteriosa Lagoa do Abaeté. Entramos numa trilha nos moldes daquelas usadas nos filmes de espionagem.

Castañuelas Baratinadas, daqui de onde estou olhando, chega bem próximo ao que a banda conseguiu alcançar em Salsalitre. Há em comum entre as músicas a presença marcante da heterogeneidade sonora. Aqui exploram a base ritma do pasodoble, uma espécie de marcha de origem espanhola muito comum em touradas e que se tornou um importante estilo de dança no início do século XX.

Inicialmente as baquetas reproduzem o pasodoble batendo nas extremidades da caixa, simulando as castanholas, instrumento marcante da música hispânica. Os arpejos da guitarra entram encorpando o som, enquanto o baixo chega pra complementá-lo.

Diferentes variações desse trecho são feitas, explorando diferentes efeitos sonoros da guitarra até desembocar numa espécie de vão em que os dedilhados da guitarra, agora mais límpidos, ganham primeiro plano, enquanto a bateria e o trompete de Normando Mendes fazem o contraponto com a guitarra.

A guitarra mantém o padrão de dedilhado, enquanto o trompete e a bateria seguem cada qual seu rumo. A bateria assume novamente sua função de suporte, o trompete protagoniza um solo de forte apelo imagético, reproduzindo estruturas melódicas hispânicas de forma bastante dramática. Essa ênfase na dramaticidade é o que a meu ver caracteriza a musicalidade espanhola. A Ivan Motosserra explora muito bem essa característica, fazendo dela a coluna vertebral de Castañuelas, onde os demais elementos são conectados.

Morei no Barbalho, bairro da região histórica de Salvador, durante mais de dez anos e sei o tamanho do problema que é subir a Ladeira do Funil. Sem dúvidas pra subi-la no andamento em que a música que leva seu nome é executada, a pessoa precisa estar em excelente forma física.

Essa faixa é a mais rápida do álbum e possui uma natureza sonora homogênea. Há mudanças de matizes sonoras é verdade, contudo a pegada é a mesma do início ao fim, haja folego pra chegar no topo da Funil nessa pegada aí!!

Balada Guatemala é uma balada intimista de excelente conotação blues durante a maior parte da música. A suavidade e a leveza do solo do trompete marcam essa primeira parte, que vai aos poucos nos seduzindo através de articulações bastante coesas e sutis.

Sutileza define bem toda construção melódica feita pelo trompete, o que fica ainda mais caracterizado quando em determinado momento se inicia um “diálogo” entre o instrumento de sopro e a guitarra, tendo ao fundo o swing das batidas das congas. Balada Guatemala é de uma beleza à beira do sublime! Sem dúvida já tenho minha música pra criar aquele clima gostoso para uma noite cheia de amor! 

Cocobongo tem uma natureza mais divertida e a mim inflamou algumas memórias afetivas. Uma delas da primeira vez que assisti ao filme O Máscara. Lembram-se da cena no clube de nome Coco Bongo, em que o Máscara dança ao som de uma big band que toca um mambo furioso? Outra foi reavivada pelo modo como o órgão é executado, no melhor estilo The Mummies, lembrei desse vídeo fantástico dos caras tocando The Fly.

Encerra o álbum Picolinoscope, faixa que explora os recursos sonoros do órgão de modo mais intenso. Temos um início cadenciado com o órgão ao fundo controlando a atmosfera “esfumaçada” e bateria fazendo uma marcação quebrada enquanto a guitarra provoca através de acentuações incisivas durante o toque das notas.   

Há certo suspense, menos intenso é verdade, mantido por boa parte da música através desta condução só afetada pela entrada do órgão num solo bastante efusivo. Ao fim desse trecho entramos  no desenrolar de um rockabilly bastante animado, convidando a dançar. Encerra a música um trecho em que o rockabilly é suavizado e um clima mas intimista é iniciado mais uma vez pela presença marcante do órgão.

Caros leitores, agradeço a paciência a vocês que me acompanharam até aqui. Agradeço principalmente à Ivan Motosserra por mostrar que o rock só está em coma no mainstream, que nas catacumbas, não nas de Paris, mas nas de Salvador, o rock se mentem em constante renovação e produzindo sonoridades intensas e sedutoras, como o fizera em outros tempos lá naquele lugar chamado mainstream. 

Foi um prazer imenso ouvir esse álbum, tentar identificar o que se passou na mente da galera envolvida no projeto que resultou nessas composições ímpares, originais. Agogô, penso cá com meus botões, resistirá sem problemas ao teste do tempo, acredito que irá cortá-lo, como a quilha do navio corta as ondas do mar, consolidando-se como obra singular do rock nacional. 

PS:. Agogô ainda não foi disponibilizado nas plataformas de streaming mais conhecidas, mas pode ser ouvida no bandcamp da Reverb Brasil, clique aqui para ouvir o álbum.

 Ficha Técnica:

Guitarra – Rogério Gagliano

Baixo – Gabriele SOusa

Bateria e Percussão – Rodrigo Gagliano

Órgão nas faixas 1, 8 e 9: Tadeu Mascarenhas

Guitarra haviana e Theremin na faixa 2 e guitarra na faixa 9: Morotó Slim

Banjo na faixa 5: Gigito

Trompete nas faixas 5 e 7: Normando Mendes

Produção Executiva – Ivan Pamponet

Coordenação Executiva – Alexandre Tosto

Arte Gráfica – Daniel Pacetta (ETE)

Arte Final – Alexandre Tosto

Produção – Tadeu Mascarenhas e Ivan Motosserra

Gravado Mixado e masterizado por Tadeu Mascarenhas no Estúdio Casa das Máquinas

Matérias Relacionadas

Old Dirty Bacon e a sinceridade preservada pelo amor A Origem – Entrevista!

Danilo
4 meses ago

Criolo e um tríptico no trap: mercado, cultura hip-hop, raça e política!

Danilo
3 anos ago

Matheus Coringa, Galf AC e Noshugah na potência da Repulsa

Danilo
1 ano ago
Sair da versão mobile